O 18
BRUMÁRIO DE JAIR BOLSONARO
Rodrigo
Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da
Bahia, com ilustração de Pelicano
“Demonstro nesse livro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói.”
Assim, com essas palavras, Karl
Marx inicia o livro “O 18 Brumário de Luís Napoleão Bonaparte”, publicado em
1852. No texto, Marx se pergunta como um sujeito medíocre e grotesco conseguiu
se tornar o líder máximo da sociedade que meio século antes havia experimentado
a mais importante revolução social da história moderna.
Aqui, neste ensaio, me inspiro
em Marx para formular minha própria pergunta:
Por que Jair Bolsonaro, até
então um deputado medíocre, inexpressivo, foi eleito presidente da quarta maior
democracia do mundo?
Meu esforço aqui é o de
entender o capital político que impulsionou o bolsonarismo. Esse capital
político é substância composta e heterogênea. Neste texto, pretendo decompor
essa substância, trazendo à luz cada um dos seus elementos.
1°)
O antipetismo
Desde o final da década de 1980
que o antipetismo é fator decisivo nas eleições presidenciais brasileiras. Até
aqui nenhuma novidade. Porém, dessa vez algo mudou. Ao velho macarthismo, que
durante tanto tempo inviabilizou Lula, somou-se uma dupla interdição moral.
A primeira camada de moralidade
refere-se ao sentimento anticorrupção. Desde 2005, existe o esforço articulado
pela grande mídia e por órgãos do aparato policial e judicial do Estado
(Polícia Federal e Ministério Público) de colar no Partido dos Trabalhadores a
pecha de partido mais corrupto do sistema político brasileiro. Essa frente
antipetista sempre teve um modus operandi muito claro: a espetacularização
seletiva dos escândalos de corrupção. É impossível compreender a ascensão de
Bolsonaro sem a atuação dessa frente antipetista.
A segunda camada de moralidade refere-se
ao plano do comportamento.
Nos últimos 30 anos, vimos no
Brasil e no mundo o fortalecimento dos direitos civis das minorias (mulheres,
pretos e pretas e LGBTs). Essa discussão já estava presente na cena brasileira
desde a redemocratização, nos anos 1980, tendo sido contemplada parcialmente
pela Constituição de 1988. Avançamos nessa agenda tanto nos governos de
Fernando Henrique Cardoso como nos governos petistas. Poderíamos ter avançado
mais, é claro.
É uma obviedade dizer que o
Brasil é um país conservador e que, por isso, a pauta dos direitos civis das
minorias tem grande impacto ofensor na moralidade dominante. Essa moralidade
dominante foi ainda mais radicalizada com a ascensão do cristianismo
neopentencostal, do qual a Igreja Universal do Reino de Deus é a principal
representante.
Hoje, a formação política de
parcela considerável da sociedade brasileira não acontece na universidade,
tampouco na escola, muito menos nos sindicatos e associação de moradores. As
igrejas evangélicas neopentencostais estão formando a consciência política de
milhões de brasileiros e brasileiras, de todas as classes sociais.
Sem dúvida, a aliança costurada
entre a candidatura de Jair Bolsonaro e a Igreja Universal do Reino de Deus foi
elemento decisivo para o desfecho da corrida eleitoral. No Brasil inteiro, as
igrejas se transformaram em verdadeiros núcleos de campanha. A campanha de
Bolsonaro conseguiu convencer as pessoas que os direitos civis das minorias
representam um ataque à família brasileira e que o PT seria o principal
promotor desse ataque.
Resumindo: O velho antipetismo
foi turbinado e caiu no colo de Jair Bolsonaro.
Mas por que Bolsonaro e não
outro antipetista qualquer?
2°)
A sensação da insegurança pública
Nas grandes cidades
brasileiras, as pessoas estão assustadas. Os índices de violência urbana são
similares aos observados em países em situação de guerra.
Como bem lembrou Marcelo
Freixo, as esquerdas brasileiras sempre tiveram dificuldade em discutir o tema
da segurança pública, pois costumam enfrentar o assunto com ideias abstratas
como “direitos humanos”, ou com projetos que ofendem a tal moralidade da qual
falei há pouco, como a “descriminalização do consumo de drogas”.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro
evocou a velha máxima do “bandido bom é bandido morto”. Foi o bastante para que
as pessoas, assustadas, fossem tomadas por certo sentimento hobbesiano,
aceitando de boa vontade abrir mão de algumas liberdades em nome de um Estado
autoritário e violento, capaz de trazer a sensação de segurança. O medo é afeto
político muito poderoso.
3°)
A narrativa da ineficiência da democracia
Foram muitos os desdobramentos
dos eventos que aprendemos a chamar de “jornadas de junho de 2013”. Ainda não
entendemos bem o que aconteceu naquele momento e o próprio significado de “2013”
está sendo disputado.
Mesmo diante de tantas
incertezas e caminhando em terreno ainda pouco sólido, estou muito convencido
de que junho de 2013 passou uma mensagem para a sociedade brasileira: a
democracia representativa criada nos anos da redemocratização seria corrupta e
ineficiente na gestão dos serviços públicos e na promoção do Bem-Estar Social.
