Decisões estratégicas
José Dirceu, ex-ministro Chefe da Casa Civil
Dois fatos aparentemente desvinculados - a visita do presidente Bush ao Brasil e a do ministro Guido Mantega à Argentina, na semana passada - devem ser avaliados juntos, porque são complementares e ajudam a entender o novo tempo da política externa brasileira. O tempo da soberania dos interesses nacionais.
Vistos de forma articulada, os dois movimentos reafirmam a mudança de qualidade de nossa diplomacia. Só possível em função da convicção de que o projeto de desenvolvimento nacional passa pela integração sul-americana. Se não entendermos isso, não vamos compreender como é possível que, de um lado, o presidente Lula tenha recebido o presidente dos Estados Unidos, para tratar de interesses bilaterais sobre o etanol e a transição da matriz energética mundial. Enquanto, no mesmo momento, na Argentina, os ministros da Fazenda do Brasil e de Kirchner definiam um salto de qualidade na agenda da integração continental.
O mundo dos próximos 20 anos, para ficar no curto prazo, estará dominado pela questão energética e a ambiental, pelo aquecimento global e suas conseqüências. Os países que contam com água, petróleo, gás, urânio e biocombustíveis estão posicionados, ou se posicionando, para esse futuro que já chegou. Nenhum deles reúne, no entanto, as excepcionais condições do Brasil para avançar nesse futuro. Além de imensas reservas dessas matérias-primas, somos detentores da tecnologia e de produção de máquinas e equipamentos em todos esses setores. Somos protagonistas, e não simples exportadores de matérias-primas ou alimentos.
Portanto, o movimento brasileiro em defesa do etanol, um dos eixos da transição energética em curso no planeta, apenas amplia o espaço de autonomia para acelerar a integração sul-americana. Precisamos passar a conceber o Brasil como um país industrializado e desenvolvido, que detém as condições para se auto-abastecer e abastecer o mundo de parcela significativa de energia. E que o fará, exportando capitais e tecnologias, sendo sócio e parceiro em toda a América Latina, e disputando o mercado mundial.
Defendo que tenhamos nossa própria política de biocombustíveis, sem prejuízo de alianças com os Estados Unidos, e uma empresa internacional de energia, seja por meio da Petrobras ou da Eletrobrás, ou de uma nova a ser criada.
Daí a importância da visita de Bush para o esforço que temos pela frente: transformar o etanol e, depois, o biodiesel, em comoditties, normatizar sua produção, desenvolver sua tecnologia, inclusive criando mercado próprio e uma bolsa internacional para essas fontes de energia.
Em sua visita à Argentina, o ministro Guido Mantega fez dois anúncios e uma previsão. Anunciou que o Brasil concorda com a criação do Banco do Sul e propôs que o BNDES e a CAF (Corporación Andina de Fomento) sejam a base para o início de suas operações. Além disso, retomou a agenda das trocas comerciais entre o Brasil e a Argentina, sem o dólar como moeda.
Teremos uma moeda contábil; o comércio será direto entre o peso e o real. Medida que, acredito, deverá ser estendida a Uruguai e Paraguai e, depois, a toda América do Sul. Essas duas medidas têm alcance estratégico para a consolidação e ampliação do Mercosul, rumo a um mercado comum sul-americano e a uma União de Nações Sul-Americana, a exemplo da União Européia.
Na mesma viagem, Guido Mantega defendeu, a médio prazo, juros reais de 5% - quase a metade dos juros médios de 2006, o que significa uma mudança profunda para o Brasil. Viabilizará, junto com o PAC e a reforma tributária, as condições para o crescimento do emprego e da renda, de forma crescente e sustentável nos próximos 20 anos.
Esses fatos evidenciam uma mudança de qualidade na política externa brasileira, impulsionada pela política de desenvolvimento nacional e pela afirmação do poder nacional e de nossos interesses. Estamos nos apresentando ao mundo como nação soberana e autônoma, pronta a assumir suas responsabilidades internacionais nas duas questões chaves deste século: a energia e o meio ambiente.
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