Grande Gil!
Pela ética hacker!
O tema da pirataria entrou no debate a partir de um debate sobre a democratização do Carnaval baiano e a "dimensão social fantástica" dessa "coisa incrível" (a entrevista foi na segunda-feira de Carnaval, na casa baiana do compositor):
Gilberto Gil: Evidentemente, alguém há de dizer: "Mas essa é uma leitura generosa!". É... Não vou fazer a leitura amesquinhada. Não interessa. Posso até ter elementos pra sustentar uma leitura mesquinha: "o apartheid continua, a separação de território continua, a exclusão classista continua...". Claro, residualmente tudo continua! Porque não é uma coisa ideal. Vamos observar os processos. Vamos observar o sentido tendencial, pra onde as coisas estão caminhando. Qual é a melhor incidência de elementos determinantes dessa vetorialização? Pra onde é que aponta o vetor? O vetor não aponta para menos democracia, pelo contrário: aponta pra mais democracia. Não vejo de outra forma.
Terra Magazine: Essa leitura predominante, crítica do Carnaval, passa por uma visão histórica, no Brasil, de que a cultura é um bem secundário?
Gil: Essa leitura ainda interpreta isso dessa forma, ainda tributa a essa visão subalterna à lógica das elites, à lógica da classe dominante, ao eurocentrismo. É pré-Lula (risos) Lula já é presidente, pô! Já chegou lá, porra... (risos)
TM: Sim, é um pouco dessa cultura carnavalizada. Dentro de sua carreira, onde [o Banda Larga Cordel] está e pra onde aponta?
Gil: Começando pela carreira. Eu acho que é consequência, desdobramento natural de minha carreira. É Tropicalismo. Da mesma maneira, é Antropofagia. São esses conceitos com os quais a gente vem trabalhando desde sempre. Democratização, protagonismos, o popular, universalismo, autonomia da dimensão simbólica diante da questão da racionalidade produtiva, do sistema racional do trabalho e do controle. É sempre o "libertariolismo", digamos assim, que a gente defendeu, propagou, que está na base do trabalho de minha geração quase toda - em particular, com mais ênfase, no movimento que nós fizemos, o Tropicalismo.
TM: A indústia fonográfica cedeu a essa nova democracia?
Gilberto Gil: Sim. Se não cedeu ainda, parcialmente ou em alguns aspectos, é uma questão de tempo, não tem muito mais para resistir. Não sei em que base essa lógica de hegemonia e dominância do modelo industrial da cultura, seja lá por que for, em que base eles vão buscar sustentar uma visão de manutenção dos seus interesses intactos. Não sei. Não vejo.
Falo de democracia exatamente nesse sentido. Há um ímpeto. Tudo o que eles próprios criam, tudo o que é produzido pelo mundo hegemônico da dominância capitalista, é elemento de fortalecimento da base democrática. Você pega todas as novas tecnologias, tudo o que está na Bolsa da Nasdaq, os grandes empreendimentos da indústria de ponta no mundo... Eu estava falando de um computador de dez dólares! Vai estar aí o projeto da Índia e do Japão. Quando você fala de um computador de dez dólares, de qual exclusão digital você pode estar falando a médio prazo? No momento em que você tenha computadores espalhados por aí, como é que você vai evitar o MP3, o MP4 e etc. etc. etc.? Não vai.
Ainda pode haver uma RIA, a sociedade das indústrias fonográficas americanas, que faz lobby no Congresso, ainda pressiona a Suprema Corte americana pra não dar ganho de causa aos jovens... Ainda pode, por quê? Porque é a classe média americana, a sociedade americana que tem computador. Mas os grandes mercados mundiais da música ainda estão com eles, que ainda vendem discos, ainda vendem DVDs. No momento em que um menino lá da tribo de não sei onde, da periferia, tenha computador, e as lan-houses estejam em todas as casas, cada casa seja uma lan-house (risos), em todas as favelas... Como eles vão controlar o desenvolvimento? Não é o desdobramento natural dos produtos, das tecnologias, dos instrumentos, das ferramentas, que eles mesmos ofereceram?
