Por
Cristóvão Feil (*)
27/04/2004
00:00
Zygmunt
Bauman exalta a capacidade da narrativa dos romancistas de iluminarem os
meandros da experiência humana de estar no mundo. O grande sociólogo
contemporâneo, nascido na Polônia, faz essa constatação para espicaçar a
academia e o que ele considera a alienação de alguns profissionais de ciências
sociais. Para Bauman, a literatura consegue alcançar os interstícios, as
frinchas da realidade, onde a pesquisa sociológica jamais chegou. Para ele, os
literatos são capazes de “reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a
ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu
significado”. E para ilustrar cita Borges, Tolstói, Balzac, Dickens,
Dostoiévski, Kafka, Thomas Morus. Mas poderia ter citado um conterrâneo seu,
que, a exemplo dele, fez a sua vida profissional na Inglaterra e, portanto, em
língua inglesa, que foi Joseph Conrad.
Conrad é o autor de “O coração das trevas”, alegoria (uma seqüência de metáforas) sobre as conquistas coloniais do capitalismo concorrencial do século 19. Barra pesada. Se Marx, n’O Capital, já havia ido fundo nas denúncias ilustrativas das desumanidades do moderno sistema produtor de mercadorias nas suas fases de acumulação primitiva e concorrencial, Conrad agudiza sua literatura até o ponto do horror. O personagem narrador é Marlow, protagonista de uma aventura que penetra “nos sombrios domínios do inferno particular” de uma empresa privada, exploradora de marfim na África. Homens-bagaço sugados à exaustão. Canibais recrutados como mão-de-obra informal e que, impedidos da dieta alimentar correspondente a sua condição antropológica, dedicam-se a engolir carne podre de hipopótamo, e cujo salário se resume a três pedaços de arame por semana, preciosa moeda de troca naqueles “confins de ermas solidões”. Conrad cria nesse romance um personagem mítico chamado Kurtz (depois decalcado no filme de Coppola, Apocalypse Now [1979], completamente fora desse contexto), um sujeito internado no coração das trevas, uma ponta de lança do capitalismo, agente avançado da modernidade burguesa no seio da barbárie, cuja fortaleza-sede é decorada com cabeças humanas genuínas, para mostrar com quem estão falando. “Toda a Europa contribuíra para a confecção de Kurt” – escreve Conrad. Ele é a síntese mais acabada do etos da modernidade. A Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros (e só falta Conrad completar, debochadamente, “...e pró adoção de modernos barbarismos”) confiou a Kurtz o preparo de um relatório sobre a África. O relatório contém pérolas do tipo: “nós os brancos, considerando o progresso que já tínhamos alcançado, devemos forçosamente ser encarados por eles (os selvagens) como seres sobrenaturais”; “chegamos a eles investidos dos poderes de uma divindade”; para concluir com a aterradora sentença de morte – “Exterminemos todos os bárbaros!”. As semelhanças fundamentalistas com a presente conjuntura mundial não são mera coincidência.
Bem antes de Michel Foucault, Conrad já denunciava, através de sua literatura, o discurso da “luta de raças” funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente de normalização da sociedade (Foucault)...
Veja, também, que Conrad aponta o uso astucioso do imaginário mágico-mítico das populações autóctones. Kurtz, o homem-síntese da Europa civilizada, da Europa duas vezes desencantada-desmagificada-racionalizada-intelectualizada (Max Weber), tanto pela ética religiosa judaico-cristã, quanto pelo espírito do racionalismo científico, não hesita em lançar mão de expedientes considerados primitivos, como a idolatria e o sobrenatural, com objetivos de submissão, conquista e normalização.
