De Boulos, no Le Monde Diplomatique:
O sinal de alarme soou. Com o avanço das pautas
conservadoras – nas instituições e nas ruas – e a crise do governo petista,
unir forças tornou-se uma questão de sobrevivência para a esquerda brasileira.
Daí as diversas iniciativas de “frentes de esquerda”.
Que num momento como este precisamos organizar uma frente,
parece claro. O que não é tão evidente é qual seriam o caráter e os objetivos
dela. E, ainda, se a resposta a esses temas possibilitam a formação de uma
única frente ou não.
Esse é o debate que temos hoje e que precisa ser encarado
sem receios. Definir para onde queremos ir passa por entender como chegamos até
aqui e os impasses que estão colocados para as forças populares hoje no Brasil.
Esgotamento de uma estratégia
O Partido dos Trabalhadores caminha para completar treze
anos no comando do governo federal. Durante os dois mandatos de Lula e os cinco
anos de Dilma Rousseff vimos o apogeu e o esgotamento de uma estratégia
política: o projeto de avanços sociais sem reformas estruturais.
É verdade que os governos petistas melhoraram as condições
de vida dos mais pobres, seja por meio da facilitação do crédito para o
consumo, seja pela geração de novos empregos e pelo aumento gradual do salário
mínimo, seja ainda por meio de programas sociais como o Bolsa Família, o ProUni
e o Minha Casa, Minha Vida (com todos os seus limites e contradições). E a
esquerda erra se não for capaz de reconhecer isso, estabelecendo sinal de equivalência
com o neoliberalismo tucano.
É igualmente verdade, porém, que esses governos mantiveram
intocadas as estruturas arcaicas da sociedade brasileira. Não tocaram no tema
distributivo, não ousaram mexer em privilégios e não pautaram nenhuma das
reformas populares tão necessárias aos trabalhadores. Além disso, conservaram o
modelo de governabilidade conservadora que tem sido eficaz em garantir que tudo
fique como está desde o fim da ditadura militar.
A perspectiva de limitar-se às mudanças possíveis sem conflito
nem mobilização circunscreveu o projeto petista a manejos no orçamento federal
e ao uso dos bancos públicos para estimular a economia. Isso foi suficiente
para gerar crescimento econômico enquanto a maré internacional estava
favorável. Com o crescimento, aumentava-se a arrecadação, o que permitia a
reprodução do modelo.
No entanto, a maré virou após 2008 e as condições para
manter a estratégia foram sendo minadas ano a ano. A margem para conciliação de
interesses foi se reduzindo na sociedade brasileira. Com o avanço da crise
econômica, o véu do consenso rasgou-se e o conflito social reapareceu numa cena
de polarização. A partir de junho de 2013, a política transbordou para as ruas
e abriu-se o período de disputa pelas saídas estratégicas.
Ao final das eleições de 2014 ficou claro que as coisas não
podiam mais permanecer iguais. As condições econômicas não permitiam mais o
“ganha-ganha” e as condições políticas estavam bem mais deterioradas para o
governo petista.
A saída é pela esquerda
A direita brasileira foi rápida e eficiente em construir sua
própria narrativa para a crise do petismo e apresentar suas saídas. O mantra –
repetido sem limites pela grande mídia – foi desmoralizar o PT como partido da
corrupção e associar a crise fiscal à ideia de que o governo “gastou demais” ou
aos “roubos na Petrobras”. O discurso pegou.
A saída política oferecida foi um pacote de medidas e
reformas regressivas e a fragilização do poder do Executivo. Essa agenda ganhou
força com a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara e as
manifestações de 15 de março.
Entre os projetos que passaram a pautar a agenda nacional
estão a ampliação da terceirização, uma contrarreforma política, a redução da
maioridade penal e a revisão do modelo de partilha do pré-sal.
Nesse cenário, a posição do governo Dilma foi a pior
possível. O governo não apenas deixou de estabelecer agendas progressivas, como
também fortaleceu as regressivas, com a aplicação de (e insistência em) um
ajuste fiscal antipopular.
Editou medidas provisórias que atacam o seguro-desemprego e
as pensões, aumentou compulsivamente os juros e cortou investimentos nos
principais programas sociais. Se tinha com isso a pretensão de garantir a
governabilidade junto à banca e à direita, tudo indica que fracassou: a
instabilidade política só cresce. O que o governo conseguiu com essa política
foi reduzir sua popularidade a 10% e fortalecer as saídas à direita.
