Paulo Moreira Leite: Como funciona a fábrica de
“supostas” regalias
publicado em 17 de março de 2014 às 12:18
A FABRICA DE “SUPOSTAS IRREGULARIDADES NOTICIADAS”
Servidores da Papuda acusam Ministério Público de promover
insegurança no presídio e pedem afastamento de seis procuradoras
A reportagem da VEJA sobre a vida de José Dirceu na Papuda,
sem apresentar um fato concreto, sem conferir um boato junto a quem poderia
confirmar ou desmentir o que se pretendia publicar, é aquilo que
todos nós sabemos. Não é séria nem respeitável.
Não passa de um esforço redundante para acrescentar uma nova
camada de boatos (no juridiquês da Papuda eles se chamam “supostas
irregularidades noticiadas”) para prejudicar os réus da AP 470, esforço
redobrado depois que eles conseguiram vitórias importantes, como o
reconhecimento do erro no crime de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Quem está sendo chamado a dar explicações e
prestar esclarecimentos, na verdade, é o Ministério Público do Distrito
Federal.
Num documento assinado pela Associação de Servidores do
Sistema Penitenciário do Distrito Federal, seis integrantes do MP – todas são
mulheres, por concidência — são acusadas de atuar contra a ordem na sistema
prisional.
O pedido foi encaminhado ao Conselho Nacional do Ministério
Público, o órgão responsável por examinar, julgar e punir desvios de
comportamento por parte dos procuradores.
A acusação diz que elas estimulam a
“publicação de fatos ou atos” que perturbam a “paz prisional ”.
A base é o artigo 198 da lei de execução penal, que diz que
“é proibido ao integrante dos órgãos de execução penal e ao servidor, a
divulgaçao de ocorrência que perturbe a segurança e a disciplina dos
estabelecimentos …”
Conforme o documento, as procuradoras ajudam a promover a
desordem entre os presos e suas famílias através da reproducão, no site do
próprio Ministério Publico, de rumores e boatos que não foram comprovados nem
confirmados. Através disso, conclui-se pela leitura do documento, cria-se um
ambiente artificial de agitaçao e descontentamento entre a população
encarcerada.
Sabemos como isso começa. Sem cometer a deselegância de
perguntar quem assopra essas coisas (fatos? Hipóteses? Delírios?) para
jornalistas, estamos falando de suspeitas e hipóteses divulgadas por
jornais e revistas com a técnica marota de sempre.
A partir de depoimentos anonimos, verbos no tempo
condicional, fontes desconhecidas e outros recursos típicos de quem sabe que
pode estar embarcando numa fria, publica-se uma reportagens recheada de (fatos?
Hipóteses? Fantasias? Delírios? ) que seriam graves se fosse
demonstrado que são verdadeiros.
Em seguida, essa reportagem é reproduzida no site do
ministério publico do DF – mais uma vez, sem qualquer checagem para confirmar
sua veracidade.
Numa terceira etapa, estes “fatos” — imaginários ou não — aterrisam em documentos oficiais e são usados para prejudicar os réus e pressionar as autoridades do sistema prisional.
Numa terceira etapa, estes “fatos” — imaginários ou não — aterrisam em documentos oficiais e são usados para prejudicar os réus e pressionar as autoridades do sistema prisional.
Em suas petições, o juiz Bruno Ribeiro, da Vara de Execuções
Penais, cobra investigações para apurar “supostas irregularidades noticiadas”,
definição cujo sentido desafia os estudiosos do direito e da língua portuguesa.
Convém não esquecer uma realidade elementar. Tudo o que é um suposto ser também é um suposto não-ser, ensina-se no jardim de infancia da filosofia.
Convém não esquecer uma realidade elementar. Tudo o que é um suposto ser também é um suposto não-ser, ensina-se no jardim de infancia da filosofia.
Se as irregularidades são apenas supostas, podemos supor,
pela simples lógica, que elas também podem ser “regularidades “ – e, talvez,
nada de errado esteja acontecendo, como se poderia pensar, supostamente.
O único elemento consistente no pedido de investigação
reside no fato de as “supostas irregularidades,” terem sido “noticiadas. ”
Uma notícia, como se sabe, pode ser produzida a partir de
uma apuração cuidadosa e responsável. Mas também pode ir para o papel sòmente
porque lá pelas 19 horas um editor de jornal clicou “salvar” e
depois “enviar ” antes de mandar um texto para o leitor. O que isso tem a ver
com Direito, com a Justiça, com a Liberdade de cada um? Nada.
Jornais e revistas erram todos os dias. Erram sem querer e
erram por querer. Podem ter interesse na verdade, mas também ganhar com a
mentira. São empresas comerciais e também atuam politicamente.
Têm interesses privados nem sempre transparentes, agendas
ocultas e um padrão cada vez mais frágil de proteger.
Também contam com a proteção de um regime legal que não
estimula posturas responsaveis. As vítimas de seus erros – e também falsidades
– não tem direito de resposta. Empresas de faturamento bilionário são levadas a
pagar – quando isso acontece – multas irrisórias.
Um exemplo recente. Depois de fugir durante oito anos de
suas responsabilidades pela divulgação de uma denúncia irresponsável sobre
contas de ministros no exterior, a mesma VEJA que agora denuncia Dirceu está
sendo chamada a pagar uma multa de R$ 100 000 para a família de uma das
vítimas, Luiz Gushiken.