TM: No Brasil, não dá pra fazer uma inversão? Grande parte dos artistas se acomodou muito mais à visão conservadora do que a própria indústria fonográfica. Porque a indústria sente no bolso.
Gil: Sente mais rápido porque os artistas recebem por último! (risos) Eles recebem as migalhas que a indústria quer deixar pra eles [...].
TM: Por que resistir?
Gil: Eles querem resistir. Porque isso é natural, eles são refratários, são acomodados, e são ciosos dos seus interesses, que eles tendem a interpretar como seus direitos. Acham que seus interesses têm que ser interpretados como seus direitos. Às vezes não são seus direitos, são só seus interesses, que não precisam ser respeitados como direitos. Não são direitos, não. A pirataria tem direito a desafiá-los. Pirataria é desobediência civil. Tem que ser vista assim, também. Não tem que ser vista só como criminalidade. Tem que ser vista como desobediência civil! Assim como os protestos das esquerdas, dos sindicatos...
TM: É resposta à exclusão cultural?
Gil: É resposta à exclusão, um desafio para a criação de novos modelos, um desafio para a abertura de espaços mais democráticos, de participação. Não à toa está sendo politizada. O Partido Pirata já tem 2% do eleitorado na Suécia. Já tá concorrendo, já tem candidatos concorrendo na Alemanha. Por exemplo, nós já temos o OPP, o POP, Partido da Organização Pirata, na Suécia...
TM: Tem que ser Pop mesmo...
Gil: É... No Brasil, devia ser Pop!
TM: O Brasil já teve a pirataria avant-première, com Tropa de Elite.
Gil: Pois é! Coisas desse tipo. São antecipações irrecusáveis, que precisam ser feitas, porque são experimentalistas, são feitas com a missão generosa de ampliar os espaços, forçar a elasticidade. Não são necessariamente só associação criminosa. Então, a criação dos partidos da pirataria... Estou falando de três ou quatro países que já os têm, como a Suécia, uma civilização, uma sociedade irrepreensível, pelos nossos próprios padrões de leitura. Tá lá o partido advogando as questões da pirataria, colocando em leitos mais seguros, em canalizações mais convenientes a discussão sobre o que é propriamente crime, o que não é crime, o que deve ser descriminalizado, através de novas legislações. Uma idéia de que, ainda que seja pirataria hoje, não deverá mais ser pirataria amanhã.
TM: Com sua obra, você abriu um flanco para a pirataria?
Gil: É evidente. Fiz propositalmente, pra dizer: nós precisamos ter bases experimentais para essa elasticidade, para essa visão nova, para essa nova formação de compartilhamentos. Fiz, fiz, porque fiz.
TM: Mas foram dois flancos: na sua obra e no Ministério da Cultura, abrindo o debate.
Gil: Porque o Estado tem esse papel, o Estado renovado... Na nossa conversa anterior à entrevista, falávamos no papel da próxima eleição no Brasil. O discurso eleitoral vai ter que incorporar essas questões todas. Aqueles que almejem à presidência vão ter que cuidar dessas coisas, vão precisar falar dessas coisas, vão precisar trabalhar essas questões de uma forma mais adequada, mais contemporânea. Não vão poder ignorar essas questões. Ali, como ministro, eu disse: na parte que me toca, esse ministério é da Cultura e uma das questões a reformar no país é a Cultura, a interpretação do papel do Estado, do papel da sociedade, da sociedade do direito, o que é o Direito, quais são os direitos difusos que vão aparecendo cada vez mais, a partir de novas configurações de sociabilidade. Fiz mesmo. Fiz com toda consciência.
TM: E o direito autoral? E a descentralização da cultura, que era uma das principais metas de sua gestão?
Gil: Claro, propriedade intelectual, direito autoral, patentes. O candidato (José) Serra, por exemplo, vai ser obrigado a colocar essas discussões fortemente na pauta dele. Porque ele, como ministro da Saúde, quebrou a patente (de medicamentos). Quer dizer, em função de interesses públicos. É isso! (risos) Vai ter que falar do assunto...
TM: Pronto, jogou na agenda de Serra!
Gil: Na agenda... O Partido Pirata já devia estar cobrando... (risos).
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