por José Policarpo Jr
Nenhuma sociedade atravessa uma situação semelhante à vivida
política e institucionalmente pelo Brasil atual sem deixar marcas profundas no
solo da vida coletiva, no relacionamento interpessoal e nos sentidos
existenciais dos indivíduos.
O julgamento do ex-presidente Lula em segunda instância no
próximo dia 24 de janeiro no TRF-4, cujo resultado de confirmação da sentença
do juiz Moro já é tido como certo, representa um momento decisivo de uma escalada
autoritária que começou há alguns anos e que deixará cicatrizes por longo tempo
entre os cidadãos brasileiros. Não pretendo aqui analisar os vícios e absurdos
da denúncia do ministério público e da sentença que condena o ex-presidente sem
nenhuma prova, ou, mais explicitamente, que o faz contrariamente às provas de
sua inocência incluídas pela defesa nos autos do processo; esse trabalho já
está feito por pessoas muito mais qualificadas do que eu e se encontra
amplamente disponibilizado em vários meios digitais e impressos [i]. Disponho-me aqui a analisar as prováveis
consequências ético-políticas do fato e das atitudes pessoais diante do mesmo,
pois, reafirmo, não estamos diante de um acontecimento qualquer, mas de um fato
com imensas repercussões para a democracia, as liberdades e a vida social
brasileiras.
O momento em questão é semelhante a diversos outros
acontecimentos históricos de alta significação, tais como: (a) o caso Dreyfus,
na França de fins do século XIX; (b) os primeiros atos legais do regime nazista
contra os judeus, a partir de 1933; (c) a luta de Mohandas Gandhi, contra o
domínio britânico e pela soberania do povo indiano; (d) o julgamento de Rivonia
que condenou Nelson Mandela e várias outras lideranças do Congresso Nacional
Africano, em 1964, pelo judiciário do regime racista na África do Sul; (e) o
movimento dos direitos civis e a morte de Martin Luther King, nos anos 1960,
nos EUA; (f) o golpe de estado de Pinochet, em 1973, e o regime sanguinário que
o seguiu.
Esta é apenas uma pequena lista dentre os mais conhecidos
acontecimentos que marcaram sociedades no mundo moderno. Embora haja grandes
distinções entre todos os momentos mencionados, há algo comum que a todos eles
perpassa: para o bem ou para o mal, todos eles foram marcos definidores que
mudaram a história de suas sociedades e obrigaram os contemporâneos a assumir
uma posição determinada a respeito da situação específica. A indiferença das
pessoas no tocante a tais eventos foi progressivamente impossibilitada, porque
aqueles se tornaram questões fundamentais da sociedade, das quais não se poderia
escapar ou evadir-se. Em acréscimo, tal aspecto comum veio a se caracterizar,
no decorrer do tempo, pela legitimação de apenas uma posição, dentre aquelas em
disputa, como digna, civilizada e humana, a despeito de que, à época de cada um
dos acontecimentos, os conflitos pessoais e sociais a seu respeito fossem
fortíssimos. Nos dias atuais, todas as pessoas esclarecidas sabem que: (a)
Alfred Dreyfus foi julgado e condenado sem provas, por interesses escusos de
proteção a funcionários hierarquicamente superiores e pelo antissemitismo
contra a pessoa do réu; (b) os atos legais nazistas contra os judeus, além de
anti-humanos por si mesmos, faziam parte de uma estratégia geral de aniquilação
de tais pessoas; (c) a luta de Gandhi foi justa e por um princípio hoje
mundialmente reconhecido, tendo esse líder entrado para o panteão mítico do
século XX; (d) Nelson Mandela tornou-se reconhecido e mundialmente aclamado por
sua luta contra o apartheid, seu governo e seu comprometimento com a justiça e
a paz; (e) Martin Luther King, mundialmente reconhecido e aclamado, tornou-se
um mártir da paz e dos direitos civis, também ingressando, juntamente com
Gandhi e Mandela, no âmbito dos mitos inspiradores dos tempos modernos; (f) a
figura de Augusto Pinochet ombreia-se hoje com a de tiranos da qualidade de
Hitler, Mussolini e Stalin, por ter liderado um regime de torturas e terror que
aniquilou milhares de pessoas.