Que alternativas teria? Encampar uma agenda política de
reformas populares, ajustando as contas por meio de tributação progressiva aos
ricos e assumindo de fato temas cruciais, como a democratização das
comunicações e uma reforma do sistema político. Criar uma pauta que mobilizasse
setores populares.
A situação estava dada: ou se retrocedia ou se avançava, não
havia muita margem para o meio-termo. Insistir em recompor um pacto quando não
havia mais condições para isso, visando evitar o conflito, apenas repôs este
último num terreno mais desfavorável.
Alguns devem estar pensando: “Está bem, mas e as relações de
força? O governo não faz o que quer, mas o que as circunstâncias permitem”. É verdade,
ninguém faz política nas condições que escolhe. Mas também ninguém é apenas
refém das relações de força, podendo sempre intervir para alterá-las. O governo
é uma ferramenta poderosa para incidir nas relações de força. Encarar relações
desfavoráveis como um impeditivo para enfrentamentos só fortalece e consolida
ainda mais essas relações. Se diante de um avanço da direita o governo só cede
à direita, quem ele está fortalecendo?
Que há outras possibilidades, a história nos mostra. Em
nossa América Latina, nos últimos tempos, vários governos enfrentaram condições
desfavoráveis e responderam a elas apostando na mobilização popular e no
enfrentamento político. Conseguiram avançar em reformas que pareciam
impossíveis, criaram novas relações de força.
Aqui mesmo, em abril deste ano, vimos algo nessa direção. A
aprovação do projeto da terceirização parecia assegurada até que mobilizações
nas ruas e nas redes reverteram o quadro e devolveram o projeto para a gaveta
no Senado.
As relações desfavoráveis devem ser enfrentadas, e não
servir de argumento para mais recuos. Não foi essa a escolha do governo Dilma.
Mas precisa ser a dos movimentos sociais e da esquerda brasileira, se não
quisermos ser levados pelo governo ao abismo.
Desafios de uma frente
A esquerda brasileira precisa apresentar uma saída para a
situação política que não seja mais do mesmo. Que não seja tentar recuperar uma
estratégia e uma tática que já demonstraram sinais de esgotamento.
Ante o bloqueio de avanços sociais precisamos responder com
um projeto de reformas populares que seja capaz de representar saídas claras
para a crise.
Ante a impermeabilidade do sistema político à participação
popular precisamos responder com a retomada de amplas mobilizações, fazendo das
ruas palco principal de um projeto político de esquerda.
Esse deve ser o maior objetivo de uma frente hoje no Brasil:
retomar a capacidade de mobilização social, impulsionando um novo ciclo de
ascensão das lutas populares. É nas ruas que alteraremos as relações de força.
O caráter da frente que defendemos é essencialmente de
mobilização, capaz de canalizar as insatisfações populares para um projeto de
esquerda.
Isso implica garantir um equilíbrio difícil, mas necessário.
De um lado, a frente precisa ser um bastião contra a ofensiva conservadora e as
saídas regressivas para a crise. De outro, ser capaz de enfrentar as políticas
antipopulares desse governo com igual decisão.
É possível que não consigamos enfrentar todos esses desafios
numa única frente, dada a diferença de posições que ainda persistem na esquerda
brasileira. Há aqueles que estão dispostos a enfrentar o golpismo e a ofensiva
conservadora, mas não têm a mesma disposição para combater as políticas do
governo. E há outros que, identificando de forma simplista a direita com o governo,
flertam com a onda antipetista, acreditando ilusoriamente que podem tirar algum
saldo à esquerda.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e vários outros
movimentos e organizações da esquerda têm se empenhado desde o fim de 2014 em
construir um espaço de frente que faça esse duplo enfrentamento, focando a
construção de uma agenda de mobilizações nacionais. Essa frente foi importante
para a construção de dias de luta, como o 15 de abril, o 29 de maio e o 15 de
junho. Agora convocou a mobilização de 20 de agosto.
Esperamos que, mesmo nessa diversidade de frentes e
posições, a esquerda brasileira tenha a capacidade de estar unida nas ruas para
enfrentar os desafios da conjuntura.