Ambiguidades e azia
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Comentando aspectos da reforma ortográfica, um colunista escreveu que o acento diferencial deveria ter sido mantido para distinguir pára de para. O argumento é que, sem ele, a manchete "Trânsito pesado para Recife" fica ambígua. Se o acento continuasse, a manchete com "pára" significaria uma coisa e com "para", outra.
Verdade. Mas como fazer desaparecer a ambigüidade das seguintes manchetes do mesmo dia, no Estadão (Palmeiras: reforço na enfermaria) de 10/01/2008, p. E2 e na Folha (Reforço do Palmeiras opera antes da estreia) de 10/01/2009, p. D4?
A primeira poderia significar que a enfermaria do clube será reforçada (com a compra de dois rolos de esparadrapo...) ou que um dos reforços do time vai permanecer por algum tempo na enfermaria (significando que está contundido, e não que está de fato alojado numa enfermaria). A segunda, que um dos novos contratados do Palmeiras, antes de estrear, vai sofrer uma cirurgia ou que vai participar de uma como cirurgião, como auxiliar, como instrumentador etc.
Ou seja: a ambigüidade - um dos traços mais característicos das línguas naturais - só é eliminada, quando é, pela intervenção de um conjunto complexo de critérios de interpretação. Haver ou não acentos diferenciais diminui muito pouco a quantidade de estruturas ambíguas. Sem mencionar, claro, que essas formas, quando faladas, podem não ser distinguidas uma da outra por um acento mais ou menos perceptível.
Sobre azia
A afirmação de Lula de que não lê jornais porque tem azia deixou muita gente da imprensa chateada. Até pareceu que repórteres e colunistas imaginavam que o presidente não vivia sem seus textos, que eles eram para Lula o que o primeiro café do dia é para muitos de nós. Mesmo os que vivem repetindo que ele não lê. Ora, se não lê, se sabem que não lê, por que esperavam que lesse os textos deles? Muita gente ficou chateada e baixou o porrete no homem. Achei a reação meio infantil. A imprensa, além de indispensável, é cheia de não-me-toques.
De minha parte, confesso que, muitas vezes, em finais de semana ou em viagens, quando poderia dormir um pouco mais ou, pelo menos, sair mais tarde da cama, levanto mesmo assim para ler jornais. É que minha azia nunca piora lendo, mesmo textos ruins (deriva da mistura, cada vez mais rara, de álcool, gordura e doce; nunca de notícias ou comentários).
Ao contrário, o jornalismo me diverte. Por exemplo, eu rio quando leio opiniões como a que comentei acima sobre a relevância do acento diferencial para a eliminação de ambigüidades. Meu humor, que é usualmente mais ou menos o mesmo pela manhã e durante o restante do dia, melhora muito com bobagens.
Meu estado de espírito melhora também com feitos noturnos do jornalismo - sim, também assisto a noticiosos da TV.
Dou exemplos: a Band cobriu em detalhes o pouso do avião no rio Hudson. Segundo jornal da emissora, o voo demorou quatro (4) minutos. Logo depois, vejo na Globo ainda mais detalhes, inclusive uma simulação e um mapa do voo, que, disse seu jornal, demorou seis (6) minutos (que o leitor considere, por favor, o que são dois minutos em um voo como esse!). Juro que acho engraçado. Agora, suponhamos que eu devesse tomar alguma decisão grave com base nestes noticiosos: não seria mesmo melhor ouvir os assessores ou pedir ajuda aos universitários?
Na véspera, a Band pusera no ar um editorial duro contra a decisão de Tarso Genro no caso Battisti. Basicamente, contrastava o caso ao dos pugilistas cubanos. Em entrevista, o ministro disse, no dia seguinte, na mesma Band, que o Brasil devolveu a Cuba os atletas que quiseram voltar e que aqui ficaram os que pediram para ficar. "Não sei por que a imprensa desconhece isso", ele acrescentou, risonho. Não tenho informações para decidir se o ministro disse a verdade ou não (não sou jornalista, só leio jornais). Mas o locutor acrescentou, logo depois da entrevista, como se ela não tivesse ido ao ar, que a Band mantinha sua posição expressa no editorial da véspera. Então, por que não desmentiu a informação do ministro? Morri de rir.
Volto aos impressos. No final de semana, o Estadão publicou editorial louvando dez (10) anos de câmbio flutuante e outros aspectos da política de nosso Banco Central. Acrescentou que dirigentes petistas frequentemente põem em questão essa política. Mas nem de longe mencionou Paulo Skaff, nem o vice-presidente José Alencar, certamente os dois maiores críticos dessa política do Banco Central. Achei a piada ótima!! Pelo texto, eu deveria concluir que são petistas, kkkkk!
No sábado, Dora Krammer também discutiu a decisão de Tarso Genro sobre o caso Battisti, e comentou a posição de Lula, que, disse ela, conhece o caso há pouco tempo e não muito detalhadamente. Associa o desconhecimento dos detalhes do caso a seu hábito de ler pouco. "A intuição é um excelente atributo (quando acerta, Lula o faz por intuição, penso comigo que é o que ela pensa), o empirismo funciona, mas a ausência de conhecimento e de curiosidade em geral induz ao equívoco", diz ela.
Eu ri. Ri muito. É que já fiz longas leituras sobre questões de epistemologia e de história da ciência durante minha vida, já não tão breve, e nunca vi nenhum texto, seja favorável, seja contrário às posições empiristas, que associasse esta doutrina à falta de leitura. Foi por isso que ri muito. Uma pândega, essa Dora Krammer. Fiquei imaginando o que diria Bertrand Russel - ou Bacon - do conhecimento detalhado dela sobre o tal empirismo. Não resisti. Quaquaqua!
Tem mais. Em sua coluna de 19/01/2009, segunda-feira, na Folha de S. Paulo, que li bem cedo, durante meu café, Fernando Rodrigues cita um deputado do PT que escreveu em relatório que Obama sepultaria "uma era de fundamentalismo neoliberal". Comentando esse vaticínio, o colunista diz que nada indica que Obama romperá com os cânones do livre mercado. Em seguida, que petistas descobrirão que o capitalismo sobreviveu.
Achei seu senso de humor incrível. Identificar fundamentalismo neoliberal com livre mercado e com capitalismo é um excelente exemplo, um dos melhores que já vi, de economia psíquica, uma das principais fontes do prazer, segundo Freud. Ri à beça!! Ainda estou rindo, e já são 10 horas!
Agora, suponha que isso, em vez de me fazer rir, atiçasse minha azia.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.