Hoje, é fácil reconhecer tudo isso. A história, por meio da
luta, comprometimento e sangue derramado de muitas pessoas, tornou límpido tal
reconhecimento para nós que não vivenciamos aqueles momentos. Às vezes, pela
facilidade em reproduzir esses julgamentos já realizados pela história, sequer
nos damos conta do esforço, da envergadura moral, do comprometimento consigo
mesmo e com a humanidade em cada um, por parte das pessoas que sustentaram com
suas vidas esse mesmo reconhecimento enquanto vivenciavam tais situações em
carne e osso, contrapondo-se às opiniões majoritárias e aos sistemas sociais,
políticos e econômicos que lhes davam suporte. Em suma: ser contrário à
ditadura de Pinochet hoje e fora do Chile é muito fácil; fazer isso na
sociedade chilena dos anos 1970 era algo completamente diferente.
De forma semelhante aos momentos mencionados, mantidas todas
as diferenças históricas, sociais e políticas, a sociedade brasileira
aproxima-se de um momento decisivo que a marcará por muitos anos e estará
gravada na vida de milhões de brasileiros. Trata-se, ao fim e ao cabo, de como
a sociedade e os indivíduos se posicionarão diante da condenação e eventual
prisão do ex-presidente Lula, sem provas, com o fito de afastá-lo
definitivamente das eleições presidenciais de 2018, consolidando-se, assim, uma
ditadura judicial-midiática iniciada com o golpe de 2016.
Trata-se de um daqueles momentos em que a história cobra de
cada um, inexoravelmente, uma posição explícita a respeito de acontecimento
fulcral e definidor de um tempo. Certamente que parte considerável das pessoas
tenta fugir ao peso de ter que assumir uma posição clara perante as demais,
porque em tal momento a escolha pessoal não define um ato cotidiano qualquer,
mas revela de forma incisiva o modo estrutural como alguém se porta diante da
situação inescapável de ter que assumir a responsabilidade por seu posicionamento
no mundo e pela estrutura do próprio mundo que supõe defender. O peso em
assumir seu posicionamento se expressa para muitas pessoas porque, em tais
situações, pouco valem as racionalizações, as desculpas, os discursos
floreados, as promessas de boas intenções; a pessoa está envolvida, quer
queira, quer não, em carne e osso na situação e não serão palavras abstratas
posteriores que poderão legitimá-la perante os demais e o devir. Nessas
situações cruciais, o que vale é a atitude indivisível pela qual a pessoa se
manifesta no mundo. A condição humana em tais situações, com todas as possíveis
implicações relacionadas, já foi há muito estudada por um ramo da filosofia
hoje já clássico – a Filosofia da Existência, tal como expressa por autores
como Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Sartre, entre outros.
Alguns podem supor evadir-se da situação ou ignorá-la ao
adotar postura de indiferença ou desqualificação do assunto em pauta. A
história não é, entretanto, tão complacente nesses momentos quanto possam
pensar essas pessoas. Haverá sempre um preço a pagar por qualquer postura que a
pessoa assumir, inclusive a indiferença. Hoje está claro que todos aqueles,
inclusive judeus, que inicialmente não se posicionaram de forma clara e firme
contra as primeiras leis antijudaicas do III Reich nada mais fizeram do que
contribuir com o fortalecimento das investidas mais brutais dos nazistas na
consolidação do terror totalitário; hoje, ninguém reconheceria como legítima a
posição de alguém que afirmasse naquela ocasião que tudo aquilo não lhe dizia
respeito – tal atitude de alheamento configuraria por si mesma expressão de
barbárie. Adicionalmente, quem se assume indiferente diante de tais situações
deslegitima-se a si mesmo porque recai em autocontradição, uma vez que não lhe é
indiferente viver em uma democracia ou em uma ditadura; antes, tal pessoa
pretende ter todos os benefícios da vida em uma sociedade livre e democrática,
sem se comprometer com a defesa dos princípios que tornam possível a sua
existência.
