Mauro Santayana
As manifestações populares contra a ajuda do Tesouro aos ladrões de Wall Street (o qualificativo é de Timothy Egan, em artigo publicado na última quarta-feira pelo New York Times) revelam que os Estados Unidos se encontram divididos, mais do que nunca, entre ricos e pobres. Os sacrifícios recairão, como sempre, sobre os que trabalham e produzem bens tangíveis, não sobre os que tiram lucros das nuvens.
A grande bolha, inflada pela mentira, não é a dos empréstimos hipotecários; é o próprio mercado financeiro. Relembremos a maior lavagem cerebral da história, mediante o alinhamento dos formadores de opinião (menos alguns) na refundação, nos anos 90, do velho liberalismo, alicerçada na ficção de que o Estado deveria retirar as rédeas sobre a economia e deixá-la entregue às "leis" do mercado. Com essa desregulamentação, de acordo com Egan, "Wall Street recebeu luz verde para atuar como um cassino".
Em meados da década de 70, diante da crise do petróleo, as teses de Friedrich Hayek, de 1944, contra a intervenção do Estado no mercado e o planejamento keynesiano da economia, passaram a ser rediscutidas. Enfim, o que se contestava era o welfare state, que taxava os lucros do capital em favor da sociedade. Essa política distributiva fora conquista dos trabalhadores do Ocidente, amparada na Revolução Soviética. Os países capitalistas se viam obrigados a ceder um pouco, a fim de conjurar a revolução mundial.
A crise da malograda globalização dos anos 20 eclodiu na queda da Bolsa de Nova York em 1929. A bancarrota, associada à grande desigualdade social daqueles anos, levaria Roosevelt, ao assumir o governo em 1933, à intervenção vigorosa - e planejada - no mercado, com a regulation até mesmo do funcionamento de lavanderias. Com isso, ele reergueu a economia e preparou a nação para a II Guerra Mundial.
Embora cercado de intelectuais destacados, o então governador de Nova York e futuro presidente tinha ouvidos mais atentos para um homem aparentemente inexpressivo, modesto assistente social, Harry Hopkins. Hopkins levara para o governo a solidariedade para com o povo trabalhador e miserável da América. Do diálogo entre os dois nasceria – antes mesmo que Keynes publicasse sua teoria sobre o emprego, os juros e o dinheiro – a arquitetura do New Deal, primeiro no Estado de Nova York, com o programa de ajuda aos desempregados, e, mais tarde, na Casa Branca, com a "Lei de Reconversão Industrial". Os economistas, que participaram do planejamento da revolução rooseveltiana, colocaram sua inteligência acadêmica a serviço de uma férrea vontade política.
Collor iniciou a entrega da economia à nova ordem, mas o impeachment e o breve governo de Itamar interromperam o processo. Coube a Fernando Henrique, desmontar o Estado em favor do "mercado" internacional. A globalização da economia, com suas exigências, entre elas as da desnacionalização das grandes empresas privadas brasileiras (como a da Metal Leve), da abertura do mercado financeiro aos bucaneiros (como na entrega do Bamerindus ao HSBC) e da privatização das estatais, foi saudada pelo intelectual como um novo Renascimento – sob as luzes do Consenso de Washington. A nova ordem exigia a internacionalização do sistema financeiro. Uma de suas providências emblemáticas foi a salvação de banqueiros temerários e fraudadores, mediante o Proer – o que lhe permitiu transferir ativos de alguns bancos nacionais aos estrangeiros, abrindo-lhes o mercado sem reciprocidade. Com o exemplo dessa rede protetora, outros aventureiros se estabeleceram, como os controladores do Opportunity, entre eles alguns de seus auxiliares mais diletos, como Pérsio Arida e Elena Landau. Espera-se ato de contrição do ex-presidente.
Timothy Egan registra que só 10% dos mutuários de empréstimos hipotecários se encontram inadimplentes: os outros 90% estão em dia com seus compromissos. "Como pode esta minoria de maus empréstimos arruinar o capitalismo ocidental?"– pergunta. De acordo com o projeto enviado ao Congresso, o Secretário do Tesouro (hoje Henry Paulson) estará acima de qualquer outro poder do Estado. Suas decisões "may not be reviewed by any court of law or any administrative agency", ou seja, estarão acima até mesmo da Suprema Corte.
As manifestações de quinta-feira diante de Wall Street trazem a esperança de que tudo isso possa mudar.
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