Alguns comentadores (nem chegam a ser críticos) afirmam levianamente que Kurtz enlouquece na selva, que perde o juízo, tendo em vista a selvageria e a barbárie com as quais convive por anos a fio. Nada mais etnocêntrico. Como se a hipotética “loucura” viesse de fora, como se fosse inoculada pela relação promíscua com os selvagens. Considerar assim seria uma simplificação grosseira, além, de irrelevante. Como indivíduo, ele, de fato, fica sensivelmente abalado com o que provocou naquele lugar: “O horror! O horror!” Mas como agente social da modernidade burguesa, Kurtz tem as taxas de lucidez e as taxas de demência em doses flutuantes de equilíbrio e controle racionais para, tanto impor sua vontade de predador da Natureza (humana, animal e vegetal), quanto para – com método e determinação – traficar espíritos, força de trabalho semi-escrava e mercadorias com objetividade de propósitos sincronizados a uma rede de negócios comerciais na distante Europa. Onde está a loucura disso? Muito ao contrário, sente-se o tom permanente da acuidade, da expertise, da logística complexa e da organicidade sistêmica em todas essas ações gerenciais de predação da Natureza, nas suas várias formas de vida. É a “arte da guerra” a serviço da rapinagem comercial. E a rapinagem não é somente de elefantes e seus cobiçados marfins, ela corrompe por igual o ambiente inteiro, dissolvendo, sobretudo, o homem e a sua cultura. A cogitada “loucura” de Kurtz é como o procedimento do feiticeiro – lembrado por Marx, no Manifesto – que, incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço, vê-se vítima de seus efeitos. Os danos causados, no limite, levam perigo ao próprio empreendimento colonial europeu, seus patrões. A “loucura” é – a rigor – um lento processo de lumpenização do personagem. Kurtz não enlouquece, transforma-se num lúmpen. Em alguém que se descola de sua classe e, incapaz de voltar ao seio de uma vida burguesa, torna-se um marginal imprudente que coloca em risco a mecânica do sistema. Simbolicamente, ele seria o lúmpen fundamental, o lúmpen essencial.
Como um Fausto lúmpen pós-moderno, se envenena com as emanações maléficas de seus próprios feitos. Se o Fausto de Göethe era moderno, o Fausto lúmpen representa a pós-modernidade. Vive os limites fisiológicos do dia-a-dia. Como um cão que desconhece o seu futuro, o lúmpen pós-moderno só tem o presente. Vive tão-somente a unidimensional existência fisiológica, como qualquer animal.
O trem do capitalismo já passou pela estação da modernidade e transita agora pela estação da pós-modernidade. Cada vez menos setores, classes e indivíduos cabem nesse sinistro trem da história. Abandonados pelo caminho, vão sobrando todos os rejeitos do moderno sistema produtor de mercadorias. O lúmpen é a escumalha que fica no rastro desse itinerário perverso. O grande personagem pós-moderno é o lúmpen, “o lixo de todas as classes”, “massa desintegrada” (Marx), desgovernada que é vomitada pelo sistema, todos os dias. Cresce como cogumelo na vida social contemporânea. Estamos em plena invasão lúmpen, fenômeno dinâmico que produz um etos, uma cultura e perfis sociológicos que lhes correspondem. Há punhados de exemplos. O mais recente no Brasil é o da proliferação dos bingos, jogo-lúmpen que servia de fachada para toda a sorte de atividade marginal e anti-social. Felizmente o governo federal teve a coragem de fazer cessar essas usinas de lumpesinato. Em que pese, o causador dessa proibição ter sido outro personagem lúmpen que assola a República, o do barbabé-quadrilheiro que trafica influências e recursos públicos para fins pessoais e privados. A crescente criminalização da vida social é uma derivação da dinâmica lúmpen. O crime passa a constituir-se em força produtiva e meio de vida para milhões de pessoas. Manifesta-se, no plano econômico, de múltiplas e criativas formas: “acordos e cartéis, abusos de posição de liderança, dumping e vendas casadas, delitos de iniciados e especulação, absorção e desmembramento de concorrentes, balanços falsos, manipulações contábeis e de preços de transferências, fraude e evasão fiscal por filiais off shore e sociedades virtuais, desvio de créditos públicos e mercados fraudados, corrupção e comissões ocultas, enriquecimento ilícito e abuso de bens sociais, vigilância e espionagem, chantagem e delação, violação do direito do trabalho e da liberdade sindical, da higiene e da segurança, das cotizações sociais e ambientais” (Brie). A vanguarda é o lúmpen.