Não estamos, no caso do julgamento sem provas do
ex-presidente, diante de uma eleição livre e limpa em que todas as posições em
disputa são legítimas e respeitáveis e qualquer um tem o direito fundamental de
defender a sua opinião como um dos lados da disputa. Pode-se ter opinião a
respeito de qualquer coisa, embora nem todas possam ser legítimas, desde que a
pessoa acate as consequências de sua própria expressão. Alguém pode, ainda
hoje, ter a opinião de que não houve o genocídio de judeus no regime nazista (e
ainda há pessoas que assim pensam), do mesmo modo como alguém pode ter a
opinião de que o mundo foi criado em seis dias literais de 24h (outros também
pensam assim) – a primeira opinião não possui legitimidade civilizatória,
democrática, nem histórica, e a segunda não possui legitimidade científica. O
fato concreto é que estamos diante de uma condenação do ex-presidente Lula, sem
provas – afirmam-no dezenas de juristas que analisaram o processo e até alguns
jornalistas de direita, e os próprios acusadores não conseguem provar a
acusação. Como já afirmado, isso não é uma novidade histórica. Não é e nunca
foi um processo justo, ou “luta contra a corrupção” – esse slogan já foi
desmentido por inúmeros outros acontecimentos; a falta de interesse do
ministério público e do judiciário em investigá-los e processar as pessoas que
cometeram crimes a eles relacionados, com provas materiais robustas e
insofismáveis, dissolve aquele lema por completo. A história é pródiga em
mostrar que a razão e o compromisso com a verdade não são matérias abundantes,
a não ser post factum. Por essa razão, não é de estranhar que haja
milhões de brasileiros que, independentemente de prova, desejam e propugnam a
condenação do ex-presidente; fundamentam-se tão somente nos seus desejos e
opções políticas mais inconfessáveis, na adesão aos desejos da classe dirigente
brasileira e na formalidade do processo judicial – a razão está completamente
alheada de seu próprio posicionamento. Alguém, portanto, pode ter a opinião de
que Lula deve ser condenado nas condições atuais, mas essa opinião não tem
valor civilizatório, nem democrático, posto não haver prova que a corrobore,
além de muitos outros problemas de legitimidade jurídica já analisados por
juristas conceituados[ii]. Muitos, na África do Sul do apartheid,
também tinham a opinião de que Mandela deveria ser condenado e preso
eternamente, por sua luta contra o regime racista; hoje, os herdeiros dessa
opinião e os que ainda a nutrem não têm a coragem de macularem-se a si mesmos
ao emiti-la – são fascistas sob disfarce.
A história já nos mostrou que regimes totalitários são
capazes de suprimir fatos da mentalidade da população. Aliás, nenhum regime
totalitário sobrevive sem buscar definir a história a seu modo. O fato de que
procuradores e juízes condenem sem prova o ex-presidente Lula é algo grave, mas
não singular historicamente. A favor deles se encontra o poder temporal de
fazê-lo contra os fatos, na tentativa de suprimir a estes por meio do ato de
força da própria sentença convertida em fato. Entretanto, já agora estão
disponíveis diversos meios de prova que, apesar de não deterem a força de se
impor sistemicamente, terão o poder, no Brasil e em outros países, de deixar
registrada a violência institucional praticada e apontar claramente os seus
perpetradores e apoiadores ativos e indiferentes.
A classe dirigente brasileira quer impor a todos a aceitação
resignada de uma mentira manifesta, como se todos tivessem que, pelo medo,
reproduzir o absurdo de que 2 + 3 = 7. Muitos se prestam a esse papel, a
começar dos procuradores e juízes que operam o cenário, incluindo-se aqueles
que os apoiam e os que imaginam ficar alheios à questão. Por esse ato,
renunciam a sua própria dignidade para habitar o mundo humano e regridem ao
estágio da lei do mais forte, por mais que, em palavras apenas, afirmem-se
democratas. O preço histórico e existencial será cobrado da sociedade
brasileira e de cada brasileiro que apoiou ou se omitiu diante do ato bárbaro
do juízo de exceção contra o ex-presidente Lula, encomendado para dar
continuidade ao projeto golpista, e agora ditatorial, iniciado em 2016.
Condenar alguém sem provas, em um juízo de exceção, com o
fito de destruir a democracia brasileira é uma possibilidade histórica, que
pode diferir em grau, mas que é da mesma natureza bárbara e violenta do
processo contra Dreyfus, das leis antijudaicas nazistas, dos processos
imperiais contra Gandhi e os que lutaram pela independência da Índia, da
perseguição racista a Mandela e a Martin Luther King, dos métodos da ditadura
de Pinochet empregados contra os que resistiram ao golpe de estado por ele perpetrado.
