segunda-feira, janeiro 01, 2018

As 12 lições do moralismo apolítico – Freixo fala




por João Feres Júnior

Realmente, não tinha a intenção de escrever esse artigo, pois o tempo é sempre curto e Marcelo Freixo é um político bastante irrelevante no cenário político nacional. Mas, como moro no Rio de Janeiro, seu domicílio eleitoral, e na Zona Sul, região onde se concentram seus principais admiradores, não consegui resistir à tentação de escrever algumas notas sobre o que mais me saltou aos olhos na entrevista dada por ele à Folha de S. Paulo. São somente alguns apontamentos seguidos de análises bem breves. Vamos lá.
1.       Freixo se expressa muito mal. As coisas que fala, quando escritas, parecem confusas. Comete excessivas sentenças negativas - deve ter lido muito Foucault na graduação de história - o que torna a comunicação bastante equívoca. Responde perguntas com perguntas. Em suma, bastante ineficaz na comunicação para um político com suas pretensões.
2.       Começa a entrevista com uma defesa de junho de 2013, quando até os mais bobos já se tocaram da tragédia que aquilo realmente representou para nosso país. Quer dizer, erro aqui. Os mais bobos ainda não chegraram lá. 
3.       Atravessa o samba ao citar Boulos como candidato do PSOL, jogada que força o próprio Boulos a soltar carta dando muitas explicações e reafirmando seu apoio a Lula, entre outras coisas.
4.       Diz que não é hora de unificar as esquerdas porque a “sociedade precisa enxergar o diferente”.  E se saí com o argumento de que a direita também está fragmentada. Como se a política fosse uma questão de estética. Como se a possibilidade da direita ganhar e continuar o massacre do povo hoje em curso fosse algo que o Brasil pudesse aguentar. Claro, as pessoas que moram no Leblon e em Ipanema certamente podem aguentar e até se contentar com tal destino.
5.       Acusa Lula por ter andado com Renan Calheiros em Alagoas, repisando implicitamente a mistificação de que no regime do presidencialismo de coalizão é possível governar sem fazer alianças com setores mais retrógrados do espectro político. É claro que aí ele está jogando para seu eleitorado moralista, que só aceita governo que não faz pacto com “ladrão”.
6.       Diz que Lula, “se pudesse, faria todos os acordos que sempre fez”, mais uma vez mostrando aversão à negociação política e posando de santo para o moralismo apolítico da sua audiência.
7.       Ao ser instado pela repórter a se comparar a Bolsonaro faz um contorcionismo retórico enorme para evitar a crítica ao deputado direitista. Pelo contrário, o elogia. Diz que sabe “que ele não rouba”, afirmação que no âmbito do moralismo apolítico vale ouro. E fecha falando que o eleitor vê ambos como honestos e corajosos.
8.       Quando a repórter tenta trocar de assunto e falar sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e a prisão de seus líderes, ele se esquiva e sai com a brilhante frase: “o grande crime organizado é o PMDB” -- frase que fica mais bem na boca de um coxinha mediota do que de um político profissional.
9.       Aí vem aquele que talvez seja o ápice da entrevista. O tema é Moro e a Lava Jato. Freixo começa criticando os excessos do juiz paranaense, mas quando comenta a condução coercitiva de Lula, ao invés da apontar para a ilegalidade e imoralidade do ato de Moro, ele, como que lamentando, diz que a ação do juiz deu a Lula “a oportunidade de virar a chave e criar uma resistência muito mais aguda do que existia até então”. É o fim da picada. A aversão a Lula demonstrada por Freixo é assustadora. Mesmo perante um flagrante delito de Moro ele é incapaz de emitir palavra simpática ao petista. Como se a reistência à Lava Jato fosse sempre ruim. 
10.   Momento pitoresco. De passagem defende Sergio Cabral, criticando a divulgação do vídeo dele no presídio feita pelo Fantástico. Aqui há alguma coerência, mas biográfica e não política. Freixo sempre “conversou” com a turma do PMDB da Alerj, a despeito de sua postura de virgem imaculada para sua "galera". E é sabido que Cabral mais de uma vez disse para a polícia poupar Freixo e sua turma da porrada distribuida fartamente em manifestações. Contudo, Lula não é objeto da mesma generosidade. Pelo contrário, a ele é proibido “conversar” com o PMDB.
11.   Depois desses comentários ambíguos acerca de Moro e Lava Jato, batendo em Lula e poupando Cabral, Freixo fecha dizendo: “essas coisas não podem ser secundarizadas porque a tal da investigação contra corrupção é importante. Não dá para achar que os fins justificam os meios. Agora, isso faz com se pegue tudo o que está sendo feito pela Lava Jato e se jogue fora? Não”.
12.   O apoio à Lava Jato é elemento definidor do moralismo apolítico. Mas não deixa de ser deprimente ver um deputado do Rio de Janeiro, alguém que diz se orgulhar tanto de representar fluminenses e cariocas, não reconhecer o imenso mal que a Lava Jato fez e está fazendo a seu estado. É claro, novamente, quem sofre mais com desemprego, a falência dos serviços públicos e a depressão econômica generalizada são os pobres. Mas o moralismo apolítico não está muito aí para eles, venhamos e convenhamos. Na verdade, os eleitores de Bolsonaro, também adeptos da mesma doutrina, têm projetos mais definidos do que fazer com o excedente de pobres. 