A lavagem de fundos ilícitos pelos principais bancos dos Estados Unidos constitui uma fonte importante de fluxos externos para aquele país. Uma subcomissão do Senado americano calculou essa cifra em torno de 500 bilhões de dólares/ano. São recursos de múltipla origem: desde o narcotráfico, máfia russa e japonesa até o caixa dois de companhias multinacionais, depósitos de paraísos fiscais “legalmente” tolerados. Tráfico de tudo: novos narcóticos sintéticos, cocaína, armamento pesado, órgãos humanos, alta prostituição, falsificação de grifes (muitas vezes pelos próprios proprietários, com o intuito de aproveitar o crescente mercado-lúmpen informal em todas as grandes cidades do mundo), pirataria na informática e na indústria fonográfica, o tráfico de animais (só este tráfico, movimenta anualmente cerca de 20 bilhões de dólares), etc.
Toda a inteligência e logística estatal norte-americana do serviço secreto que era empregado na Guerra Fria onde opera, hoje? Ganha um doce quem disser que é na nova guerra econômica pela americanização de fundos legais e ilegais (fundos-lúmpen), tanto faz. A moeda é uma mercadoria vil que procura proteção máxima; e os EUA podem dispor de meios para garantir-lhe segurança e rentabilidade.
O comércio mundial anual situa-se, hoje, “ao redor de 5 trilhões de dólares, calcula-se que 20% por via do crime, ou 1 trilhão de dólares” (Brie). Essa riqueza-lúmpen é administrada lisa e serenamente pelos grandes bancos do planeta, por grandes escritórios de advocacia, mega-corretores, intermediários diversos, gerentes e diretores de trustes e fiduciárias, constituindo um bolão-lúmpen que é lavado todos os dias, em quantidades parcelares, pela chamada economia legal. Essa mega lavanderia-lúmpen cobra pedágio em vidas humanas. A Rocinha é apenas um exemplo nacional que ilustra essa internacional-lúmpen da violência naturalizada.
O crescimento mundial da dinâmica lúmpen é um indicativo evidente da enfermidade estrutural do sistema produtor de mercadorias. Os filhos de Kurtz proliferaram e querem ser vanguardas da anomia social. O modo lúmpen de estar no mundo é o último capítulo da saga Iluminista. A montanha liberal pariu ratos que roem a humanidade do homem. À esquerda acomodada, restam apenas podres poderes.
Na foto: Joseph Conrad
Conrad é o autor de “O coração das trevas”, alegoria (uma seqüência de metáforas) sobre as conquistas coloniais do capitalismo concorrencial do século 19. Barra pesada. Se Marx, n’O Capital, já havia ido fundo nas denúncias ilustrativas das desumanidades do moderno sistema produtor de mercadorias nas suas fases de acumulação primitiva e concorrencial, Conrad agudiza sua literatura até o ponto do horror. O personagem narrador é Marlow, protagonista de uma aventura que penetra “nos sombrios domínios do inferno particular” de uma empresa privada, exploradora de marfim na África. Homens-bagaço sugados à exaustão. Canibais recrutados como mão-de-obra informal e que, impedidos da dieta alimentar correspondente a sua condição antropológica, dedicam-se a engolir carne podre de hipopótamo, e cujo salário se resume a três pedaços de arame por semana, preciosa moeda de troca naqueles “confins de ermas solidões”. Conrad cria nesse romance um personagem mítico chamado Kurtz (depois decalcado no filme de Coppola, Apocalypse Now [1979], completamente fora desse contexto), um sujeito internado no coração das trevas, uma ponta de lança do capitalismo, agente avançado da modernidade burguesa no seio da barbárie, cuja fortaleza-sede é decorada com cabeças humanas genuínas, para mostrar com quem estão falando. “Toda a Europa contribuíra para a confecção de Kurt” – escreve Conrad. Ele é a síntese mais acabada do etos da modernidade. A Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros (e só falta Conrad completar, debochadamente, “...e pró adoção de modernos barbarismos”) confiou a Kurtz o preparo de um relatório sobre a África. O relatório contém pérolas do tipo: “nós os brancos, considerando o progresso que já tínhamos alcançado, devemos forçosamente ser encarados por eles (os selvagens) como seres sobrenaturais”; “chegamos a eles investidos dos poderes de uma divindade”; para concluir com a aterradora sentença de morte – “Exterminemos todos os bárbaros!”. As semelhanças fundamentalistas com a presente conjuntura mundial não são mera coincidência.
