quarta-feira, março 28, 2007


Imprensa discrimina ministra negra

Por que a mídia amplificou uma entrevista perdida, que poucos brasileiros ouviram, com o nítido enfoque de acusar uma integrante do governo Lula de incitação ao conflito racial? A análise é de Nelson Breve

Nelson Breve – Carta Maior (http://agenciacartamaior.uol.com.br/)

BRASÍLIA – Uma rápida consulta aos dicionários Michaelis e Houaiss, disponíveis no portal UOL, é suficiente para se verificar que a palavra “racismo” tem como significado original a “teoria que afirma a superioridade de certas raças humanas sobre as demais” ou “ou conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias”, ou ainda, a “doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras”.


Também estão enumerados lá, entre outros significados, o “apego à raça”, o “preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior” e a “atitude de hostilidade em relação a determinada categoria de pessoas” (sendo esta uma acepção derivada por analogia).


Tais esclarecimentos já seriam suficientes para compreender os motivos pelos quais alguém, especialmente de uma raça ou etnia “considera inferior”, entende que “não é racismo quando um negro se insurge contra um branco”. Mas o contexto em que a ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), Matilde Ribeiro, fez tal declaração permite uma compreensão ainda melhor.


Na entrevista que concedeu esta semana ao serviço brasileiro da Rádio BBC de Londres (BBC Brasil), a propósito do aniversário de 200 anos da proibição do comércio de escravos pelo Império Britânico, ela foi questionada sobre o assunto da seguinte forma: “Como o Brasil se coloca no contexto internacional? O Brasil gosta de pensar que não tem discriminação e gosta de se citar como exemplo de integração. É assim que a senhora vê a situação?”.


E respondeu assim: “É o seguinte: chegaram os europeus numa terra de índios, aí chegaram os africanos que não escolheram estar aqui, foram capturados e chegaram aqui como coisa. Os indígenas e os negros não eram os donos das armas, não eram os donos das leis, não eram os donos dos bens de consumo. A forma que eles encontraram para sobreviver não foi pelo conflito explícito. No Brasil, o racismo não se dá por lei, como foi na África do Sul. Isso nos levou a uma mistura. Aparentemente todos podem usufruir de tudo, mas na prática há lugares onde os negros não vão. Há um debate se aqui a questão é racial ou social. Eu diria que é as duas coisas”.


Na seqüência, uma questão mais específica: “E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?”. E uma resposta honesta, sem hipocrisia, sem fingir que a miscigenação brasileira superou o preconceito e a revolta decorrente dele: “Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos Estados Unidos. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou”.


Racismo nas manchetes


Está claro que na resposta dela não há intenção de justificar qualquer atitude “racista” de negros contra brancos. Matilde ressalva nitidamente que não acha “que seja uma coisa boa” esse comportamento. Mas compreende que exista, explica as razões de existir e defende o ponto de vista de que a insurreição de negros contra brancos é uma reação ao racismo, entendido por movimentos de luta contra a discriminação racial e pelos dicionários tradicionais da Língua Portuguesa como a imposição de uma hierarquia entre raças ou etnias.


No entanto, as declarações da ministra viraram notícia digna das manchetes de jornais e enquete de portais noticiosos da internet. Além de produzirem comentários indignados de colunistas de grande notoriedade. Por que será? Por que a imprensa amplificou uma entrevista perdida, que poucos brasileiros ouviram, com o nítido enfoque de acusar uma integrante do governo Lula de incitação ao conflito racial? Só existem duas explicações no horizonte: ou a imprensa é racista ou quer incitar o conflito racial, como forma de conter as políticas afirmativas que privilegiam a raça e a etnia que menos se apropriaram do acumulo de riquezas ocorrido no país em seus 507 anos de história.


Na semana passada, a Seppir completou quatro anos de criação, comemorados em cerimônia no Palácio do Planalto junto com a celebração do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Mais de uma centena de negros compareceu para assistir a assinatura de termos de cooperação voltados para a inclusão social infanto-juvenil e de comunidades quilombolas em várias regiões do país. Teve até roda de capoeira no Salão Nobre, curiosamente jogada por um convidado vestindo com terno e gravata.


A imprensa estava presente, mas não adianta procurar o fato no noticiário do dia, ou do dia seguinte. Envolvido com a reforma ministerial, o presidente Lula não participou da cerimônia. Enviou o vice, José Alencar, para representá-lo. Pela linha editorial da mídia, isso é suficiente para que o fato seja completamente ignorado.


O que não é notícia


Um dos termos de cooperação assinado entre a Seppir e a Eletrobrás permitirá o repasse de R$ 1 milhão ao programa Energia Quilombola, atendendo quase 6 mil famílias de três Estados (Bahia, Minas Gerais e Maranhão), com projetos de avicultura, artesanato regional e agricultura, como a construção e aquisição de 10 casas de farinha e cinco mini-usinas para extrativismo do arroz, em Itapecurumirim (MA). Outra parceria formalizada foi a do projeto Adolescente Aprendiz, desenvolvido entre a Seppir e a Caixa Econômica Federal, que está abrindo 150 vagas para contratação de jovens negros como aprendizes nas agências bancárias, recebendo remuneração, além de noções de técnicas bancárias e cidadania. No âmbito do projeto Cozinha Brasil, do Sesi, foi assinado convênio para desenvolver atividades turísticas e comunitárias dos quilombos, contemplando inicialmente comunidades quilombolas do Rio de Janeiro. O Cozinha Brasil incentiva a população a adotar hábitos alimentares saudáveis, com aproveitamento da produção local.


