Pepe Escobar - R2P: De “Responsabilidade de Proteger” a “Razão para Pilhar”
Pepe Escobar |
27/8/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
A tarefa-carga do homem branco [1] não prevê perguntar aos africanos o que pensam do massacre ocidental/monárquico em curso contra os árabes nas praias do norte do continente. Mas alguns, pelo menos, decidiram pôr fim à enrolação.
Mais de 200 líderes e intelectuais africanos distribuíram carta aberta em Johannesburg, África do Sul, chamando a atenção para o “uso distorcido do Conselho de Segurança da ONU para a prática da diplomacia militarizada, com o objetivo de derrubar o governo na Líbia” e para “marginalizar a União Africana”.
Quanto aos “vencedores” ocidentais na Líbia, já nem tentam disfarçar. Richard Haass, presidente daquele almanaque de Gotha do establishment dos EUA que é o Conselho de Relações Exteriores, assina coluna no Financial Times na qual diz claramente que “a intervenção humanitária introduzida para salvar vidas que se acreditava que estivessem ameaçadas foi, de fato, intervenção política para derrubar o governo” [2] .
Quanto aos “vencedores” ocidentais na Líbia, já nem tentam disfarçar. Richard Haass, presidente daquele almanaque de Gotha do establishment dos EUA que é o Conselho de Relações Exteriores, assina coluna no Financial Times na qual diz claramente que “a intervenção humanitária introduzida para salvar vidas que se acreditava que estivessem ameaçadas foi, de fato, intervenção política para derrubar o governo” [2] .
Quanto à chusma de atores locais – líbios da Cirenaica – Haass já os despachou para a lata do lixo da história: “Os líbios não conseguirão administrar a situação e emergir por conta própria” e, com “dois milhões de barris de petróleo por dia” em jogo, a única solução é uma “força internacional”. Tradução: exército de ocupação – como no Afeganistão e no Iraque.
Bem-vindos ao neocolonialismo 2.0.
A hora da vingança
Por tudo isso, o establishment norte-americano já está tão atrevido quanto a direita rica cabeça de noz da variedade Donald “aquela coisa no cocuruto” Trump. Trump disse à Fox News: “Nós somos a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Nós apoiamos a OTAN com dinheiro e armas. E ganhamos o quê? Por que não ficaríamos com o petróleo?”
Em termos de Dia da Marmota geopolítico, é de fato o Afeganistão e o Iraque, tudo outra vez – uma orgia de saques, destruição de estátuas, segmentos de reality show televisivo para não deixar ninguém descolar o olho das telinhas, até faixas de uma torcida pró-OTAN (mais ou menos como os americanos agradeceriam aos chineses que bombardeassem New York City até reduzi-la a ruínas, para “libertá-la”).
E nem se fala da imbecilidade da grande mídia-empresa. A CNN deslocou Trípoli para o leste – para o Mediterrâneo leste, em algum ponto perto do Líbano. A BBC mostrou uma festa “rebelde” numa praça Verde em Trípoli localizada na Índia, com bandeiras da Índia. Homenagem e prova da total integração entre a OTAN e a mídia do CCG, Conselho de Cooperação do Golfo, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo – as seis ricas satrapias fundamentalistas da região.
Considerando que o CCG virtualmente ordena à Liga Árabe o que fazer, não surpreende que a Liga já tenha reconhecido o sinistro Conselho Nacional de Transição ‘rebelde’ como governo legítimo, embora só represente a Cirenáica e apesar de o Grande Gaddafi [3] continuar vivo (embora com a cabeça a prêmio: 1,6 milhão de dólares). Digamos que é o troco da Liga Árabe, por Gaddafi ter chamado o rei saudita Abdullah de “estúpido”, nas preliminares para a guerra do Iraque.
Também é como se a Líbia agora fosse um emirado árabe em construção, sem nada ter a ver com a África. O CCG financiou e armou os “rebeldes”. A União Africana era quase unanimemente contra a guerra OTAN/CCG. Ergo, no que dependa de OTAN/CCG, a África que se dane; a única coisa que realmente importa – estrategicamente – é meter uma base militar/naval do Africon/OTAN na Líbia.
