terça-feira, fevereiro 06, 2007

De volta, a Lei Ricupero às avessas
5 de Fevereiro de 2007 @ 18:21 por Alceu Nader

Veja distorce entrevista com ex-embaixador para reforçar sua idéia pré-concebida sobre política externa do governo Lula
Um dos instrumentos costumeiros que a grande mídia utiliza para impor sua opinião é destacar aquilo que pretende transferir ao público nas partes mais visíveis e lidas de uma reportagem, como título, subtítulo, legendas etc.
Pesquisas, de circulação restrita entre os diretores de redação e editores, confirmam: quase a totalidade dos leitores pesquisados lê o que se destaca nesses campos da página, ao passo que o percentual de leitores que lê as reportagens propriamente diminui na medida em que avança o texto da matéria.
O truque de realçar a informação conveniente ou encomendada pela diretoria, na maior parte das vezes, provoca distorce o que é a pura verdade. Além disso, exige malabarismos extras dos editores que, muitas vezes, entregam-se nas contradições evidentes que surgem depois de uma leitura mais ou menos atenta.
Poucas publicações desempenham essa prestidigitação com a mesma desenvoltura da revista Veja, quando o tema é adesão à Alca. A vítima da semana é a política externa do governo Lula, sobre a qual a empresa e a direção responsáveis pela revista têm opinião formada. Para enfatizar o que já publicou inúmeras vezes nos últimos anos – a idéia de que a política externa dos últimos quatro anos é um rosário de fracassos – a revista traz o embaixador Roberto Abdenur, aposentado na semana passada, na entrevista das páginas amarelas.
O diplomata serviu aos propósitos da revista, embora tenha sido peça importante da mesma política externa que parece condenar– era embaixador do Brasil nos Estados Unidos. O primeiro truque aparece já na capa:
“’Nem na ditadura’ – embaixador denuncia doutrinação no Itamaraty”.
A violência embutida na “denúncia” desconhece a história. Durante a ditadura, diplomatas foram cassados e presos, não faltando, inclusive, a presença de pelo menos um filho de diplomata nas listas de desaparecidos políticos.
Nos campos privilegiados das páginas mencionados no início desse comentário, voltam os demais truques mencionados. O título, na falta de um argumento mais sólido para a “denúncia”, repete a mentira da capa: “Nem na ditadura”. No subtítulo, a “doutrinação” é aprofundada, segundo palavras atribuídas ao entrevistado: “O diplomata diz que a política externa do governo Lula é contaminada pelo antiamericanismo e pela orientação ideológica”.
Na legenda da foto do entrevistado, o reforço da idéia pré-concebida baseia-se em uma impressão pessoal do entrevistado: “’Há um sentimento generalizado de que hoje os diplomatas ao promovidos de acordo com sua afinidade política e ideológica, e não por competência’”.
Os truques se repetem nos dois olhos que se destacam nas perguntas e respostas.
O primeiro intertítulo diz:
“A minha maior crítica está na dimensão exagerada dada à cooperação entre os países menos desenvolvidos como eixo básico da nossa diplomacia. Isso é um substrato ideológico, vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado”.
O segundo:
“Existe um elemento ideológico muito forte na política externa brasileira. Está havendo um esforço de doutrinação. Diplomatas de categoria são forçados a certas leituras quando entram ou saem de Brasília. É uma coisa vexatória”.
Não é bem isso o que o ex-embaixador enfatizou, como se verá na reprodução fiel das perguntas e respostas publicadas. Para facilitar a visualização das conclusões manipuladas da revista, os trechos que desmentem o que a revista ressalta estão em recuo.
Veja – Substantivamente, houve pontos positivos na política externa brasileira no primeiro mandato do presidente Lula?Abdenur – Sim, sem dúvida. O Brasil engatou uma parceria com Índia, Japão e Alemanha para obter uma cadeira definitiva no Conselho de Segurança da ONU. É luta válida, que vai trazer resultados. Acho muito bom o que o governo tem feito para abrir novas frentes de comércio com países árabes, com o Sudeste Asiático, com a Ásia Central, com a África. Acho muito positiva também a forma inovadora de trabalho com o Ibas (grupo que reúne Índia, Brasil e África do Sul). É a primeira vez que três países grandes, de três continentes diferentes, se unem para buscar iniciativas conjuntas. Acho que o Brasil tem conduzido com amplo equilíbrio e proficiência as negociações da Rodada de Doha. O Brasil é um jogador decisivo, tem uma atuação de liderança no G20 muito importante. Há ainda a questão do Haiti, onde lideramos pela primeira vez uma ação de países latino-americanos em favor da paz. Enfim, houve acertos…
