segunda-feira, agosto 21, 2006

O lapsus linguae: uma tradução cultural entre dois mundos

A propósito de: GILSON CARONI FILHO. “Datafolha rasga a fantasia iluminista da imprensa” (Observatório da Imprensa, 10/4/2006; distribuído na Lista da Universidade Nômade, dia 20/8/2006 e na Rede Informante, em http://www.informante.net/resources.php?catID=2&pergunta=1005#Cena_1
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“Iluminismo” versus “ilusionismo”
OU: “Mas... deu nisso, a ‘sociologia’ da tucanaria uspeana udenista e pefelista?!”

“Ce n’est que par la crainte du plus affreux scandale qu’on peut déconcerter les manoeuvres des ennemis du peuple, ils ne redoutent que la lumière!”* Jean-Paul Marat, jornalista, ed. n.2 do “Journal des Sans-culottes”, colado num poste, em Paris, em 1849.

Não há dúvida de que a história se escreve por ela mesma, movida por forças que ninguém doma sozinho – mas que, sim, o Iluminismo supôs que ‘o saber’ dominaria.

O Iluminismo foi o ‘saber’ que acompanhou, no tempo e na Europa, as monarquias absolutas. O Iluminismo, afinal de contas, construiu todos os saberes que tornaram possível o genocídio que se conhece como “a conquista do Novo Mundo”.

Não conheço aula mais clara sobre as grandezas (muitas) e misérias do Iluminismo, mostradas pari passo com as grandezas e misérias (muitas) das monarquias absolutas, do que “A Arca Russa” – o quase inacreditavelmente deslumbrante filme de Alexandre Sukúrov (2003), disponível para alugar em praticamente todas as esquinas do planeta.

Mas “A Arca Russa” é filme feito, inteiro, ainda, nas franjas do mundo construído pelo Iluminismo, para contar 300 anos de história européia, na única monarquia absoluta que passou, sem etapa intermediária (num único plano-seqüência, pode-se dizer), do século 16 ao século 20... em dez dias (contados, aliás, hora a hora, e no calor da hora, por John REED, em Os dez dias que abalaram o mundo[1]). Tudo é complexo, nessas franjas entre dois mundos. Além do mais, onde e quando se abra mão do recurso da montagem a posteriori é preciso encarar a história, digamos, nua e crua.

É claro portanto que, sem boa e consistente crítica explicativa, didática, quase que de ‘tradução’ quadro-a-quadro, “A Arca Russa” é filme TOTALMENTE incompreensível para os pobres não-letrados do mundo (o que, aliás, o filme também diz e ensina, leal e muito brilhantemente).

Pode-se dizer então que nós, os pobres & letrados do século 21, já sabemos apenas, com a certeza possível, que o saber dos ricos NÃO DOMOU o andamento das forças históricas.

Contudo, como ainda não construímos o nosso saber dos pobres, vivemos tempos, hoje, em que parece que o ‘saber’ (pode-se dizer: ‘em si’) não serve para nada.

Não acho que as coisas sejam assim tão simples. Isso seria pressupor que a ignorância seria “uma bênção” e implicaria o dever moral de ‘ensinar’ ignorâncias... Isso, portanto, não pode estar certo.

É claro que é preciso saber – e quanto mais se souber, sobre tudo, melhor. Essa lição, sim, acho, ainda se aproveita, do Iluminismo. Nesse combate, por melhores saberes sociais e socialmente construídos, afinal de contas, combate-se sempre a ignorância, que, essa sim, parece ser a mãe (e o pai) de todos os males, em todos os casos.

Mas é preciso também, ao mesmo tempo, nós sabermos que as sociedades, no século 21 – e na América pós-colonial, no caso do Brasil –, apenas estamos começando a poder construir esse saber melhor, mais legítimo, mais histórica e socialmente articulado, mais orgânico, mais legitimamente nascido do fundo vivido das nossas vidas, um saber mais diretamente nascido ‘do chão’, pode-se dizer, da vida das nossas sociedades, que ainda estão em processo de democratização; que ainda lutam para se democratizarem.

