Quem não quer democracia?
Um olhar ligeiro sobre a conjuntura política mostra a impostura de afirmações que não encontram o mais leve respaldo empírico na história recente. Mas uma perguntinha inconveniente surge no cipoal da insensatez. Quem detém o monopólio da produção simbólica do desprestígio?
Gilson Caroni Filho
Um olhar ligeiro sobre a conjuntura política mostra a impostura de afirmações que não encontram o mais leve respaldo empírico na história recente. Mas uma perguntinha inconveniente surge no cipoal da insensatez. Quem detém o monopólio da produção simbólica do desprestígio?
Gilson Caroni Filho
Sábado, 15 de setembro de 2007. Uma data para ficar registrada. O embrião de um grande salto. Uma manifestação que ocupou a frente principal do jornal Folha de S.Paulo, no centro da capital paulista, marcou a criação do Movimento dos Sem Mídia (MSM). Faixas usadas na manifestação continham dizeres como: "Quero que a mídia fale, mas não me cale"; e "Imprensa plural, país igual". Algo impensável para o consenso estabelecido no campo jornalístico alguns anos antes. Um breve interregno em que editores se confraternizavam pelo "bom jornalismo" que julgavam praticar. E não lhes faltavam aplausos de conhecidos "observadores da imprensa". Como vimos, esse clima não demoraria muito, mas enquanto perdurou foi intenso.
Que toda unanimidade é burra já sabíamos desde Nélson Rodrigues. Que sua arquitetura requer a rápida desconstrução do passado e mergulho açodado em um jogo tolo de aparências continuamos a aprender no curso de uma campanha eleitoral que, para a grande imprensa, nunca terminará até que os tucanos voltem ao poder.
Nos dois primeiros anos do século, a festejada “isenção” da TV Globo no processo político, com direito a elogios à "admirável redefinição editorial da emissora", mostrou-se um sonho de outono que mal adentrou a primavera. É o caso de, mais uma vez, lembrarmos aos analistas de mídia que o pressuposto de seu exercício é o distanciamento do objeto analisado. Comemorações precipitadas obrigam a reavaliações amargas. Ou, em casos agudos de cinismo, a uma aposta no esquecimento do que foi dito e/ou escrito.
Bastaram a eleição de Lula, em 2002, e as derrotas subseqüentes das velhas oligarquias na Venezuela, Bolívia, Equador para a reluzente "carruagem democrática” regredir ao seu estágio de abóbora das forças mais reacionárias do continente. E o que era deslocamento sutil dentro dos marcos do bloco histórico se fez ataque sem tréguas contra o governo eleito, sem qualquer refinamento de edição. O noticiário editorializado, os conhecidos direcionamentos de títulos, e as coberturas viciadas mostraram à cidadania a urgência de resgatar a política do espetáculo editado. E era isso que pulsava na calçada da Alameda Barão de Limeira.
Ao contrário dos apologistas da imprensa nativa, que adotavam a própria crença como metro, alertamos que a redefinição estratégica na cobertura, em um curto espaço de tempo, não correspondia a uma efetiva postura democrática. Confundir ajuste tático com redefinição ética era de um primarismo tão gritante que chegava a ser suspeito. De pouco valeu nossa modesta contribuição. Nada havia a fazer quando o jornalismo, em discurso auto-referido, celebrava a si próprio como legado vivo de Plutarco.
De sustentáculo da ditadura, a TV Globo se transformou, como que por encanto, em fiadora da lisura do processo democrático. Bombas que sumiram de uma edição para a outra (Riocentro, 1981), censura ao movimento por eleições diretas para a Presidência da República (1985), edição de debates eleitorais para favorecer o candidato da direita (1989), expurgo de notícias que pudessem comprometer a candidatura à reeleição de FHC (1998) eram fatos que deveriam ser relevados. O momento, para jornalistas experientes, só comportava elogios. Todos exultavam a própria fantasia transformada em axioma: a mídia era, até 2006, a vencedora de qualquer pleito. E a democracia definida como festa cíclica, com dia e hora para acabar. Uma ironia histórica que insistia em eternizar o baile da ilha fiscal. As eternas bodas entre a classe dominante e sua imprensa confiável.
O editor e apresentador do Jornal Nacional, jornalista William Bonner, mais que mediador de debates era incensado como amestrador de fatos e atos. Aquele que, encarnando a face rousseauniana do campo midiático, não deixaria a “vontade geral” à mercê das manobras tergiversadoras dos políticos. O noticiário editorializado e os conhecidos direcionamentos de títulos e coberturas viciadas tiveram efeito paradoxal. Trouxeram a mídia para a agenda pública e o espaço contra-hegemônico não tem cessado de crescer.
A grande imprensa é, como afirmamos, em nossos últimos artigos para Carta Maior um campo dominado por forças que só compreendem o jogo político quando restrito a pactos oligárquicos ou transições por alto. Algo a ser combatido quando ameaça se ampliar. Para o êxito do empreendimento é necessário, paradoxalmente, despolitizar o texto, em procedimento registrado por Bourdieu: "Todos esses mecanismos concorrem para produzir um efeito global de despolitização ou, mais exatamente, de desencanto com a política (...) A ausência de interesse pelas mudanças insensíveis, isto é, por todos os processos que, à maneira da deriva dos continentes, permanecem despercebidos e imperceptíveis no instante, e apenas revelam plenamente seus efeitos com o tempo, vem redobrar os efeitos da amnésia estrutural favorecida pela lógica do pensamento no dia-a-dia pela concorrência que impõe a identificação do importante e do novo". (Sobre a televisão, pág.139)
Trata-se de, à custa do sacrifício de uma análise diacrônica, registrar o fazer político em termos pontuais e sem qualquer conexão com a historicidade do local em que ocorre ou com aspectos caros à vida do leitor/telespectador. Teríamos o primeiro passo para o que, à falta de melhor termo, chamaremos aqui de o "eterno sincrônico". Um presente que se autodefine, positivado e decantado de qualquer promessa utópica. Uma farsa vendida como bem informar em nome do "interesse público".
É daí que vem o campo fértil para ilações vazias. Como as do sociólogo Simon Schwartzman, ao analisar a manutenção da popularidade de Lula, apesar do desprestígio de instituições junto à população, segundo pesquisa do Instituto Fernando Henrique Cardoso. Para Simon, “é essa combinação, exatamente, que dá margem ao surgimento de governos unipessoais e autoritários, que passam por cima das instituições em nome de seu prestígio junto às massas”. Concluindo, o pesquisador afirma que “um Congresso fraco, desprestigiado é uma presa fácil de políticos que possam propor seu fechamento, ou sua substituição por uma assembléia constituinte, por exemplo, que possa criar as bases para um regime centralizado e autoritário".
Nada mais sem fundamentação teórica que as palavras acima. Um olhar ligeiro sobre a conjuntura política mostra a impostura de afirmações que não encontram o mais leve respaldo empírico na história recente. Mas uma perguntinha inconveniente surge no cipoal da insensatez. Quem, através de cobertura negativa, tem desgastado a imagem do parlamento? Quem detém o monopólio da produção simbólica do desprestígio? Quem, em suma, quer libertar a besta fera? Respostas para as redações. E, em se tratando do eixo Rio-São Paulo, nunca esquecendo a RBS, no sul do país, qualquer uma será excelente destinatária.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.
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