Uma “potência acorrentada”.
por José Luís Fiori
“Em qualquer momento da história é possível acovardar-se e
submeter-se, mas, atenção, porque o preço das humilhações será cada vez maior e
insuportável para a sociedade brasileira”
J.L.F. “História, estratégia e desenvolvimento”,
Editora Boitempo, São Paulo, 2014, p: 277
Fatos são fatos: na
segunda década do século XXI, o Brasil ainda é o país mais industrializado da
América Latina e é a oitava maior economia do mundo; possui um estado
centralizado e uma sociedade altamente urbanizada e é o principal player
internacional do continente sul-americano. E apesar de sua situação atual,
absolutamente desastrosa, segue sendo um dos países do mundo com maior
potencial pela frente, se tomarmos em conta seu território, sua população e sua
dotação de recursos estratégicos. Mais do que isto: goste-se ou não, entre 2003
e 2014, o Brasil teve uma política
externa que procurou aumentar os “graus de soberania” do país, frente às
“grandes potências” e dentro do sistema internacional como um todo, através de
alianças estabelecidas fora do continente americano, sobretudo no caso da
criação do grupo econômico do BRICS, obedecendo uma estratégia internacional de
longo prazo, definida e exposta em
documentos oficiais que foram aprovados pelo Congresso Nacional. Seu objetivo explícito era aumentar e
projetar a influência diplomática e o poder político e econômico do Brasil
dentro do seu “entorno estratégico”, incluindo América do Sul, África
Subsaariana Ocidental, Antártida e a própria Bacia do Atlântico Sul. O Brasil já
havia ingressado no pequeno grupo dos estados e economias nacionais que exercem
liderança dentro de suas próprias regiões e era necessário começar a atuar como
uma potência em ascensão, porque dentro deste grupo de países existe uma lei de
ferro: “quem não sobe, cai”. Por isso mesmo, já naquele momento, o Brasil
começou a experimentar as consequências de sua nova postura, ingressando num
novo patamar de competição, cada vez mais feroz, com países que lutam entre si
permanentemente para galgar novas posições na hierarquia do poder e da riqueza
mundial.
Este foi um momento crucial da história recente do Brasil:
para seguir em frente e aproveitar aquela oportunidade estratégica, era
indispensável a consolidação de uma coalisão de poder interna, sólida, homogênea
e decidida, com capacidade efetiva de aproveitar as brechas e avançar com
decisão nos momentos oportunos. Havia que olhar para a frente e pensar grande,
para não se amedrontar nem ser atropelado pelos concorrentes e pela própria
história. Mas em todo momento as portas sempre estiveram abertas, e sempre foi
possível acovardar-se e recuar, apesar de que o preço do recuo fosse cada vez
maior. E foi exatamente isto que aconteceu: uma parte da elite civil e militar
do país, e da própria sociedade brasileira, decidiu recuar e pagar o preço de
sua decisão. Optaram pelo caminho do Golpe de Estado, e depois redobraram sua
aposta, numa coalisão formada às pressas que culminou com a instalação no
Brasil de um governo ‘paramilitar’ e de extrema-direita, que nesse momento está
se propondo mudar radicalmente o rumo da política externa do país, com o
abandono de algumas posições tradicionais do Itamaraty e com a denúncia raivosa
da política externa seguida pelo Brasil entre 2003 e 2014. Tudo em nome de uma
cruzada contra uma espécie de ectoplasma que eles chamam de “marxismo cultural”
e que foi inventado pela ultra-direita norte-americana e da “salvação da
civilização judaico-cristã”, segundo o novo chanceler brasileiro que acumula
asnices diárias que são objeto da risota mundial. Foi assim que, logo de
partida, o novo governo apoiou a intervenção militar na Venezuela, que havia
sido anunciada pelos Estados Unidos, e que acabou se transformando numa
“invasão humanitária” que foi um gigantesco fracasso e representou uma humilhação
para o Itamaraty, que acabou sendo alijado – pela primeira vez na história da
América do Sul – de uma negociação
fundamental para o continente e que foi
realizada na Noruega, entre o governo e a oposição venezuelana. Simultaneamente, o novo governo se propõe
levar à frente, de forma rápida e atabalhoada, uma desmontagem “selvagem” – do
tipo que foi feita na Rússia dos anos 90 – de todos os principais instrumentos
estatais de proteção e defesa da população, do território, e dos recursos
naturais, industriais e tecnológicos brasileiros.