Bem antes de Michel Foucault, Conrad já denunciava, através de sua literatura, o discurso da “luta de raças” funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente de normalização da sociedade (Foucault)...
Veja, também, que Conrad aponta o uso astucioso do imaginário mágico-mítico das populações autóctones. Kurtz, o homem-síntese da Europa civilizada, da Europa duas vezes desencantada-desmagificada-racionalizada-intelectualizada (Max Weber), tanto pela ética religiosa judaico-cristã, quanto pelo espírito do racionalismo científico, não hesita em lançar mão de expedientes considerados primitivos, como a idolatria e o sobrenatural, com objetivos de submissão, conquista e normalização.
Alguns comentadores (nem chegam a ser críticos) afirmam levianamente que Kurtz enlouquece na selva, que perde o juízo, tendo em vista a selvageria e a barbárie com as quais convive por anos a fio. Nada mais etnocêntrico. Como se a hipotética “loucura” viesse de fora, como se fosse inoculada pela relação promíscua com os selvagens. Considerar assim seria uma simplificação grosseira, além, de irrelevante. Como indivíduo, ele, de fato, fica sensivelmente abalado com o que provocou naquele lugar: “O horror! O horror!” Mas como agente social da modernidade burguesa, Kurtz tem as taxas de lucidez e as taxas de demência em doses flutuantes de equilíbrio e controle racionais para, tanto impor sua vontade de predador da Natureza (humana, animal e vegetal), quanto para – com método e determinação – traficar espíritos, força de trabalho semi-escrava e mercadorias com objetividade de propósitos sincronizados a uma rede de negócios comerciais na distante Europa. Onde está a loucura disso? Muito ao contrário, sente-se o tom permanente da acuidade, da expertise, da logística complexa e da organicidade sistêmica em todas essas ações gerenciais de predação da Natureza, nas suas várias formas de vida. É a “arte da guerra” a serviço da rapinagem comercial. E a rapinagem não é somente de elefantes e seus cobiçados marfins, ela corrompe por igual o ambiente inteiro, dissolvendo, sobretudo, o homem e a sua cultura. A cogitada “loucura” de Kurtz é como o procedimento do feiticeiro – lembrado por Marx, no Manifesto – que, incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço, vê-se vítima de seus efeitos. Os danos causados, no limite, levam perigo ao próprio empreendimento colonial europeu, seus patrões. A “loucura” é – a rigor – um lento processo de lumpenização do personagem. Kurtz não enlouquece, transforma-se num lúmpen. Em alguém que se descola de sua classe e, incapaz de voltar ao seio de uma vida burguesa, torna-se um marginal imprudente que coloca em risco a mecânica do sistema. Simbolicamente, ele seria o lúmpen fundamental, o lúmpen essencial.
Como um Fausto lúmpen pós-moderno, se envenena com as emanações maléficas de seus próprios feitos. Se o Fausto de Göethe era moderno, o Fausto lúmpen representa a pós-modernidade. Vive os limites fisiológicos do dia-a-dia. Como um cão que desconhece o seu futuro, o lúmpen pós-moderno só tem o presente. Vive tão-somente a unidimensional existência fisiológica, como qualquer animal.