No mundo dos pobres sempre se trata de nós mesmos, os pobres, nos puxarmos para fora do poço, agarrados, nós mesmos, exclusivamente, nos nossos próprios cabelos. Isso não é fácil.

Dado que a luta pela democratização é, em enorme medida, a luta contra os ‘saberes’ construídos pelos ricos e para os ricos (e só isso e sempre isso!)... parece muito fácil – às vezes parece ‘óbvio’! – ‘pular’ para a conclusão segundo a qual todos os saberes são ‘do mal’. Parece ser verdade que o Iluminismo foi a nossa desgraça – a desgraça dos pobres em todo o mundo e a super-desgraça dos povos americanos nativos. Mas isso não implica que a ignorância nos salvará.

De garantido, de beeeeeeeeeeeeeem garantido, a única coisa que sabemos com certeza, em agosto de 2006, no Brasil, é que a sociologia-de-araque dos professô-dotô da tucanaria pefelista uspeana... fracassou.

Fracassou, de fato, toooooooooooooodo o ‘saber’ da universidade brasileira ou, no mínimo, da universidade brasileira que foi (des)construída, no Brasil, a partir do golpe de 64. Dado que essa ‘neo’ universidade brasileira de araque já completou 40 anos, sim... pode-se dizer, sim, que ela fracassou TOTALMENTE.

A ‘sociologia’ brasileira, completamente de araque, ainda se manifesta em 2006, e em vários espaços, e sempre muito falante. Pode ser vista, por exemplo, nas páginas dos vários grupos fascistas que militam pela Internet (há zilhões de ‘sociólogos’ fascistas, que escrevem em zilhões de páginas fascistas[2]). E a mesma ‘sociologia’ brasileira, completamente de araque, também pode ser lida nas páginas da revista Playboy, numa entrevista em que o ‘jornalista’ pergunta: “A esquerda não terá sempre um viés salvacionista?”, e o ‘sociólogo’ responde: “Sim. A esquerda está presa à idéia de revolução, que vai resolver tudo.”[3]

Por sorte da democracia brasileira, FHC envelheceu. Nas nessa entrevista ainda falam, pela mesma boca-de-babado, (i) o mais titulado sociólogo brasileiro de todos os tempos[4], (ii) um ex-presidente da República que reinou por uma década sobre o Brasil (sobre o Brasil dito ‘letrado’, sem dúvida) e (iii) um (eterno) candidato. Nunca se sabe candidato de quem e candidato a quê... mas FHC é, sempre, candidato a algo.

Por isso, aliás, provavelmente, é que FHC JAMAIS saiu das páginas dos jornalões por um dia sequer, desde 1978 (são quase 30 anos!), com presença ainda mais espantosa nos últimos 4 anos..., embora, nas eleições de 2002, FHC tenha sido, afinal, varrido do poder político no Brasil por impressionantes quase 70 milhões de votos democráticos, legais e legítimos, indiscutíveis.

O amontoado de asneiras que se lêem em Playboy de agosto-2006, como “Entrevista de FHC” (em chamada de capa), é a prova viva de que fracassaram, no Brasil, tanto o ‘jornalismo’ quanto a ‘sociologia’ que conhecemos no Brasil nos últimos 40 anos. Isso é autodemonstrável: é ler aquela inacreditável entrevista de ex-sociólogo, ex-presidente e atual NADA... e ver a extensão do estrago, pela quantidade de asneiras perguntadas e respondidas.

Nessa inacreditável entrevista do mais laureado ‘sociólogo’ que o Brasil rico produziu em quase 50 anos de ‘universidade’ e ‘jornalismo’ pós-ditadura, está expresso, está manifesto... o melhor saber que o Iluminismo produziu no Brasil, em matéria de ‘sociologia iluminada’: é nada.