Os números mostram outra
realidade. Desde a década de 1990, o Brasil vem caminhando relativamente bem no
que se refere à qualidade e a eficiência dos serviços públicos.
Não, leitor e leitora, não
estou louco!
Todos os dados apontam para a
evolução no acesso à educação e à saúde, no combate à mortalidade infantil, no
aumento da rede de atendimento na saúde básica.
Mas como o que importa é a tal
da “percepção”, os dados estatísticos são pouco relevantes. As “jornadas de
2013”, tão bem exploradas e cooptadas pela mídia hegemônica, pintaram para a
sociedade brasileira um quadro de total colapso e ineficiência na gestão dos
serviços públicos. Se o quadro não é totalmente falso, está longe de ser
completamente verdadeiro.
A mensagem foi transmitida com
sucesso e continuou a alimentar a revolta social em 2015 e 2016. O saldo desse
ativismo da sociedade civil pode ser resumido por um sentimento de “fora
todos”, de “tudo está errado”, “tem que mudar tudo isso aí”. Temos aqui terreno
fértil para o surgimento de lideranças que se apresentam como antissistemas,
como “outsiders”. Jair Bolsonaro era um dos poucos políticos que conseguiam
caminhar com tranquilidade entre a multidão, justamente porque foi capaz de se
apresentar como um crítico ao sistema vigente (a democracia) e um defensor da
ordem política superada (a ditatura), que passou a ser objeto de toda tipo de
saudosismo.
A percepção geral da
ineficiência da democracia alimentou a utopia autoritária representada por Jair
Bolsonaro.
4°)
A falta de compromisso do capitalismo com a civilização
Uma das principais motivações
para o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff em agosto de 2016 foi sua
recusa em adotar a agenda de desmonte do Estado que na época foi chamada de
“Ponte para o Futuro”.
Não há nenhum voo
interpretativo aqui. O próprio Michel Temer disse, em palavras cristalinas:
“Dilma caiu porque não quis adotar a Ponte para o Futuro”. Essa é uma novidade
do golpe brasileiro: os golpistas assumem que foi golpe, sem nenhum constrangimento.
É antigo o projeto de desmonte
do Estado brasileiro. Podemos encontrar sua origem lá na década de 1950, com o
udenismo. Porém, esse projeto sempre teve dificuldades para se transformar em
realidade. Nem mesmo a Ditadura militar o fez. Na década de 1990, os tucanos
avançaram, mas nem tanto.
Os governos petistas
interromperam a marcha, que foi acelerada com Temer. Em dois anos, Michel Temer
conseguiu o que três gerações de políticos e economistas liberais não foram
capazes de fazer: tirar do controle do Estado o planejamento do desenvolvimento
nacional, entregando-o ao mercado. A famosa “PEC dos Gastos” é o grande símbolo
desse sucesso.
As forças do mercado sabiam
muito bem que as eleições de 2018 representavam um risco para continuidade
desse projeto. O primeiro movimento foi garantir que Lula ficasse de fora
da corrida presidencial. Depois, foi colocada em movimento uma campanha
negativa, visando a destruição do Partido dos Trabalhadores. O objetivo era
fortalecer o outro polo do sistema político, aquele que até então era o dono do
antipetistmo: o PSDB.
Jair Bolsonaro atravessou o
processo e as forças do capital não hesitaram em abandonar o antigo aliado e
firmar matrimônio com um novo amor. A popularidade de Bolsonaro se tornou a
garantia da legitimação eleitoral da agenda econômica do golpe parlamentar. Não
houve debate econômico, projetos de desenvolvimento nacional não foram
discutidos. Jair Bolsonaro foi eleito, exclusivamente, na base do antipetismo
repaginado e do sentimento hobbesiano alimentado por uma população assustada.
Paulo Guedes foi silenciado durante toda a campanha.
As forças do mercado
comemoraram a eleição de Bolsonaro. O ideal mesmo seria Alckmin, mas Bolsonaro,
com a chancela de Paulo Guedes, serve também. Machista, autoritário,
violento, homofóbico? Sim, não importa. O capitalismo não tem o menor
compromisso com a civilização.
A eleição de Bolsonaro inquieta
e assusta o mundo inteiro. Dentro e fora do país, aqueles que têm um mínimo
compromisso com os valores que fundam a civilização se perguntam: como isso
aconteceu? Como foi possível?
Ainda vamos nos debater muito
com essas perguntas. Historiadores, sociólogos e cientistas políticos vão
propor inúmeras hipótese explicativas.
Fato mesmo é que Bolsonaro não
surgiu ontem. Ele está aí há muito tempo, no submundo da política brasileira.
Ignoramos, não prestamos atenção, subestimamos, debochamos. Acreditamos que o
Brasil não se rebaixaria tanto assim. No fundo, bem no fundo, nos iludimos,
achando que o Brasil tinha melhorado. Melhorou não. É isso aí mesmo. Sempre
foi.