por João Feres Júnior
Realmente, não tinha a intenção de escrever esse artigo,
pois o tempo é sempre curto e Marcelo Freixo é um político bastante irrelevante
no cenário político nacional. Mas, como moro no Rio de Janeiro, seu domicílio
eleitoral, e na Zona Sul, região onde se concentram seus principais admiradores,
não consegui resistir à tentação de escrever algumas notas sobre o que mais me
saltou aos olhos na entrevista dada por ele à Folha de S. Paulo. São somente
alguns apontamentos seguidos de análises bem breves. Vamos lá.
1. Freixo se expressa muito
mal. As coisas que fala, quando escritas, parecem confusas. Comete excessivas
sentenças negativas - deve ter lido muito Foucault na graduação de história - o
que torna a comunicação bastante equívoca. Responde perguntas com perguntas. Em
suma, bastante ineficaz na comunicação para um político com suas pretensões.
2. Começa a entrevista
com uma defesa de junho de 2013, quando até os mais bobos já se tocaram da
tragédia que aquilo realmente representou para nosso país. Quer dizer, erro
aqui. Os mais bobos ainda não chegraram lá.
3. Atravessa o samba ao
citar Boulos como candidato do PSOL, jogada que força o próprio Boulos a soltar
carta dando muitas explicações e reafirmando seu apoio a Lula, entre outras
coisas.
4. Diz que não é hora de
unificar as esquerdas porque a “sociedade precisa enxergar o diferente”.
E se saí com o argumento de que a direita também está fragmentada. Como se a
política fosse uma questão de estética. Como se a possibilidade da direita
ganhar e continuar o massacre do povo hoje em curso fosse algo que o Brasil
pudesse aguentar. Claro, as pessoas que moram no Leblon e em Ipanema certamente
podem aguentar e até se contentar com tal destino.
5. Acusa Lula por ter
andado com Renan Calheiros em Alagoas, repisando implicitamente a mistificação
de que no regime do presidencialismo de coalizão é possível governar sem fazer
alianças com setores mais retrógrados do espectro político. É claro que aí ele
está jogando para seu eleitorado moralista, que só aceita governo que não faz
pacto com “ladrão”.
6. Diz que Lula, “se
pudesse, faria todos os acordos que sempre fez”, mais uma vez mostrando aversão
à negociação política e posando de santo para o moralismo apolítico da sua
audiência.
7. Ao ser instado pela
repórter a se comparar a Bolsonaro faz um contorcionismo retórico enorme para
evitar a crítica ao deputado direitista. Pelo contrário, o elogia. Diz que sabe
“que ele não rouba”, afirmação que no âmbito do moralismo apolítico vale ouro.
E fecha falando que o eleitor vê ambos como honestos e corajosos.
8. Quando a repórter
tenta trocar de assunto e falar sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e a
prisão de seus líderes, ele se esquiva e sai com a brilhante frase: “o grande
crime organizado é o PMDB” -- frase que fica mais bem na boca de um coxinha
mediota do que de um político profissional.
9. Aí vem aquele que
talvez seja o ápice da entrevista. O tema é Moro e a Lava Jato. Freixo começa
criticando os excessos do juiz paranaense, mas quando comenta a condução
coercitiva de Lula, ao invés da apontar para a ilegalidade e imoralidade do ato
de Moro, ele, como que lamentando, diz que a ação do juiz deu a Lula “a
oportunidade de virar a chave e criar uma resistência muito mais aguda do que
existia até então”. É o fim da picada. A aversão a Lula demonstrada por Freixo
é assustadora. Mesmo perante um flagrante delito de Moro ele é incapaz de
emitir palavra simpática ao petista. Como se a reistência à Lava Jato fosse
sempre ruim.
10. Momento pitoresco. De passagem defende
Sergio Cabral, criticando a divulgação do vídeo dele no presídio feita pelo
Fantástico. Aqui há alguma coerência, mas biográfica e não política. Freixo
sempre “conversou” com a turma do PMDB da Alerj, a despeito de sua postura de
virgem imaculada para sua "galera". E é sabido que Cabral mais de uma
vez disse para a polícia poupar Freixo e sua turma da porrada distribuida
fartamente em manifestações. Contudo, Lula não é objeto da mesma generosidade.
Pelo contrário, a ele é proibido “conversar” com o PMDB.
11. Depois desses comentários ambíguos acerca de
Moro e Lava Jato, batendo em Lula e poupando Cabral, Freixo fecha dizendo:
“essas coisas não podem ser secundarizadas porque a tal da investigação contra
corrupção é importante. Não dá para achar que os fins justificam os meios.
Agora, isso faz com se pegue tudo o que está sendo feito pela Lava Jato e se
jogue fora? Não”.
12. O apoio à Lava Jato é elemento definidor do
moralismo apolítico. Mas não deixa de ser deprimente ver um deputado do Rio de
Janeiro, alguém que diz se orgulhar tanto de representar fluminenses e
cariocas, não reconhecer o imenso mal que a Lava Jato fez e está fazendo a seu
estado. É claro, novamente, quem sofre mais com desemprego, a falência dos
serviços públicos e a depressão econômica generalizada são os pobres. Mas o
moralismo apolítico não está muito aí para eles, venhamos e convenhamos. Na
verdade, os eleitores de Bolsonaro, também adeptos da mesma doutrina, têm
projetos mais definidos do que fazer com o excedente de pobres.
