terça-feira, janeiro 19, 2010

reduzir os EUA a ruínas é tarefa que só os próprios norte-americanos poderão levar a cabo com sucesso




666 por 1: Os militares dos EUA, al-Qaeda e Guerra de Futilidades

Em seu livro World War II in the Pacific, War Without Mercy, John Dower narra uma história extraordinária sobre a mudança da imagem que os norte-americanos tinham dos combatentes japoneses. No período anterior ao ataque surpresa contra Pearl Harbor, era opinião geral nos círculos militares e políticos que os japoneses seriam combatentes inferiores em terra, mar e ar – “homúnculos”, como se dizia por toda parte, naquele momento. Era opinião de todos os ‘especialistas’, por exemplo, que os japoneses seriam míopes por defeito congênito, além de portadores de defeitos de audição, que teriam falhas de personalidade, falta de individualismo, sem capacidade para tomar iniciativa. Em batalha, seriam maus pilotos e de aviões fabricados no Japão (e portanto inferiores), que não sabiam pilotar à noite e que seriam incompetentes para ataques em grande escala.
No dia seguinte, depois do ataque preciso contra Pearl Harbor, quando os japoneses destruíram o poder aéreo dos EUA nas Filipinas logo no início da guerra, e depois de uma sucessão de outras vitórias japonesas, os japoneses foram repentinamente convertidos, de “homúnculos” em super-homens, na imaginação dos norte-americanos (sem terem passado por qualquer fase de humanidade, digamos, humana normal). Tornaram-se “invencíveis” – combatentes indestrutíveis, lutadores natos, na selva e na noite, além de “ferozmente cruéis, cruéis, ferozes, cegos para qualquer valor dos quais construímos nossa civilização.”
Soa familiar? Pois deveria. Um dia depois do ataque de 11/9/2001, as manchetes gritavam “Um novo dia de infâmia” e o ataque foi imediatamente rotulado como “o Pearl Harbor do século 21”. Imediatamente, a al-Qaeda, como os japoneses em 1941, foi transformada, de ameaça distante – o governo Bush, ao tomar posse, praticamente não deu qualquer atenção a planos que a al-Qaeda estivesse tramando –, em bando de arquivilões, com superpoderes. Afinal, haviam conseguido por abaixo dois dos mais impressionantes e conhecidos prédios do planeta, dizia-se que estavam construindo armas de destruição em massa e, se nenhuma providência fosse tomada, em pouco tempo a al-Qaeda converteria todo o mundo muçulmano em seu “califado”.
De repente, a Al-Qaeda passou a ser vista como organização contra a qual seria necessário empregar nada menos que todas as forças armadas da “única superpotência” mundial. Por incrível que pareça, essa imagem mantém-se intacta até hoje. Podia ser sentida, por exemplo, no pânico inexplicável que se estabeleceu no país dia 24 a propósito da desastrada cueca-bomba e nas ameaças que, em seguida, desabaram sobre algumas centenas de autoproclamados membros da al-Qaeda no Iêmen. A mesma imagem está viva também na ampliação da guerra do Afeganistão-Paquistão. Aquela imagem transparece no “debate” sobre transferir os membros da al-Qaeda detidos em Guantánamo para prisões de segurança máxima nos EUA. Pelo modo como falam alguns deputados e senadores, aqueles prisioneiros são verdadeiros Lex Luthors e Magnetos, supervilõe s que nenhuma prisão consegue conter, assim como Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri parecem ter-se tornado invisíveis nas montanhas remotas da fronteira entre Afeganistão e Paquistão.
Porque muitos norte-americanos jamais puderam lidar eficazmente, nem puderam construir qualquer imagem mental racional do que seja a al-Qaeda, como grupo de serem humanos reais, nem tampouco aceitam essa evidência, porque a realidade foi mascarada por versões de televisão de todos os feitos da al-Qaeda, os EUA, hoje, são incapazes de entender contra o quê estão em guerra. O atual presidente, exatamente como o anterior, só faz repetir que “estamos em guerra”. Se for verdade, será guerra de um só, porque a al-Qaeda e o exército dos EUA jamais se cruzaram num mesmo universo de combate. Isso, afinal, ajuda a explicar por que repetidos relatos de ações que “destruíram” quantidades significativas de combatentes da al-Qaeda (embora jamais se tenha tido qualquer notícia de bin Laden e Zawahiri) jamais nos fazem nos aproximar do fim da guerra nem reduzem “a ameaça”.
Paremos por aqui, um instante, para tentar imaginar que esses dois lados inimigos se encontrem, algum dia, num mesmo universo de combate. O que se verá, então, caso alguém veja alguma coisa?
Avaliação das “tropas” da al-Qaeda
Segundo estimativas da inteligência dos EUA, há atualmente cerca de 100 (cem) combatentes da al-Qaeda no Afeganistão, além de “várias centenas” no Paquistão e, dizem os mais recentes relatórios oficiais, outras “várias centenas” no Iêmen. Membros da al-Qaeda no Maghreb Islâmico (Argélia, Mali e Mauritania) e os da Somália com certeza incluem-se na categoria das “várias centenas” cada. Segundo autoridades do Grupo de Estudos do Iraque do Departamento de Estado dos EUA, mesmo no ponto mais agudo da guerrilha e da guerra civil no Iraque, a al-Qaeda na Mesopotâmia jamais reuniu mais de 1.300-4.000 combatentes na ativa. Hoje, se crê que lá haja apenas “pequenas células, vicárias, nômades”.