E lá nos vamos, para outra Zona Verde
Já não é segredo para ninguém que agentes dos serviços secreto britânico, francês, da CIA, do Qatar e mercenários de todos os tipos choveram (de paraquedas) sobre território líbio como força de invasão, há meses, planejando e treinando “rebeldes” e em estreita coordenação com a OTAN, essa entidade prodígio da filantropia universal.
Nunca se tratou de mandado da ONU, mas... quem liga?! OTAN/CCG pagam as contas, a OTAN cuida do bombardeio e OTAN/CCG “estabilizarão” a confusão toda, como se lê em plano de 70 páginas vazado pelo Times de Londres e de Rupert Murdoch. [4]
Só tolos acreditarão na notícia-boato previsível de que o plano teria sido elaborado pelo Conselho Nacional de Transição com “ajuda ocidental”. A OTAN não se atreverá – não, pelo menos, no começo – a pôr os pés em terra; daí a proposta de “uma força-tarefa de 10.000-15.000 soldados em Trípoli”, a ser fornecida pelos Emirados Árabes Unidos, que, mais dia menos dia, lá estará. A pergunta mais eletrizante é: na folha de pagamento dos Emirados Árabes Unidos haverá mercenários estrangeiros (jordanianos, sul-africanos, colombianos) treinados pela Blackwater, ou mercenários tribais?
E – adivinhem o quê! – uma Zona Verde remix, como no Iraque, próxima da Praça Verde. São notícias quase tão deliciosas quanto o embaixador do Conselho Nacional de Transição nos Emirados Árabes Unidos, Aref Ali Nayed, a desmentir compungido o plano vazado, no mesmo momento em que Benghazi confirmava a coisa toda.
Todos já sabem também que a rendosa reconstrução de tudo que a OTAN destruiu beneficiará – e quem poderia ser?! – os “vencedores”: os países da OTAN/CCG.[5] O líder do Conselho Nacional de Transição Mustafa Abdel Jail já confirmou, em Benghazi.
Devem-se esperar ruidosas comemorações locais – e globais –, no que tenha a ver com pôr a mão no butim. Sem considerar a riqueza (ainda inexplorada) em gás e petróleo, a Líbia tem mais de 150 bilhões de dólares em bancos estrangeiros. E o Banco Central da Líbia – agora em vias de ser privatizado – guarda nada menos que 143,8 toneladas de ouro. Há também por lá água doce suficiente para um milênio, que Gaddafi começava a tornar acessível via o espetacular multibilionário Projeto “Grande Rio Feito pelo Homem” [orig. Great Man-Made River (GMR) project].
Aí está também mais uma sólida resposta à pergunta sobre por que a França decidiu, tão freneticamente, derrubar Gaddafi: as maiores empresas mundiais de exploração de água são francesas; e a possibilidade de privatizar suprimento de água doce a ser comercializado por mil anos deixou os executivos daquelas empresas, digamos... babando.
Por tudo isso, como vasto novo mercado potencialmente muito lucrativo para empresas europeias, e bem ali, na outra margem do Mediterrâneo, a Líbia é artigo de primeira, o que dá novo significado à doutrina do imperialismo humanitário e sua “responsabilidade de proteger” [orig. R2P (“Responsibility to Protect”)], que passa a significar “direito de pilhar” [orig. R2P (“Right 2 Plunder”)] – como escreveu um leitor de Asia Times Online.
O primeiro-ministro italiano Silvio “bunga bunga” Berlusconi foi gentil: encontrou-se em Milão com o primeiro-ministro do Conselho Nacional de Transição, bem à frente da nova bandeira da Líbia (de fato, é a velha bandeira monárquica do rei Idris), posta ao lado das bandeiras da Itália e da União Europeia.
E dizer que há apenas um ano, Silvio B. oferecia fantástica festa ao seu camaradinha cujas mãos adorava beijar – precisamente nosso Grande G. –, com desfile de 30 beduínos montando cavalos puros-sangues importados.
Em 2008, Silvio B. e o Grande Gaddafi assinaram tratado para enterrar a infeliz era colonial (1911-1942), pelo qual a Itália gastaria $5 bilhões ao longo de 25 anos em investimento na infraestrutura da Líbia – estradas e ferrovias; graças a esse tratado, 180 empresas italianas conseguiram contratos fabulosos na Líbia, e a Itália passou a ser a principal parceira comercial da Líbia.