(Perceberam o truque do “enfim, houve acertos”? Parece até que o entrevistado reconheceu apenas um ou dois avanços da política externa. Mas tem mais:)
Veja – E os erros substantivos? Abdenur – A minha maior crítica à atuação do Itamaraty está na dimensão exagerada dada à cooperação entre os países menos desenvolvidos como eixo básico da nossa diplomacia. Com a queda do Muro de Berlim, desapareceu completamente o paralelo que dividia o mundo em Ocidente e Oriente. O meridiano Norte-Sul não desapareceu de todo, mas se desvaneceu. O diálogo Norte-Sul é uma realidade. A esta altura da vida, com o mundo em transformação vertiginosa, não vale mais valorizar tanto a dimensão Sul-Sul. Isso é um substrato ideológico vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado. A nossa relação com a China e com a Índia também apresenta equívocos. É preciso ter parceria com os dois países, mas eles não podem ser considerados nossos aliados.
(…)
Veja – Como o senhor avalia a relação do Brasil com os Estados Unidos nos três anos em que serviu como embaixador em Washington?Abdenur –
Pode parecer paradoxal, mas a relação do Brasil com os Estados Unidos prosperou significativamente nos últimos anos. Graças a uma pessoa que manda muito no governo brasileiro, uma pessoa de extremo pragmatismo e lucidez, que é o presidente Lula. Ele não esconde seu desagrado com algumas coisas que o governo Bush tem feito, particularmente no Iraque. Mas Lula sabe que uma relação melhor com os Estados Unidos é de interesse do Brasil.
Quando fui assumir a embaixada, ele me disse: “Roberto, quero deixar como legado para o futuro bases ainda mais sólidas e mais amplas na relação entre os dois países”. Como embaixador, tive algumas dificuldades, mas nada que fosse impeditivo.
Veja – O senhor não deixou o cargo de embaixador espontaneamente, correto?Abdenur –
Há no Brasil setores, embora minoritários, que têm aversão aos Estados Unidos, inclusive dentro do governo e do Itamaraty. Há esse ranço, mas isso não atrapalhou meu trabalho. A relação Brasil-Estados Unidos nunca esteve tão bem. Lula inclusive deve visitar o presidente Bush nos próximos meses.
Veja – Apesar dessa relação forte com os Estados Unidos, a Alca está em compasso de espera. Abdenur – O Brasil está, na melhor das hipóteses, deixando de ganhar dinheiro. O mercado americano está se aproximando dos 2 trilhões de dólares. Seria vital para o Brasil ter vantagens preferenciais, de parceria, com os Estados Unidos. Não estou dizendo que deveríamos ter assinado a Alca de qualquer jeito, mas deveríamos ter seguido com a negociação. Os Estados Unidos têm assinado vários acordos de comércio bilaterais, e nós temos perdido competitividade no mercado americano. Nós estamos estacionados há dez anos em 1,4% do mercado americano. Há vinte anos, nossa participação era de 2,2%. Eu lamento que o único aspecto da relação Brasil-Estados Unidos em que não houve progresso tenha sido o comércio. Foram mínimos os recursos alocados para promoção comercial nos Estados Unidos pelo governo brasileiro.
Veja – Qual é a imagem do presidente Lula nos Estados Unidos? Ele ainda é um político respeitado ou sua imagem foi deteriorada pelos escândalos de corrupção?Abdenur – É uma imagem positiva, os escândalos de corrupção não repercutiram muito por lá. Ele é o líder de uma democracia estável, um governante que tem uma biografia louvável. O governo Lula tem merecido respeito mundo afora por conciliar uma política econômica pragmática com políticas sociais efetivas e uma política externa séria. Isso começou com Fernando Henrique, mas o governo Lula avançou.
A íntegra da entrevista – que desqualifica o título que lhe foi dado, assim como a denúncia de “doutrinação” – pode ser lida, pelos assinantes, no site da revista. Aliás, com o patrocínio do BNDES, do mesmo governo federal que, segundo a revista, persegue os diplomatas com mais violência do que na ditadura.

http://blog.contrapauta.com.br:80/

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