O ‘outro lado’

Semana passada, praticamente no mesmo dia em que foi para as bancas a revista Playboy e a inacreditável entrevista de FHC-2006, todos os jornalões brasileiros e a Rede Globo publicaram o chamado “Manifesto do PCC”, o qual, de fato, apenas reproduziu, de viva voz -- lido por um mascarado --, um texto de autoria de um juiz, no qual o juiz criticava um tal "Regime Disciplinar Diferenciado" de prisão, reservado aos criminosos considerados mais perigosos. Às tantas, diz o manifesto do PCC, como apareceu reproduzido nos jornalões, no dia seguinte:

"O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo [sic] e pedra angular do sistema penitenciário, a Lei de Execuções Penais."
Todos os jornalões brasileiros consumiram zilhões de 'bits' para escrever o "[sic]" que se vê acima, que não faz outra coisa além de marcar, bem claro, que os letrados VIRAM que o mascarado do PCC 'errou'. Onde o juiz escrevera “Iluminismo”, o mascarado do PCC leu “ilusionismo”.

NENHUM jornal, jornalista, colunista ou sociólogo ou seja-lá-que-diabo-for, dos ‘iluminados’ brasileiros, dedicou sequer um único bit para discutir o espantoso fenômeno social que se escondeu aí, precisamente nesse ponto do “Manifesto do PCC”.

O fênomeno, contudo, aí está, dramaticamente claro e bem exposto à vista de todos: onde o juiz ilustrado, iluminado e civilizatoriamente iluminista escreveu "Iluminismo", no texto original... o mascarado do PCC leu, sem entender exatamente o que lia, não algum "iluminismo" ilustrado... mas um terrivelmente eloqüente "ilusionismo".

O “Manifesto do PCC”, portanto, é muito mais do que uma reivindicação humanista e humanitária, por melhores condições de vida nas prisões brasileiras. Chega a dar calafrios nas almas democráticas e civilzadas perceber que esse manifesto, para chegar aos ouvidos do Brasil, tenha quase custado duas vidas humanas. Dá calafrios e medo, sim, e horroriza... mas não pode nos surpreender que as coisas, no Brasil, tenham chegado a esse ponto.

Afinal, se a ‘sociologia’ da tucanaria uspeano-pefelista-udenista nos levou, do golpe de 64 a essa muito reles ‘sociologia’ (ainda uspeano pefelista e udenista e CANDIDATA, em 2006!) que hoje se manifesta na revista Playboy, e para só ‘ensinar’ asneiras e lugares-comuns que qualquer página fascista de Internet ‘ensina’ também, igualzinho...

... QUEM, então, senão um bandido mascarado fora-da-lei e condenado por crimes horríveis conseguiria denunciar que, no Brasil pós-64 (“que foi de Golbery a Gol-de-mão” – como se disse aqui na nossa rua [risos muitos]), o Iluminismo já está reduzido, mesmo, a puro ilusionismo de engambela-eleitor?!

O lapsus linguae: uma tradução cultural entre dois mundos

Vivemos tempos muito duros. Mas, não e não, os pobres não reivindicamos a escuridão; é o contrário: queremos luzes!

O mascarado do PCC não exigia que o pusessem em liberdade imediatamente: ele apenas pedia que se aplicasse a ele mesmo uma lei menos bárbara! Essa lei menos bárbara até existe, já, no papel.

Mas ela ainda não foi incorporada, sequer, nas práticas dos ‘ilustrados’ SS de Alckmin, de FHC, quer dizer, nas práticas sociais dos ‘ilustrados’ ‘sociólogos’ tucanos uspeanos pefelistas udenistas, os quais, no mesmo dia... conversavam com a revista Playboy... e jogavam conversa (e sociologias), literalmente, fora!

Nessa luta, cujo horror é, para nós, os letrados, quase inimaginável... o mascarado trocou uma palavra.