Também foi firmado termo de cooperação relacionado ao projeto Resgatando e Descobrindo os Talentos Esportivos Nacionais, que pretende integrar esportistas consagrados com jovens estudantes da rede pública e integrantes do programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte, para aliar valores da prática esportiva aos conceitos de cidadania e desenvolvimento humano. Uma parceria com a Confederação Brasileira de Capoeira no âmbito do projeto Ginga Brasil permitirá o estimulo dessa prática esportiva entre crianças e jovens residentes em quilombos e periferias, com o objetivo de promover a cidadania através do esporte.


O projeto Recuperando a Cidadania também foi integrado às políticas de promoção da igualdade racial. Destinado a ressocializar jovens em regime de semiliberdade no Rio de Janeiro e previsto para ser desenvolvido durante os Jogos Pan-americanos, será uma oportunidade de interação desse grupo com atletas e participantes do Pan 2007. Com o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), foi assinado termo de cooperação para participação de uma tribo indígena e uma comunidade quilombola no revezamento da Tocha Pan-americana, que vai percorrer 42 cidades brasileiras.Combate ao racismo na agenda mundial Durante a cerimônia, a ministra Matilde fez um balanço dos quatro anos de atuação da Sepirr. Fazendo referência ao presidente do COB, Carlos Arthur Nuzmann, que estava sentado na primeira fila do auditório, ela frisou que “racismo não é um problema só dos negros”, mencionando outras raças discriminadas, como judeus, palestinos e sudaneses. Ela também saudou o fato de alguns novos governadores terem criado secretarias análogas, como o caso da Bahia e do Maranhão, cujo governador, Jackson Lago (PDT), estava presente para entregar ao vice-presidente o Plano de Igualdade Racial do seu Estado. José Alencar recebeu também, das mãos de Maria Inês Barbosa, o Relatório da Conferência Regional das Américas, realizada em julho do ano passado.


Quebrando o protocolo, ela fez um rápido discurso para lembrar que o Brasil tornou-se protagonista da luta contra a desigualdade pela “ousadia e atrevimento” do governo brasileiro ao colocar o combate ao racismo na agenda mundial, e prever que o país terá uma participação de destaque na 4ª Conferência Mundial contra o Racismo da ONU.José Alencar leu o discurso preparado para o presidente Lula, assegurando que o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento – vai possibilitar um ataque mais vigoroso às causas da desigualdade brasileira. “Mas, por meio do combate sem trégua à intolerância e ao preconceito é que poderemos superar a herança iníqua que essa desigualdade nos deixou”, ressaltou, observando que o Prouni já possibilitou o ingresso de mais de 63 mil jovens descendentes de africanos e de dois mil indígenas na universidade, num total de mais de 172 mil vagas já ocupadas. “O preconceito, minhas amigas e meus amigos, finge que a história não existe. Só assim consegue atribuir à biologia a explicação para uma desigualdade decorrente da exploração e da injustiça social. O racismo derivado da escravidão é um exemplo dessa farsa”, sustentou Alencar, no discurso feito em nome do presidente.


Cabeças negras no Palácio


No entanto, o comportamento do próprio Cerimonial da Presidência comprova que a discriminação não é só racial, como chamava a atenção da ministra Matilde na entrevista à BBC Brasil. Dentro da própria raça discriminada existem outras formas de discriminação, como mostraram os assessores palacianos que desalojaram três mães-de-santo e o pessoal da capoeira, que executou o Hino Nacional, para que embaixadores e autoridades, quase todos negros, ficassem nas primeiras filas. As mães de santo Ana Akini e Railda, do Distrito Federal, e Vera Soares, do Rio Grande do Sul, até conseguiram um lugar na frente da bancada da imprensa, mas só depois de muita discussão entre os assessores, que ainda não se acostumaram a ver tantos negros pobres no Palácio.


O ponto alto da solenidade foi a abordagem desse estranhamento feita pela representante dos movimentos de combate ao racismo, Tereza Santos. Antiga militante negra e do Partido Comunista, sambista, artista plástica e estudiosa dos temas raciais e de gênero, ela viveu por cinco anos no Continente Africano, contribuindo para a reconstrução cultural de Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau. Disse no discurso que a maior homenagem que uma mulher negra poderia ter depois de ter passado por tanta coisa na vida “é ver tantas caras negras dentro do Palácio do governo”, em um país onde só os negros até hoje só receberam migalhas do poder.


“As coisas estão mudando, sim”, reconheceu Tereza, observando que na Seppir “tem uma mulher negra, pobre e consciente”, que as cotas raciais nas universidades são uma realidade e que já é possível sonhar com a igualdade, embora o avanço tenha sido muito pouco. “Apesar dessa grande abertura do governo do PT, a gente quer mais. Não acima do que merecemos e temos direito. Por incrível que pareça, as pessoas não percebem, é incrivelmente difícil ser negro neste país”, afirmou, lembrando que os ativistas que comemoravam o Dia de Combate ao Racismo fazendo passeatas em São Paulo e enxergados como extraterrestres. “Comemorar neste Palácio é um avanço que me orgulha e posso começar a descansar, mas vou continuar querendo mais”, avisou Tereza, fazendo um apelo ao vice-presidente, para ser encaminhado a Lula: “Não deixe que a nossa luta pare por aqui. Não pense que nossa caminhada já chegou onde tinha que chegar. Estaremos com o senhor e o presidente, para buscar, de fato, o que só tivemos no tempo de Palmares: uma verdadeira democracia. Não apenas uma democracia racial”.


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