Por isso, o líder do Conselho Nacional de Transição Mustafa Abdel Jalil estava obrigado a confirmar para Berlusconi que a nova Líbia manterá “relações especiais” com todos os “vencedores” da guerra de OTAN/CCG contra a Líbia; e destacou a Itália.
Semana que vem, será a vez do Xeique Abdullah bin Zayed, ministro das Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos, que visitará Benghazi para passar a mão em fatia bem gorda do bolo da reconstrução. Depois do estouro da bolha imobiliária, os Emirados Árabes Unidos pululam de empresários prontos a saltar sobre qualquer oportunidade.
E quanto ao mapa do caminho
Mas e se o Grande Gaddafi tiver carregado seu ouro? O ex-presidente do Banco Central da Líbia garante que, em Trípoli, estão fisicamente guardadas reservas equivalentes a nada menos que $10 bilhões em ouro.
Assim, enquanto os britânicos do serviço secreto metidos em trajes civis árabes e brandindo Kalashnikovs idênticas às dos “rebeldes” procuram Gaddafi “vivo ou morto”, ao estilo texano de George W Bush, o Grande Gaddafi pode bem estar comprando aliados tribais e pagando, literalmente, em ouro. Para não dizer que já conta com o apoio da tribo Gaddafi (habilíssimos caçadores noturnos), da tribo al-Magarha (atiradores de primeiríssima) e de quase toda a tribo da esposa de Gaddafi, os Warfallah (a maior do país, com mais de 2 milhões de pessoas).
Dado que o Conselho Nacional de Transição anda dizendo por todos os cantos que a Líbia pós-Gaddafi será pluralista e multicultural, já se veem sinais claros de que já começaram a construir mais uma Areia Movediça City.
Os árabes do norte absolutamente desprezam os berberes do sul – e vice-versa. A gente da Tripolitania absolutamente despreza os salafitas da Cyrenaica – e vice-versa.
Com tanta coisa em jogo, é fácil visualizar um mapa do caminho que será, com pequenas variações, o seguinte:
– Um governo do Conselho Nacional de Transição muito fraco, governo-fantoche; as tropas da doutrina do neoliberalismo de desastre distanciar-se-ão cada vez mais dos líbios habituados a 40 anos de ensino gratuito, atendimento gratuito à saúde e moradia gratuita; logo se organizará movimento de guerrilha contra a ocupação estrangeira; salafitas-jihadistas de outras latitudes árabes acorreram para a Líbia; cidades do deserto facilmente se tornarão bases de grupos guerrilheiros; os oleodutos do sudeste do país serão atacados; será réplica de Bagdá, de 2004 a 2007; haverá uma “avançada” [surge] em cenário de guerra civil/tribal sem fim; e lá estará o Afeganistão 2.0, como frente-gêmea guerrilheira – o grupo de Gaddafi contra os “rebeldes”/OTAN, e os salafitas contra a OTAN, porque o ocidente nunca admitirá que a Líbia converta-se em estado islâmico.
Gaddafi, hoje, aposta que os espiões e mercenários de OTAN/CCG converterão a Líbia em novo Iraque/Afeganistão. (É bem possível, aliás, que a OTAN adore a ideia.) Com isso, forçarão Gaddafi a entrincheirar-se mais fundo no norte da África. Voltarão as mesmas velhas táticas imperiais de dividir-para-reinar, enquanto as empresas ocidentais exercerão seus direitos de saquear.
Simultaneamente darão nova vida, numa espécie de trama secundária, à “guerra ao terror”, enquanto a recessão devora o que resta das respectivas economias nacionais. Mas o complexo industrial-militar e empresários do ramo de armas/segurança continuarão felizes da vida. Iraque/Afeganistão, tudo outra vez? Vamos ver quem pode mais.
Notas dos tradutores
[1] White man’s burden é poema de Rudyard Kipling, de 1899, um apelo para que os EUA assumam a tarefa de promover o desenvolvimento das Filipinas que acabavam de ser derrotadas na Guerra hispano-americana; é considerado o “hino” do imperialismo britânico. .
[5] Ver: “Capitalismo de desastre: abutres sobre a Líbia”.
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