Mas existe uma coisa que chama a atenção no meio da
balbúrdia: o fato de que não exista ninguém dentro deste novo governo que
consiga dizer minimamente qual é o seu projeto para o Brasil! Qual é afinal o
seu objetivo para o país, no médio e longo prazo? O núcleo central do governo simplesmente não
fala, nem pensa, só agride e repete frases de efeito. Os militares aposentados que estão no governo
– da chamada “geração Haiti” – dão murros, esbravejam, ficam apopléticos, e
quando falam, os que falam, costumam dizer coisas desconexas e inoportunas. Os
religiosos fundamentalistas recitam versículos bíblicos, e parece que vivem
cegados por suas obsessões sexuais. Os juízes e procuradores que participaram
do golpe de estado e da “operação Bolsonaro”, parece que só falam entre si e
com seus tutores norte-americanos, não conseguindo enxergar um palmo além do
seu nariz provinciano. E por fim, os financistas e tecnocratas de Chicago,
amigos do ministro da economia, não conhecem o Brasil nem os brasileiros e
parecem robôs de uma ideia só. Mesmo assim, é possível deduzir o que está na
cabeça daqueles que efetivamente financiaram e seguem tutelando este verdadeiro
bando de indigentes mentais, a partir dos artigos e manifestações que aparecem
nos seus jornais e revistas periódicas.
Durante a República Velha, as oligarquias agrárias e as
elites financeiras brasileiras sempre admiraram e invejaram o sucesso do modelo
“primário-exportador” argentino de integração com a economia inglesa, bem
sucedido durante a segunda metade do século XIX. E mesmo depois da crise de 30
e da Segunda Guerra Mundial, muitas lideranças políticas e empresariais, e
muitos economistas, como Eugenio Gudin, seguiram defendendo este modelo para o
Brasil, mesmo quando a Argentina já tivesse entrado em crise e iniciado o seu
longo declínio que chega até os nossos dias. Basta dizer que em pleno período
desenvolvimentista, Roberto Campos, que foi presidente do BNDE e ministro do
governo militar de 1964, chegou a dizer em algum momento que o seu sonho seria
fazer do Brasil um grande Canadá. O mesmo sonho que ainda embala a cabeça dos
empresários e banqueiros que financiaram e que ainda sustentam o Sr. Guedes
dentro do governo do capitão Bolsonaro. Sua proposta e sua agenda foi sempre a
mesma, e segue sendo repetida como uma ladainha religiosa: é necessário abrir,
desregular, privatizar e desindustrializar a economia brasileira, para
radicalizar o velho modelo argentino e alcançar um novo estatuto nas relações
do Brasil com os Estados Unidos e com a União Europeia. Um estatuto parecido
com o dos velhos Domínios da Grã-Bretanha, como foi o caso exatamente do
Canadá, mas também da Austrália e da Nova Zelândia, até avançado Século XX.