Há uma nota adicional que decidi não inserir na numeração original para que a contagem total não pareça algum tipo de piada ou trocadilho. Ela diz respeito a um elemento de gênero bastante incômodo na entrevista, que aparece quando Freixo relata sua adesão ao nome de Boulos. Ele diz que estava tomando café com sua companheira ...:
“Conversávamos sobre o que é esta esquerda do século 21. Os olhos dela são meio que termômetro. Falei do Boulos, e arregalaram. Pensei: "Opa, ali tem caldo".
É peculiar a maneira como se refere à Antônia, sua companheira. Eles estavam conversando, mas seu convencimento não foi produto de um bom argumento, articulado por ela, mas por uma reação física, um sinal de intuição. Tal interpretação é reforçada pela frase anterior, no qual ele a chama de “termômetro” – instrumento que usamos para fazer coisas inteligentes, mas que, em si, é objeto inanimado, incapaz de reflexão. Aqui o entrevistado me parece resvalar para um tropo clássico do discurso machista que é ressaltar o poder de intuição da mulher, que sempre vem em detrimento do direito ou capacidade de ela se constituir em interlocutor racional. Tanto é que, logo em seguida, ele declara que foi testar a intuição de Antônia com sua equipe. Isto é, submetê-la à luz da razão.
É curioso notar como esse tratamento dispensado por ele à figura de sua companheira faz lembrar a lírica do próprio Caetano Veloso, cujo círculo de “intelectuais do meio artístico” Freixo confessa frequentar, na casa de Paula Lavigne. Diria que tal lírica frequentemente tem uma pegada freyreana (de Gilberto Freyre), que é a do reconhecimento assimétrico da diferença: o diferente (negro, mulher, índio, etc) é objeto de uma elegia que, ao mesmo tempo, o coloca em seu devido lugar, sempre inferior ao do narrador. Por sinal, se não ficou claro o argumento aqui, ouçam o bolerinho Elegia, composto e gravado pelo próprio Caetano, com letra de John Donne, que descreve em detalhe tal situação de reconhecimento assimétrico da mulher por um eu lírico masculino. Funciona muito bem na voz de um artista, ainda que eu possa imaginar que tal letra secular fira algumas sensibilidades do presente. Na fala de um político...hmmmmm, not so much!
É claro que em situações como a do presente artigo, de comunicação remota (interpretar uma entrevista de pessoa que não conhecemos a fundo), deve restar a dúvida se a causa de tantos “problemas” é malícia, imperícia ou ignorância do entrevistado. Não precisamos, contudo, entrar nesses meandros para lamentar a pedagogia mesquinha e mistificadora das ideias de Freixo. Sendo político, ajuda a propalar um discurso de ojeriza à política, em nome de uma moralidade burra que não resiste aos testes mais imediatos da realidade.
Ele nunca leva em consideração o fato que nosso regime político é o presidencialismo de coalizão e que os projetos alternativos hoje politicamente viáveis vão todos no caminho do cerceamento do voto popular. Não, prefere acusar Lula de fazer alianças, mesmo quando não há alternativa melhor para se governar o país. Cala-se perante o descalabro de Moro e da Lava Jato, que estão jogando na lata do lixo a tradição de direito garantista em nosso país – coisa que deveria ser preocupação de primeira ordem para um militante dos direitos humanos. Perde a oportunidade de marcar diferença entre ele e Bolsonaro, um político que prega sistematicamente o desrespeito aos direitos humanos. Tudo isso para qual finalidade? Se apresentar como campeão da honestidade? 
Fico imaginando o estrago que uma candidatura de Boulos pelo PSOL fará à imagem do próprio Boulos e a de seu movimento, o MTST. Ter que lidar com militantes como Freixo e muitos outros bastante piores -- ele está longe de ser o mais moralista e antipolítico entre seus pares --, não é tarefa fácil nem do ponto de vista interno, organizacional, da campanha, quanto mais externo, isto é, na administração da imagem pública da candidatura. O paradoxo já está explicito na resposta de Boulos à entrevista: ou ele transforma o PSOL em um partido verdadeiramente de esquerda, focado nas questões populares fundamentais, ou o PSOL afunda sua candidatura, e com ela sua reputação. Agora, quem em sã consciência imagina que pode mudar por dentro o udenismo do PSOL, que aqui venho chamando candidamente de moralismo apolítico?  
É claro, a postura anti-Lula e antipetista de Freixo se encaixa como uma luva na agenda da Folha de S. Paulo. Sugiro ao leitor visitar o Manchetômetro (www.manchetometro.com.br) e ver o perfil da cobertura que esse jornal dedica ao ex-presidente e a seu partido. Claro que o entrevistado sempre tem a escolha de falar o que o jornal e seus leitores querem ouvir, falar coisas que eles não querem ouvir, ou não dar entrevista para a Folha. Cada um faz suas escolhas e é responsável por elas. 
Resta por fim saber se a atitude de Freixo é produto de malícia, imperícia ou ignorância? Se me permitem um último palpite de final de ano -- não diria intuição pois talvez eu não tenha os atributos genéticos para tanto --, acho que é uma mistura das três coisas. E digo mais, provavelmente na proporção decrescente de sua ordem.
Feliz 2018!