Nesse lapsus linguae – um lapso, um “ato falho” – o mascarado operou, sem perceber, a tradução cultural entre dois idiomas totalmente inacessíveis, um ao outro.

O mascarado traduziu, sim, um “Iluminismo” que nada significa para ele, nos termos do “ilusionismo” (da total enganação!) que ele vive e sente, na qual se sente preso... mas que ainda não tem palavras ‘letradas’, ‘sociológicas’, ‘cultas’ para denunciar.

Mas não há dúvidas de que o Brasil mais pobre, menos letrado e, afinal, mais enlouquecedoramente desesperado já começou a conseguir denunciar o ilusionismo que nos barbariza, de fato, a todos. Parte da desgraça brasileira a que nos levou a ‘sociologia’ tucana uspeana pefelista e udenista é, é claro, que ainda estejamos condenados a só saber usar os métodos mais bárbaros para fazer-nos ouvir.

Há muita esperança, portanto, no ar: já se pode ver – até nas bancas de jornal! – que, da digna sociologia de Florestan Fernandes, só restou, mesmo, o bobajol de FHC-em-páginas-de-Playboy. E, do outro lado, os bárbaros já acharam caminho (embora ainda bárbaro) para falar, muito eloqüentemente, até pela Rede Globo.
Estamos, exatamente, no ponto de virada, no olho do furacão. Estamos atravessando, digamos, o Cabo da Boa Esperança – mas sem ânimo colonialista, afinal, agora, 500 anos depois.

O passado acabou, no Brasil, no último dia do último governo do ‘sociólogo’ FHC. Com o presidente Lula, estamos recomeçando a reconstruir o nosso futuro de nação civilizada.

Mas temos, nós mesmos, de produzir os sinais. E temos também, nós mesmos, de saber ler os sinais dos novos tempos. E temos, nós mesmos, de nos ensinar. É exatamente como termos, nós mesmos, de nos arrancar do poço, nos puxando pelos nossos cabelos. É isso. Tem de ser feito. E tem de ser feito de modo civilizado, não bárbaro. E tem de ser feito sem ilusionismos de ‘sociologias’ de araque. Tem de ser feito.
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* Só o medo do mais terrível escândalo consegue neutralizar as manobras dos inimigos do povo, eles só temem as luzes!
[1] Sobre o autor e o livro, ver os vários links listados em http://www.conradeditora.com.br/hotsite/reed/links.htm
[2] Ver, por exemplo, as publicações assinadas por Maria Lucia V. Barbosa, socióloga, em (1) “Grupo Ternuma” (http://www.ternuma.com.br/mlucia0519.htm); (2) na página de Olavo de Carvalho (http://www.olavodecarvalho.org/convidados/0127.htm); (3) na página do “Grupo Samaúma” (http://www.samauma.com.br/samauma/mlu0000artigos.htm, nesse caso, com foto & pérolas, pra quem queira conhecer pessoalmente a ‘socióloga'); (4) na página do “Grupo Continência” (http://paginas.terra.com.br/educacao/acontinencia/artigos/art0209.htm); e, dentre outras mais de 20 páginas na Internet, (5) na página do "Instituto Liberal" (http://www.institutoliberal.org.br/biblioteca/especial-il/LULA%20-%20O%20CANDIDATO%20DE%20HUGO%20CHAVEZ.doc).
[3] FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, Playboy, 8/8/2006. Entrevista a Fernando Barros de Mello e Edson Aran (na Internet, em http://playboy.abril.com.br/revista/edicoes/374/fechado/entrevistas/conteudo_155622.shtml#top
[4] FHC é o único sociólogo da galáxia, em todos os tempos, que, em dez anos de presidência da República, no Brasil, obteve 78 (!) títulos acadêmicos, o que dá quase 10 títulos acadêmicos por ano, mais de um título acadêmico a cada dois meses!
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Caia Fittipaldi