Territórios que gozavam de uma condição diferente das demais colônias
britânicas, porque mantinham seus governos e sua vida política interna
autônomas, mas tinham sua economia, sua defesa e sua política externa controladas
pela Inglaterra. E este é hoje, sem dúvida, o projeto e a utopia dos segmentos
da elite econômica brasileira que decidiram apostar o seu futuro neste governo,
que já se transformou numa verdadeira excrecência histórica. Um projeto que não
é “teoricamente” impossível, mas que enfrentaria grandes obstáculos reais,
situados dentro e fora do Brasil. O Brasil é um país continental, com uma
população desigual e muitas vezes superior a dos velhos domínios britânicos,
com uma economia muito mais desenvolvida e heterogênea, e com grupos de
interesse poderosos e que serão literalmente destruídos, caso avance este
projeto ultraliberal. Por outro lado, os Estados Unidos, hoje sob um governo
que pratica uma política econômica de tipo nacionalista e protecionista, não se
submete e não aceita nenhum tipo de negociação ou acordo que entre em conflito
com os seus “interesses nacionais”, econômicos e estratégicos. Muito menos
ainda, assumiria a responsabilidade da tutela econômica de um país com as
dimensões do Brasil, sob um governo absolutamente caótico, e com uma economia
agroexportadora que compete com a economia americana e, em particular, com os
grupos do meio-oeste que foram essenciais para a vitória eleitoral de Donald
Trump.
Mas existe uma outra dimensão deste “Projeto Dominium”: a
troca da condição de aliado militar
regional, que o Brasil sempre ocupou durante o século XX, pela condição de
“protetorado militar” dos Estados Unidos: um território autônomo que abre mão
de ter sua própria política de defesa, e
de segurança nacional em troca da proteção
militar de um estado mais forte, neste caso, dos Estados Unidos.
Aceitando obrigações que podem variar muito, dependendo da natureza do seu
relacionamento com seu protetor e, também, da sua localização geográfica e geopolítica
dentro do sistema internacional. Isto já aconteceu, de certa forma, no caso da
participação brasileira, ao lado dos Estados Unidos, na invasão de Santo
Domingo, em 1964. Mas em nenhum momento do século passado, soldados brasileiros
ocuparam posições dentro da hierarquia interna de um comando militar regional
dos Estados Unidos, como estão se propondo fazer neste momento. Nem tampouco
jamais no século passado foi sequer cogitado a abertura de bases militares
estrangeiras dentro do território brasileiro. Nesse sentido, existe uma grande
diferença que precisa ser sublinhada, porque o projeto econômico do Dominium
tropeça com obstáculos materiais e com interesses de grupos que são reais e
muito pesados. Mas o projeto do “protetorado militar” é perfeitamente viável do
ponto de vista material, e conta com a simpatia das Forças Armadas
norte-americanas, mas ele depende de uma decisão soberana da sociedade e do
estado brasileiro, e não apenas das Forças Armadas. E esta decisão tem limites
jurídicos e morais, políticos e constitucionais, até porque quem financia a
existência das Forças Armadas é o povo brasileiro, com o objetivo de que cuide
de sua soberania, nos termos da sua Constituição. E não cabe moralmente a um
governo, por mais direitista que seja, exigir que suas Forças Armadas se
submetam ao comando de outro estado que não seja o brasileiro.
Em síntese, do ponto de vista econômico, já não é factível –
em pleno Século XXI – transformar o
Brasil numa Nova Zelândia, mas é perfeitamente possível, do ponto de vista
militar, acorrentar a nação e submeter
os brasileiros à humilhação de bater continência para a bandeira de outro povo. Uma traição que
deixará uma mancha na história do Brasil causando-lhe um dano irreparável, a
menos que a nação brasileira levante-se e volte a caminhar com suas próprias
pernas. Quando esta hora chegar, entretanto, será necessário tomar decisões
radicais em linha com um novo projeto de longo prazo que se sustente com seus
próprios apoios internos, sem recuar nem esmorecer. Lembrando sempre que todos
os povos que conseguiram superar grandes catástrofes, para chegar a ser grandes
nações tiveram primeiro que desacorrentar suas próprias mãos, e assumir o
controle de sua soberania, para poder definir seus próprios objetivos e
construir o seu próprio futuro.
Julho de 2019
José Luís Fiori – Professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI, coordenador do GP da
UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”;, coordenador
adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de
Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou, “O Poder global e a nova
geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007 ; “História, estratégia e
desenvolvimento”, Boitempo, em 201 ; e,
“Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.