Há uma nota adicional que decidi não inserir na numeração
original para que a contagem total não pareça algum tipo de piada ou
trocadilho. Ela diz respeito a um elemento de gênero bastante incômodo na
entrevista, que aparece quando Freixo relata sua adesão ao nome de Boulos. Ele
diz que estava tomando café com sua companheira ...:
“Conversávamos sobre o que é esta esquerda do século 21. Os
olhos dela são meio que termômetro. Falei do Boulos, e arregalaram. Pensei:
"Opa, ali tem caldo".
É peculiar a maneira como se refere à Antônia, sua
companheira. Eles estavam conversando, mas seu convencimento não foi produto de
um bom argumento, articulado por ela, mas por uma reação física, um sinal de
intuição. Tal interpretação é reforçada pela frase anterior, no qual ele a
chama de “termômetro” – instrumento que usamos para fazer coisas inteligentes,
mas que, em si, é objeto inanimado, incapaz de reflexão. Aqui o entrevistado me
parece resvalar para um tropo clássico do discurso machista que é ressaltar o
poder de intuição da mulher, que sempre vem em detrimento do direito ou
capacidade de ela se constituir em interlocutor racional. Tanto é que, logo em
seguida, ele declara que foi testar a intuição de Antônia com sua equipe. Isto
é, submetê-la à luz da razão.
É curioso notar como esse tratamento dispensado por ele à
figura de sua companheira faz lembrar a lírica do próprio Caetano Veloso, cujo
círculo de “intelectuais do meio artístico” Freixo confessa frequentar, na casa
de Paula Lavigne. Diria que tal lírica frequentemente tem uma pegada freyreana
(de Gilberto Freyre), que é a do reconhecimento assimétrico da diferença: o
diferente (negro, mulher, índio, etc) é objeto de uma elegia que, ao mesmo
tempo, o coloca em seu devido lugar, sempre inferior ao do narrador. Por sinal,
se não ficou claro o argumento aqui, ouçam o bolerinho Elegia, composto e
gravado pelo próprio Caetano, com letra de John Donne, que descreve em detalhe
tal situação de reconhecimento assimétrico da mulher por um eu lírico
masculino. Funciona muito bem na voz de um artista, ainda que eu possa imaginar
que tal letra secular fira algumas sensibilidades do presente. Na fala de um
político...hmmmmm, not so much!
É claro que em situações como a do presente artigo, de
comunicação remota (interpretar uma entrevista de pessoa que não conhecemos a
fundo), deve restar a dúvida se a causa de tantos “problemas” é malícia,
imperícia ou ignorância do entrevistado. Não precisamos, contudo, entrar nesses
meandros para lamentar a pedagogia mesquinha e mistificadora das ideias de
Freixo. Sendo político, ajuda a propalar um discurso de ojeriza à política, em
nome de uma moralidade burra que não resiste aos testes mais imediatos da
realidade.
Ele nunca leva em consideração o fato que nosso regime
político é o presidencialismo de coalizão e que os projetos alternativos hoje
politicamente viáveis vão todos no caminho do cerceamento do voto popular.
Não, prefere acusar Lula de fazer alianças, mesmo quando não há alternativa
melhor para se governar o país. Cala-se perante o descalabro de Moro e da Lava
Jato, que estão jogando na lata do lixo a tradição de direito garantista em
nosso país – coisa que deveria ser preocupação de primeira ordem para um
militante dos direitos humanos. Perde a oportunidade de marcar diferença entre
ele e Bolsonaro, um político que prega sistematicamente o desrespeito aos
direitos humanos. Tudo isso para qual finalidade? Se apresentar como campeão da
honestidade?
Fico imaginando o estrago que uma candidatura de Boulos pelo
PSOL fará à imagem do próprio Boulos e a de seu movimento, o MTST. Ter que
lidar com militantes como Freixo e muitos outros bastante piores -- ele está
longe de ser o mais moralista e antipolítico entre seus pares --, não é tarefa
fácil nem do ponto de vista interno, organizacional, da campanha, quanto mais
externo, isto é, na administração da imagem pública da candidatura. O paradoxo
já está explicito na resposta de Boulos à entrevista: ou ele transforma o PSOL
em um partido verdadeiramente de esquerda, focado nas questões populares
fundamentais, ou o PSOL afunda sua candidatura, e com ela sua reputação. Agora,
quem em sã consciência imagina que pode mudar por dentro o udenismo do PSOL,
que aqui venho chamando candidamente de moralismo apolítico?
É claro, a postura anti-Lula e antipetista de Freixo se
encaixa como uma luva na agenda da Folha de S. Paulo. Sugiro ao leitor visitar
o Manchetômetro (www.manchetometro.com.br)
e ver o perfil da cobertura que esse jornal dedica ao ex-presidente e a seu
partido. Claro que o entrevistado sempre tem a escolha de falar o que o jornal
e seus leitores querem ouvir, falar coisas que eles não querem ouvir, ou não
dar entrevista para a Folha. Cada um faz suas escolhas e é responsável por elas.
Resta por fim saber se a atitude de Freixo é produto de
malícia, imperícia ou ignorância? Se me permitem um último palpite de final de
ano -- não diria intuição pois talvez eu não tenha os atributos genéticos para
tanto --, acho que é uma mistura das três coisas. E digo mais, provavelmente na
proporção decrescente de sua ordem.
Feliz 2018!