Todo cidadão é livre para posicionar-se favoravelmente a qualquer um desses
acontecimentos que agrediram e agridem os fundamentos do mundo comum; não tem,
entretanto, a legitimidade de fazê-lo com a expectativa de que possa ser bem
recebido na comunidade humana, porque aquele que julga ter o direito de
sobrepor cegamente suas preferências às regras que possibilitam a convivência
por entre a pluralidade humana expressa, por esse seu ato, sua própria
limitação antropológica para compreender com integridade o sentido de “viver
com”, na medida que é incapaz de transcender o seu próprio autocentramento.
Recife, 31 de dezembro de 2017.
José Policarpo Junior - doutor em Educação (PUC-SP) e
professor titular da UFPE.
[i] Para os que ainda não se informaram
suficientemente, há, entre inúmeras outras fontes excelentes, os seguintes
textos e documentários disponíveis:
A VERDADE DE LULA. Documentos provam cessão de direitos
do Triplex. 20/jun/2017. Disponível em: http://www.averdadedelula.com.br/pt/2017/06/20/documentos-provam-cessao-de-direitos-do-triplex/
A VERDADE DE LULA. OAS é dona do Triplex, reafirma a
defesa. 26/jun/2017. Disponível em: http://www.averdadedelula.com.br/pt/2017/06/26/oas-e-dona-do-triplex-reafirma-a-defesa/
BRASIL DE FATO. Denúncia contra Lula é política, baseada
em hipóteses e não em fatos, diz jurista. 14/set/2016. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/09/14/denuncia-contra-lula-e-politica-baseada-em-hipoteses-e-nao-em-fatos-diz-jurista/
LACERDA, Fernando Hideo I. Breves considerações sobre a
sentença contra Lula. 13/jul/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/breves-consideracoes-sobre-a-sentenca-contra-lula-por-fernando-hideo-i-lacerda
MANCE, Euclides. Falácias de Moro: análise lógica da
sentença condenatória de Luiz Inácio Lula da Silva – Processo no.
5046512-94.2016.4.04.7000. Passo Fundo: IFIBE, 2017.
MEDEIROS, Sérgio. Lula e a fragilidade assustadora da
peça de acusação firmada por Moro. 14/jul/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/fora-pauta/lula-e-a-fragilidade-assustadora-da-peca-de-acusacao-firmada-por-moro-por-sergio-medeiros
PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; RICOBOM, Gisele;
DORNELLES, João Ricardo. Comentários a uma Sentença Anunciada – o
processo Lula. Bauru: Canal 6, 2017.
REDE BRASIL ATUAL. Pedro Serrano: o sistema penal não
soluciona o problema da corrupção. 21/set/2017. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/09/pedro-serrano-o-sistema-penal-nao-soluciona-o-problema-da-corrupcao
SILVA JARDIM, Afranio. Breve análise da sentença que
condenou o ex-presidente Lula e outros. 13/jul/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/breve-analise-da-sentenca-que-condenou-o-ex-presidente-lula-e-outros-por-afranio-silva-jardim
TV 247. Entrevista com Luiz Moreira – Prof. de
Direito Constitucional. 19/dez/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x5Uewhu__mA
TV 247. TV Espanhola destaca perseguição a Lula e
Cristina. 27/dez/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ave8tIOw6K0
ZANIN MARTINS, Cristiano; TEIXEIRA ZANIN MARTINS, Valeska;
VALIM, Rafael et. al. O Caso Lula: a luta pela reafirmação dos direitos
fundamentais no Brasil. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017.
[ii] Conferir os diversos artigos de mais de uma
centena de juristas que compõem a obra já mencionada: PRONER, Carol; CITTADINO,
Gisele; RICOBOM, Gisele; DORNELLES, João Ricardo. Comentários a uma Sentença
Anunciada – o processo Lula. Bauru: Canal 6, 2017.
https://jornalggn.com.br/blog/jose-policarpo-jr/a-condenacao-de-lula-pelo-trf-4-e-o-divisor-de-aguas-na-sociedade-brasileira-%E2%80%93-breve-analise-politico-exi#.WkkE5VaL9eI.facebook
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