quarta-feira, abril 10, 2019

QUANDO ESSE GOLPE FINALMENTE FOR DERROTADO, NINGUÉM VENHA FALAR EM ANISTIA



O infortúnio da família do ex-presidente é a desgraça de um país à deriva, onde o pobre é o alvo


“Eu não posso aceitar que meu pai esteja preso por causa de um apartamento que a gente nunca foi dono, nunca usou, nunca teve as chaves. Eu sei a verdade desta história, fui nesse apartamento com a minha mãe para ver se ela queria comprar. Se quisesse, poderia ter comprado, tinha condição para isso. O fato é esse. Mas aí inventaram uma mentira absurda, e o prenderam. O que eles não entendem é que o Lula, além de ser um líder político, é o meu pai e dos meus irmãos, avô dos meus filhos e sobrinhos, o bisavô da Analua. Nós sofremos muito com isso. Ele tem 73 anos e está numa solitária por um crime que não cometeu. E nós acabamos presos com ele.”

O depoimento, a CartaCapital, é de Fábio Luís Lula da Silva. O leitor há de se recordar do Lulinha. Bem antes da mamadeira de piroca, ainda no advento das fake news, o filho do ex-presidente Lula era “o dono da Friboi”, mentira deslavada que por vezes incluía a posse da Oi, além de um avião de 50 milhões de dólares. “A perseguição ao meu pai se estende a nós. Perdemos minha mãe porque ela não aguentou isso. No passado, diziam que o Lula morava no Morumbi e não na nossa casa em São Bernardo. Éramos crianças, e crescemos ouvindo essas mentiras sobre nós, uma loucura. Eu mesmo já fui dono da Friboi, né? Hoje soa engraçado, mas aquilo foi um verdadeiro inferno… Meu pai nunca se preocupou em juntar dinheiro, tanto que mora na mesma casa desde os anos 80. Agora está preso por um crime que nunca cometeu. É revoltante, uma tristeza diária não convivermos com ele.”