Lê-se na sentença assinada pelo desembargador Antonio
Velinils que a revista “não tinha prova consistente” para dizer o
que disse. Fez uma reportagem sem oferecer “um único indício de confiança.” Em
vez de assumir uma postura prudente, como a situação recomendava, preferiu
“insinuar que as informações eram, sim, verdadeiras.”
Mais tarde, quando o caso chegou a Justiça, a revista tentou justificar-se sem conseguir apresentar um único argumento aceitável para explicar o que fez, Usando de subterfúgios e truques de linguagem, construiu uma “falácia de doer na retina,” acusa o desembargador, que ainda concluiu que VEJA “abusou da liberdade de imprensa.”
Mais tarde, quando o caso chegou a Justiça, a revista tentou justificar-se sem conseguir apresentar um único argumento aceitável para explicar o que fez, Usando de subterfúgios e truques de linguagem, construiu uma “falácia de doer na retina,” acusa o desembargador, que ainda concluiu que VEJA “abusou da liberdade de imprensa.”
É disso que estamos falando. Abusos. Os presos não
constestam, na Papuda, as penas que receberam. Querem cumprir o que a lei
determina. Lutam por este direito – o que dá uma ideia do absurdo que
enfrentam.
Mas não é isso o que acontece. A repetição de pedidos de
investigação das “supostas irregularidades noticiadas” está longe de configurar
um esforço para se cumprir a obrigação de apurar e investigar todo indício de
crime, o que seria natural.
O que se faz é criar um circulo vicioso. Lembra o
fatiamento que Joaquim Barbosa inventou para apresentar a denúncia da AP 470?
Cada suposição leva a outra, que leva a seguinte, depois a
próxima, e mais uma … num calderão de “irregulardades noticiadas”
que não precisam ser provadas. Basta que em seu conjunto formem uma nuvem
política, uma conviccão maligna que pode levar muita gente acreditar que a
Papuda é um presidio inseguro, instável, perigoso – e que o jeito é mandar os
réus da AP 470 para um presidio federal, como um deputado do Solidariedade
pretende fazer.
Claro que não seria uma medida fácil. Como recorda a
Associaçao dos Servidores, a Papuda encontra-se entre os melhores presidios do
país:
“Há mais de uma década não temos rebelião; nunca tivemos
decapitação de seres humanos; há mais de seis anos não há homicídios
intramuros; há inexistência de faccões criminosas…”
A verdade, porém, é que tudo tornou-se perigosamente possível
depois que Joaquim Barbosa confessou que havia manipulado as penas da AP 470
para conseguir condenações mais duras, em regime fechado. Assim, sem
retratar-se.
Não importam os fatos, nem mesmo a lei. Importa a vontade do
juiz.
Lembra da frase “A constituição é aquilo que o Supremo diz
que ela é”?
Quando uma “suposta irregularidade noticiada” não
chega aonde se imagina que deveriam chegar, encontra-se um atalho para manter a
pressão.
Foi assim com o telefonema de Dirceu. Nada indica que tenha ocorrido. Não se provou.
Foi assim com o telefonema de Dirceu. Nada indica que tenha ocorrido. Não se provou.
Em vez de se questionar a denúncia, o que se questiona é a
investigação. A tese, agora, é que foi “ atípica. “ Por que não
admitir uma “suposta denuncia” ou mesmo uma “denuncia suposta”?
O que está claro é que as “supostas irregulariades noticiadas” foram
investigadas, apuradas – e só tinham valia como cortina de fumaça para
estigmatizar os presos, reduzir seus direitos e impedir a progressão de suas
penas.
As primeiras foram as célebres visitas em dias especiais.
Elas não são uma raridade na Papuda, mas uma tradição, oferecida a todo preso
considerado “vulnerável.” Foi assim que, por oito anos, os familiares dos
jovens de classe media que assassinaram o índio Galdino, em Brasília, visitavam
seus filhos numa data diferente daquela reservada aos parentes de outros
internos. Isso porque havia, entre eles, não só ministros de Estado, mas também
um juiz federal, motivo para se tentar prevenir reações imprevistas por parte
da massa carcerária.
Em nome do “combate ao privilégio” todas as visitas em
caráter especial da Papuda foram suspensas no final de 2013. Em função disso,
“muitos pais e familiares não se arriscam a visitar seus entes, junto a massa
carcerária,” diz o documento dos servidores. “Fato lamentável!”, dizem os
servidores.
Outro privilégio “suposto” foi a feijoada em lata que
Deludio e duas dezenas de colegas de sua ala no Centro de Progressão de Pena
comeram. Num local onde há um fogareiro, panelas e uma cantina que vende até
costelinha, o que se gostaria que presioneiros fizessem? Pedissem para serem
algemados?
O que se vê, aqui, é um fato analisado e resolvido através
de uma sentença do Superior Tribunal de Justiça:
“Foge ao limite do controle jurisdicional o juizo de
valoração sobre a oportunidade e conviência do ato administrativo, porque ao
judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo vedado
substituir o Administrador Público.”
O que se diz aí é que mesmo cidadãos condenados a viver
atrás das grades tem direitos que devem ser respeitados, o que inclui,
inclusive, o respeito pela divisão de poderes que caracteriza o regime
democrático.
Não é preciso acrescentar mais nada, certo?
Num país que assiste a passagem dos 50 anos do golpe de 64,
é bom refletir sobre o que acontece com seus prisioneiros. Não custa recordar
que a face mais horrenda da ditadura foi construída em seus cárceres.