O Plano Nacional de Defesa (PND), e a Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovados pelo Congresso Nacional, em
2005 e 2008, respectivamente.
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O capitalismo feliz
Canadá, Austrália e Nova Zelândia foram colônias de povoamento da Inglaterra, durante o século XIX, e depois se transformaram em Domínios da Coroa Britânica, até depois da 2º Guerra Mundial. Mas até hoje são nações ou reinos independentes que fazem parte Commonwealth, e mantém o monarca inglês como seu chefe de estado. Como colônias e domínios funcionaram sempre como periferia da economia inglesa, mesmo depois de iniciado seu processo de industrialização, mantendo-se – em média - a participação do capital inglês, em até 2/3 da formação bruta de capita destes três países. E todos eles estabeleceram relações análogas com a economia norte-americana, depois do fim da Segunda Guerra. Neste século e meio de história, o Canadá – como caso exemplar – esteve ao lado da GB e dos EUA na 1º e 2 º Guerras Mundiais, alem de participar Guerra dos Boers e da Guerra da Coréia e de ser um dos membros fundadores da OTAN, em 1949. Participou das Guerras do Golfo, do Iraque, do Afeganistão e da Líbia, e participa diretamente do sistema de defesa aeroespacial norte-americano. E o mesmo aconteceu, em quase todos os casos, com a Austrália e a Nova Zelândia.
Por outro lado, os países nórdicos foram expansivos, e a Suécia em particular, foi um grande império dominante, dentro da Europa, até o Século XVIII. Mas depois de sua derrota para a Rússia, em 1720, e depois da sua submissão dentro da hierarquia de poder europeia, os estados nórdicos se transformaram em pequenos países, com baixa densidade demográfica e alta dotação de recursos naturais, funcionando como pedaços especializados e cada vez mais sofisticados do sistema produtivo europeu. A Suécia ficou famosa pelo “sucesso” de sua política econômica anticíclica ou “keynesianas”, depois da crise de 1929, mas de fato logrou superar os efeitos da crise graças à suas condição de sócia econômica, e fornecedora de aço e equipamentos para a máquina de guerra nazista, que também ocupou a Dinamarca e exerceu grande influencia sobre a região, durante toda a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, a Dinamarca e a Noruega se tornaram membros da OTAN, e a Dinamarca segue sendo uma passagem estratégica para o controle do mar Báltico.
Por sua vez, a Suécia participou das Guerras do Kosovo e do Afeganistão, e foi fornecedora de armamentos para as forças anglo-saxônicas, na Guerra do Iraque. Por último, a Finlândia, que fez parte da Suécia, até 1808, e da Rússia, até 1917, acabou ocupando um lugar fundamental dentro da Guerra Fria, até 1991, e ainda ocupa uma posição estratégica até hoje, no controle da Bahia da Finlândia, e da própria Rússia.
Por tudo isto, apesar de que estes países tenham origens e trajetórias diferentes, é possível identificar algumas coisas que eles têm em comum:
i. São pequenos ou tem uma densidade demográfica muito baixa
ii. Tem excelente dotação de recursos, alimentares, minerais ou energéticos.
iii. Todos ocupam posições decisivas no tabuleiro geopolítico mundial.
iv. E todos se especializaram em serviços ou setores industriais de alta tecnologia, e em alguns casos, dentro da industria militar.
Alguns diriam que se trata de um caso típico de “desenvolvimento a convite”, mas isto quer dizer tudo e nada ao mesmo tempo. O fundamental é que o sucesso econômico destes países não se explica por si mesmo, porque desde o século XIX, os “domínios” operaram como “fronteiras de expansão’ do “território econômico” inglês, e como bases militares e navais do Império Britânico. E os países nórdicos, depois que foram submetidos, se transformaram em satélites especializados do sistema de produção, e do poder expansivo europeu. E hoje, finalmente, todos estes sete países operam como pequenas “dobradiças felizes” da estrutura militar e do poder global dos Estados Unidos.
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