O trem do capitalismo já passou pela estação da modernidade e transita agora pela estação da pós-modernidade. Cada vez menos setores, classes e indivíduos cabem nesse sinistro trem da história. Abandonados pelo caminho, vão sobrando todos os rejeitos do moderno sistema produtor de mercadorias. O lúmpen é a escumalha que fica no rastro desse itinerário perverso. O grande personagem pós-moderno é o lúmpen, “o lixo de todas as classes”, “massa desintegrada” (Marx), desgovernada que é vomitada pelo sistema, todos os dias. Cresce como cogumelo na vida social contemporânea. Estamos em plena invasão lúmpen, fenômeno dinâmico que produz um etos, uma cultura e perfis sociológicos que lhes correspondem. Há punhados de exemplos. O mais recente no Brasil é o da proliferação dos bingos, jogo-lúmpen que servia de fachada para toda a sorte de atividade marginal e anti-social. Felizmente o governo federal teve a coragem de fazer cessar essas usinas de lumpesinato. Em que pese, o causador dessa proibição ter sido outro personagem lúmpen que assola a República, o do barbabé-quadrilheiro que trafica influências e recursos públicos para fins pessoais e privados. A crescente criminalização da vida social é uma derivação da dinâmica lúmpen. O crime passa a constituir-se em força produtiva e meio de vida para milhões de pessoas. Manifesta-se, no plano econômico, de múltiplas e criativas formas: “acordos e cartéis, abusos de posição de liderança, dumping e vendas casadas, delitos de iniciados e especulação, absorção e desmembramento de concorrentes, balanços falsos, manipulações contábeis e de preços de transferências, fraude e evasão fiscal por filiais off shore e sociedades virtuais, desvio de créditos públicos e mercados fraudados, corrupção e comissões ocultas, enriquecimento ilícito e abuso de bens sociais, vigilância e espionagem, chantagem e delação, violação do direito do trabalho e da liberdade sindical, da higiene e da segurança, das cotizações sociais e ambientais” (Brie). A vanguarda é o lúmpen.
A lavagem de fundos ilícitos pelos principais bancos dos Estados Unidos constitui uma fonte importante de fluxos externos para aquele país. Uma subcomissão do Senado americano calculou essa cifra em torno de 500 bilhões de dólares/ano. São recursos de múltipla origem: desde o narcotráfico, máfia russa e japonesa até o caixa dois de companhias multinacionais, depósitos de paraísos fiscais “legalmente” tolerados. Tráfico de tudo: novos narcóticos sintéticos, cocaína, armamento pesado, órgãos humanos, alta prostituição, falsificação de grifes (muitas vezes pelos próprios proprietários, com o intuito de aproveitar o crescente mercado-lúmpen informal em todas as grandes cidades do mundo), pirataria na informática e na indústria fonográfica, o tráfico de animais (só este tráfico, movimenta anualmente cerca de 20 bilhões de dólares), etc.
Toda a inteligência e logística estatal norte-americana do serviço secreto que era empregado na Guerra Fria onde opera, hoje? Ganha um doce quem disser que é na nova guerra econômica pela americanização de fundos legais e ilegais (fundos-lúmpen), tanto faz. A moeda é uma mercadoria vil que procura proteção máxima; e os EUA podem dispor de meios para garantir-lhe segurança e rentabilidade.
O comércio mundial anual situa-se, hoje, “ao redor de 5 trilhões de dólares, calcula-se que 20% por via do crime, ou 1 trilhão de dólares” (Brie). Essa riqueza-lúmpen é administrada lisa e serenamente pelos grandes bancos do planeta, por grandes escritórios de advocacia, mega-corretores, intermediários diversos, gerentes e diretores de trustes e fiduciárias, constituindo um bolão-lúmpen que é lavado todos os dias, em quantidades parcelares, pela chamada economia legal. Essa mega lavanderia-lúmpen cobra pedágio em vidas humanas. A Rocinha é apenas um exemplo nacional que ilustra essa internacional-lúmpen da violência naturalizada.
O crescimento mundial da dinâmica lúmpen é um indicativo evidente da enfermidade estrutural do sistema produtor de mercadorias. Os filhos de Kurtz proliferaram e querem ser vanguardas da anomia social. O modo lúmpen de estar no mundo é o último capítulo da saga Iluminista. A montanha liberal pariu ratos que roem a humanidade do homem. À esquerda acomodada, restam apenas podres poderes.
Na foto: Joseph Conrad
(*) Cristóvão Feil é sociólogo e ensaísta.