Como esquecer a coluna de 9 de janeiro, de Eliane Catanhêde, colunista da Folha de São Paulo?: "Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo!”. Gilson Caroni Filho analisa o primeiro semestre da imprensa brasileira.
Gilson Caroni Filho
Um balanço da imprensa nos primeiros seis meses de 2008 mostra que não foi por falta de empenho que a imagem do governo não sofreu considerável desgaste. Um acompanhamento, mês a mês, da cobertura noticiosa mostra que o jornalismo de mercado, usado como controle político das elites, terminou resvalando ladeira abaixo ao continuar acreditando que dispunha de uma ilimitada capacidade prestidigitação.
Quedas de tiragens e audiência decorreram do apego à desmesurada crença nos dispositivos que regulam a relação entre os responsáveis pela produção e difusão de informações. Em inúmeras vezes o fato concreto deu lugar à imaterialidade midiática.
Por mais fiel que seja o leitor, por mais intensa a cumplicidade com o veículo que sistematiza sua visão de mundo, um noticiário que não guarda qualquer relação com a realidade vivida termina por explicitar excessivamente os interesses a que serve. E ao fazê-lo, termina sendo disfuncional a esses mesmos interesses. Um discurso vazio, que cai no descrédito na medida em que mais complexa se torna a sociedade para a qual é elaborado.
Em entrevista a um Jornal Laboratório de conhecida faculdade de Comunicação do Rio de Janeiro, o diretor de redação de Veja, Eurípedes Alcântara, não mediu palavras ao defender o que julga ser a função missionária da revista paulista e, por extensão, de toda a imprensa: “Como no Congresso as oposições estavam- e ainda, de certa forma, estão- desarticuladas, Veja se viu nessa incômoda situação de ser a única oposição real ao governo Lula"
Se a publicação dos Civita adotou o panfletarismo neocon como padrão editorial, os demais veículos da grande mídia também não se furtaram ao papel de substituir os partidos conservadores, ora impondo a pauta a eles, ora sendo pautados por conhecidos parlamentares, como destacou recentemente, aqui mesmo, Bernardo Kucinski, em seu artigo Por que o governo Lula perdeu a batalha da comunicação.
A “invenção de realidades" só esbarrou em um problema. A sociedade brasileira aprendeu a ler sua mídia e dela se afastou. O resultado foi a saturação do fazer jornalístico como práxis ética.
Tendo noção da extensão do “prontuário”, destacaremos apenas os crimes de maior repercussão. Aqueles em que a verdade factual foi solenemente ignorada na escolha de pautas viciadas, em conhecidos direcionamento de títulos e de cobertura.
Em janeiro, a febre amarela voltava às cidades brasileiras, e com casos registrados no Centro-Oeste, retornávamos todos à primeira metade do século passado. De nada adiantou o desmentido das autoridades. A situação calamitosa da saúde pública revelava o descuido do governo. Assim decidiram, de forma igual e combinada, os editores e proprietários das grandes empresas de mídia.
Como esquecer a coluna de 09/01 de Eliane Catanhêde, colunista da Folha de São Paulo?: "Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo!”.
A marcha da insensatez não esperou que o primeiro mês do ano completasse sua primeira quinzena. Dias depois, como fogo-fátuo, o assunto sumiu do noticiário. O amarelo da falsa epidemia revela a coloração de quem a fabricava.
Em fevereiro, a instalação da CPI dos Cartões Corporativos prometia revelar as entranhas de um "governo corrupto”. Tapiocas, mesas de sinuca e notas fiscais frias na prestação de contas de contas de aluguel de veículos que o Planalto teria feito com cartões, anunciavam, enfim, esquemas irregulares envolvendo agentes do governo.
Como convinha ao espetáculo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso enviava e-mail ao senador Sérgio Guerra, no “qual garantia jamais ter usado dinheiro público para pagar gastos pessoais." Uma pantomima que iria perdurar até meados de maio, quando, vendo que daquele mato não sairia coelho, o jornalismo de Pindorama já teria transformado banco de dados em dossiê. Os préstimos de um conhecido senador foram de valor inestimável.
Abril seria o mês de uma “crise militar". A edição de 16/04 do Globo informava que “o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, voltou a classificar a transformação da faixa da fronteira norte do país em terras indígenas como ameaça à soberania nacional”. Em palestra sobre a defesa da Amazônia no Clube Militar, no Rio, o general não se mostrou preocupado em contrariar a posição do governo, que defende a homologação de terras indígenas mesmo em regiões de fronteira, e disse que o Exército "serve ao Estado brasileiro e não ao governo", e chamou a política indigenista do governo de "caótica".
Ingredientes explosivos. Quebra de hierarquia e política pública pondo em risco a integridade do país. O procedimento editorial era condenar o comportamento do militar, dando total respaldo ao teor do seu discurso. Era um fato jornalístico com fortes ressonâncias no imaginário político nacional. Uma oportunidade de continuar o trabalho de assessoramento da "oposição desarticulada". Não durou uma semana. Era muito fardo para pouca farda.
Tráfico de influência na venda da Varig, ingerência indevida da Casa Civil no processo, pressões sobre a ex-diretora da Anac foram os destaques de junho. O depoimento de Denise Abreu na Comissão de Infra-Estrutura do Senado obedeceu ao roteiro folhetinesco conhecido por leitores e telespectadores. Mas o ”grande achado do mês" foi apresentar a elevação de preços que, em grande parte é explicada por fatores externos, como o fim da estabilidade monetária.
O terrorismo de jornais, revistas e emissoras de televisão criou um novo tipo de inflação, que não é de oferta ou de demanda, mas pode ser explicada a partir da formação de um estoque de descontextualização informativa: uma inflação de mídia. Novamente a imprensa tateou à procura de fatos reais que dessem sustentação à produção noticiosa. A distinção entre opinião e informação é algo inexistente quando a luta é contra um governo classificado pelo diretor de redação da Veja como “liberticida”.
O primeiro dia de julho, no entanto, traria uma notícia desalentadora: "A inflação calculada pelo Índice de Preços ao Consumidor – Semanal (IPC-S) recuou pela terceira semana consecutiva na última medição de junho, registrando taxa de 0,77% - 0,12 ponto percentual menor que a da semana anterior (0,89%). A taxa também é a menor que a registrada no encerramento do mês anterior, quando ficou em 0,87%” (O Globo).
Supondo-se detentora de um mandato que lhe assegura total liberdade na tentativa de intermediar as relações entre Estado e sociedade civil, a imprensa brasileira zelou pelos interesses da oposição ao governo. A governadora Yeda Crusius e o alto comando do PSDB foram os principais beneficiários da cobertura padrão. O Detran gaúcho e o caso Alstom foram, até agora, blindados.
Mantida a inversão na relevância das informações é previsível o modus operandipredominante no segundo semestre. Porém, com a extradição de Cacciola, resta indagar com a poética de Drummond, em que gruta ou concha de página quedará abstrato o indesejável banqueiro?
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