A tragédia da família Silva é literal e metafórica. Depois de um ano da prisão política do ex-presidente, que aniversariou no domingo 7, os Lula da Silva comem o pão que Sérgio Moro amassou. O juiz tirou do páreo o candidato favorito à Presidência e, a reafirmar nossa vocação bananeira, ascendeu-se ao poder como ministro do governo que ajudou a eleger. Lula, por seu lado, cumpre pena de 12 anos e um mês numa solitária na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, encalacrado com sentenças e processos que fazem de Kafka literatura infantil.
Durante esse período, o ex-presidente perdeu o irmão Vavá, morto aos 79 anos, e seu neto Arthur, 7, vítima de infecção bacteriana. Filhos e noras fecharam-se em casa, assombrados por problemas financeiros e de saúde, colhidos pelo luto e o medo da violência física, acossados por buscas e apreensões. Metaforicamente, os Silva são também o povão, tamanha a presença do sobrenome na base da pirâmide. No contexto atual, a tragédia de um é a tragédia do outro – ao se aprisionar o Silva que estaria no topo, elegeram-se os Silva da base como o alvo a ser abatido.
Desde a morte de dona Marisa, filhos e noras de Lula ficaram traumatizados pelo infortúnio e a perseguição. “Quem acompanha de perto sabe a dificuldade que essas pessoas têm”, diz Paulo Okamoto, ex-metalúrgico responsável pelo Instituto Lula e um amigo do ex-presidente desde os tempos do sindicato em São Bernardo do Campo. “Não conseguem trabalhar, não têm tranquilidade para estudar, os netos são hostilizados na escola. Ao condenar o Lula, condenaram a família. Deviam sair do Brasil, mas quem vai fazer isso com um pai na cadeia?”
Tampouco teriam condição para isso, já que atravessam sérias dificuldades financeiras. Estão com os negócios à míngua ou tecnicamente desempregados, à exceção da filha Lurian e do filho Luiz Cláudio, que acaba de assumir um posto de assessoria no gabinete do deputado estadual por São Paulo Emídio de Souza, do PT. Na terça-feira passada, Emídio foi instado a dar explicações à imprensa a respeito de sua escolha, e Luiz precisou esquivar-se dos repórteres. Vai ganhar 6 mil reais por mês. “Que empresário dará emprego a esse pessoal?”, pergunta-se Okamoto. “É sempre a mesma história: ‘Mas os filhos do Lula são ricos, por que estão trabalhando aqui?'”
O pedagogo Marcos, filho mais velho, cuida de um pequeno mercadinho e está tentando montar uma distribuidora de carvão. Depois da morte de dona Marisa, mudou-se com a família para o interior de São Paulo, disposto a refazer a vida. Mas, num episódio nunca esclarecido pelas autoridades, teve a nova casa invadida pela polícia sob o argumento de que buscavam desmantelar uma quadrilha de tráfico de drogas. Levaram computadores, devolvidos mais tarde. Nada foi encontrado.
Desde então, ele e a mulher lutam para superar o trauma, transformado em doença. Todos os outros filhos foram alvos de buscas e apreensões que reviraram imóveis, recolheram máquinas e documentos. O neto Arthur, filho de Sandro e Marlene, testemunhou a ação quando os policiais foram à casa da família. Não há notícia de que algo de suspeito tenha sido apanhado em qualquer uma das operações. O ipad de Arthur, levado do apartamento de Lula, jamais foi devolvido. Desse processo, Sandro herdou uma síndrome do pânico, hoje sob melhor controle.
Fábio Luís, o Lulinha, é um dos donos da PlayTV, um canal por assinatura que veicula informações sobre música, filmes, animes e jogos de computador. Antes, firmara parceria com a Oi para produção de conteúdo jovem para telefones celulares. De “sócio” da empresa nesse empreendimento, foi catapultado pelos antipetistas a “dono da Oi”. Fosse verdade, seria um grande case de fracasso, visto que o dono da Oi não consegue mais acesso a empresários capazes de veicular seus reclames no canal.
“Tudo que se relaciona a Lula e ao PT ganhou a marca de uma grande organização criminosa”, diz Okamoto. “A Receita passou a fiscalizar em minúcia e aplicar sanções absurdas. O próprio instituto, por exemplo, foi multado em 15 milhões de reais por desvio de função, mas nos últimos anos arrecadamos uma média de 5 milhões por ano. Como vamos pagar isso? Todas as empresas dos filhos do Lula foram investigadas por tráfico de influência. Se não encontram nada, acabam achando algum problema de gestão, muitas vezes erros que a gente comete sem nem saber que é proibido. Isso foi minando os negócios.” O filho Luiz Cláudio, que tentou montar uma liga de futebol americano no Brasil, foi denunciado por tráfico de influência pela Operação Zelotes. É réu em um processo e denunciado em outro.
Na cadeia há um ano, Lula não esmorece. “Qualquer pessoa que comete um crime e sabe que cometeu de alguma forma se entrega e apenas torce para pegar uma pena menor”, diz um de seus advogados, Luiz Carlos Rocha. “A diferença para outros réus é a convicção que ele tem de não ter feito nada de errado. Lula faz da sua inocência a sua força motriz. Não admite nem conversar sobre a possibilidade de um indulto nem mesmo de uma prisão domiciliar. Quer ser julgado e inocentado.”
No primeiro dia de visita depois da morte de Arthur, o deputado cearense José Guimarães, do PT, esteve na carceragem da PF. Assim que entrou, abraçou o ex-presidente e passou a dizer-lhe palavras de consolo. Foi interrompido na hora. “Zé, eu tenho 73 anos e ainda estou tentando entender tudo o que aconteceu comigo. Vamos seguir em frente e vamos lutar!”
Quando foi comunicado na cadeia sobre o falecimento do neto, repetiu três vezes: “O Arthur? O Arthur? O Arthur?” Chorou por 12 horas. Quando embarcava no helicóptero da polícia, depois de participar do velório em São Paulo, brincou com o próprio infortúnio: “Vocês têm coragem de voar comigo nisso aí?”, perguntou. “Nunca vi um preso com a capacidade de resiliência que ele tem”, disse a CartaCapital, sob sigilo, um agente da PF de Curitiba cuja experiência ultrapassa duas décadas. “Esse é um homem muito forte, extremamente forte. Acredita de verdade que não cometeu crime algum. Entre os presos da Lava Jato, eu nunca tinha visto ninguém assim.”
Desde 7 de abril de 2018, Lula vive sozinho num espaço de 25 metros quadrados no quarto andar do prédio da PF. Um quarto com banheiro, armário, mesa com quatro cadeiras, uma esteira ergométrica, uma tevê apenas com canais abertos. Na parte da manhã, conversa por uma hora com Luiz Carlos Rocha, a quem chamam de Rochinha. À tarde, recebe o também advogado Manoel Caetano, pelo mesmo período. De resto, permanece isolado no quarto, lendo e assistindo televisão. Por alguns dias agarrou-se ao catatau de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, Brasil: Uma Biografia, de 709 páginas. Come a comida da cadeia, a não ser quando, no dia da visita – às quintas –, chega a “moela da Neide”, prato preferido preparado pela cozinheira do Instituto Lula. A lamentar, a televisão que raramente passa o Corinthians, cujo uniforme, shorts e camisa, costuma vestir quase todas as manhãs.
Sempre sozinho na cela durante os fins de semana, Lula dedica-se a ler uma montanha de cartas que lhe chega depois da triagem feita numa sala térrea do Instituto Lula, onde a imersão exige um coração valente. Há escritos de todo tipo. Uma pessoa de Anita Garibaldi, em Santa Catarina, diz que o pai costumava ouvi-lo no rádio, mas que só viram seu rosto depois que o projeto Luz para Todos permitiu que ligassem uma televisão. Um outro escreve a cada três dias. Há uma profusão de jovens que se formam e correm a agradecer a chance que lhes foi dada pelos programas de bolsas e cotas em universidades. De Palmópolis, Minas Gerais, uma senhora diz que Lula “com Bolsa Família matou a fome de muita gente e hoje está nessas condições”. Mais adiante, “sei que sua companheira faltou e que você não pode chorar de tanta tribulação (SIC). Pela fé que tenho em Deus você vai sair dessa”. A carta, ditada, tem por assinatura a digital de seu polegar.