sábado, fevereiro 10, 2007



Uma nova avenida para a reforma agrária
(Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 08 de fevereiro de 2007)


O governo Lula assentou, em seu primeiro mandato, 381.419 famílias, em 31,6 milhões de hectares de terras. Um desempenho bem superior ao da era FHC: 24,5% a mais do que o realizado na primeira administração, e 44% superior ao número de assentados na seguinte. Mesmo com os dados sujeitos à auditagem, legítima e necessária, das organizações sociais do campo, como Contag e MST, não há dúvida de que estamos falando de um programa de grande alcance social.
Todavia, é quando analisamos a política do governo Lula para a agricultura familiar – que reúne 4 milhões de famílias, gera quase 2/3 da ocupação rural e responde pela principal fatia na oferta de alimentos básicos –, que a diferença com a política tucana para o setor assume outra dimensão.
Nos últimos quatro anos, consolidou-se uma mudança de qualidade no tratamento da questão agrária. Crédito, seguro de perdas, Luz para Todos, aquisições do governo federal, bem como a retomada da assistência técnica, redefiniram o espaço e o sentido da agricultura familiar no campo brasileiro. Muita gente esquece desse detalhe, mas, depois de assentado, o trabalhador precisa de estrutura adequada para que possa lutar pela produção. Agora, 80% das famílias assentadas dispõem de assistência técnica. Em 2006, 555 mil famílias receberam apoio de agrônomos ou técnicos do setor. O Luz para Todos levou energia elétrica para facilitar a vida e a produção de 132 mil famílias. Foram construídos 32 mil quilômetros de estradas, favorecendo o escoamento da produção de 197 mil famílias. Os recursos de apoio à instalação dos assentamentos, da ordem de R$ 191 milhões em 2003, mais do que quadruplicaram no governo Lula. Somaram R$ 875,6 milhões em 2006.
Portanto, fez-se muito. Mas é evidente que, em apenas quatro anos, não seria possível vencer um torniquete fundiário que remete à colonização nacional e carrega as distorções de uma Abolição feita pela metade, sem prover cidadania aos escravos libertos. A luta por reforma agrária, que tem origem na concentração da terra, faz parte da luta camponesa e da esquerda brasileira. Deu origem a movimentos históricos no passado e no presente, e, também, à reação conservadora, muitas vezes violenta e assassina, que culminou no golpe militar de 64. Foi o fermento dessa luta, que fez produzir o primeiro Estatuto da Terra e, anos depois, já na década de 80, conquistar a cidadania, consagrada na Constituição e em lei. Mesmo assim, ela continua enfrentando a resistência da direita rural, que, no Congresso Nacional, resiste a medidas como a revisão dos índices de produtividade para fins de reforma agrária.
O grande desafio que se apresenta é como combinar a pequena propriedade, resultante do processo de desapropriação de latifúndios improdutivos, com a necessidade de produtividade e rentabilidade nas unidades familiares de assentados. O mundo é outro. A realidade dos mercados globais e a explosiva elevação da produtividade da agricultura desautorizam modelos de reforma agrária convencionais, apoiados em cultivo de grãos, por exemplo. Seu aggiornamento não pode ser desvinculado de um projeto novo de desenvolvimento.
Um dos eixos dessa travessia, hoje, é a agroenergia. Mais especificamente, no caso do nosso país, seu nome é biodiesel. Trata-se de uma oportunidade de ouro para engatar o projeto da reforma agrária a uma atividade relevante, que atende à urgência social no campo, alivia a pressão sobre as periferias urbanas e adiciona uma contribuição importante ao desafio ambiental. O mundo já sabia, mas precisava ser sacudido pelos ombros, como aconteceu agora com o relatório do IPCC-2207, divulgado em Paris na semana passada. O efeito estufa já acionou uma engrenagem de distúrbios irreversíveis, que adquiriu dinâmica própria a partir, por exemplo, dos encadeamentos provocados pelo degelo no Ártico.
Trata-se, agora, de evitar uma nova e talvez insuportável espiral na lógica da destruição. Para isso, será preciso mudar a agenda do século. A agroenergia será um dos motores do mundo e da vida nas próximas décadas. Os movimentos sociais do campo precisam tomar consciência disso: a crise ambiental abriu uma nova avenida no caminho da reforma agrária. Eis uma proposta para o debate.



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