Combinados, esses grupos – pensemos neles como esquadrões de choque da al-Qaeda – não somam mais de 2.100 combatentes, cerca de 1/5 do total de soldados dos EUA que estão hoje alocados na Itália. Como indicam os ataques de 11/9, o que se descobriu sobre armas de destruição em massa que haveria (mas não havia) no Iraque, e o fracasso da CIA que não evitou o complô do homem-cueca-bomba, a inteligência dos EUA anda às cegas, de fato, há muito tempo; mas mesmo que acontecesse de a al-Qaeda ter células em hibernação, cada uma com mais 300 combatentes empenhados, uma em cada nação do planeta, o número de soldados da al-Qaeda, todos somados, superaria apenas em algumas dúzias o número de soldados dos EUA hoje alocados na Alemanha.
Claro que a Al-Qaeda tem alguns “campos de treinamento” em áreas remotas de países como o Iêmen, e tem apoiadores, financiadores e outros aliados dispersos. Ao longo dos anos, e às vezes com boas razões, Washington fez conglomerados de combatentes Talibã e da al-Qaeda no Afeganistão e no Paquistão e contou juntos vários grupos militantes, inclusive os rebeldes somalianos islâmicos al-Shabab, todos, como afiliados da al-Qaeda. Somem-se todos esses militantes e rapidamente chega-se à escala dos milhares.
Além do mais, a al-Qaeda tem arsenais. O grupo tem acesso a foguetes lança-granadas, armamento leve de vários tipos, material para construir bombas mortais para minar estradas, carros-bomba e, também, cuecas-bomba.
Avaliação das tropas dos EUA
Os esforços dos EUA para esmagar a al-Qaeda não tem, isso é certo, padecido de falta de recursos. Os militares norte-americanos já gastaram cerca de 1 trilhão de dólares nas guerras pós-11/9, só até agora. Os EUA tem Exército, Aeronáutica e Marinha, a qual, como a Marinha, tem seu próprio corpo de soldados; e a Marinha também tem seu próprio corpo de Aeronáutica. Possuem trilhões de dólares em armamentos, materiais e outros tipos de patrimônio bélico. Podem mobilizar satélites espiões, aviões superequipados de combate, “drones” teleguiados não tripulados e helicópteros, frotas de caminhões, tanques e outros veículos blindados. Têm mísseis avançadíssimos e bombas ‘inteligentes’, aviões-transporte, submarinos nucleares e barcos de todos os tipos e tamanhos, todos eles moderníssimos, o estado-da-arte sob difer entes formatos.
Os EUA contam também com forças muito bem treinadas para operações especiais – quase 56 mil soldados de elite, dentre os quais os Rangers e as Forças Especiais do Exército, os SEALs da Marinha e as equipes especiais embarcadas [ing. Special Boat Teams], as equipes táticas da Força Aérea e os Batalhões para Operações Especiais da Marinha, os Marine Corps Special Operations Battalions, todos eles armados com armamento que incorpora tecnologia incrivelmente avançada. Os EUA têm academias militares que despejam todos os anos centenas de oficiais altamente bem-formados e treinados, têm campos para treinamento especializado, escolas e universidades. Têm mas de 500 mil prédios e construções em mais de 800 bases construídas sobre milhões de acres de terrenos localizados em áreas nobres em todo o planeta, inclusive em áreas muito próximas de onde operam vários ramos da al-Qaeda.
Além disso, os militares dos EUA têm material humano – quantidades enormes de material humano. Tudo somado, os EUA contam com cerca de 1,4 milhão de homens e mulheres em serviço militar ativo, além de outros 1,3 na reserva. Emprega mais de 700 mil civis em funções de apoio – desde gente que repõe itens em prateleiras e serve comida nas bases, até o pessoal de apoio às análises da inteligência nas zonas de guerra – e utiliza jamais contabilizados dezenas de milhares de agentes privados armados contratados e várias espécies de empreiteiros privados contratados em todo o planeta. Esses números incham ainda mais se se contam os agentes de inteligência que auxiliam nos esforços militares, inclusive os 100 mil membros da comunidade civil de inteligência. E há também os aliados que os EUA podem mobilizar; só no Afeganistão, i ncluem o exército e a polícia afegãos e as dezenas de milhares de soldados da Otan e outros soldados de exércitos aliados provenientes de mais de 40 países.
Comparando-se as coisas: a Marca da Besta ou a Marca da Futilidade?
Ainda que se excluam da comparação todos os reservistas dos EUA, os civis do Departamento de Defesa, os agentes e analistas de inteligência , empresários privados contratados e aliados de vários tipos, se se comparam os inimigos que se defrontam na atual “guerra”, ficamos sempre reduzidos à mesma disjunção: ou a Marca da Besta ou a Marca da Futilidade.
Os militares da ativa dos EUA, só eles, estão ganhando na proporção de 666 por 1, na disputa homem a homem contra os militantes da al-Qaeda no Afeganistão, Paquistão, Iêmen, Iraque, Argélia, Mauritania, Mali e Somália. Se se acrescentam os reservistas, o placar sobe para vergonhosamente altos 1.286 norte-americanos por 1 al-Qaedano. Mesmo que se devessem contar reservistas não existentes do exército da al-Qaeda, 300 em cada um dos 195 países, da Austrália à Cidade do Vaticano, os militares dos EUA, ainda assim, estariam em vantagem de 23 por 1 (ou 45 por 1, se se incluíssem reservistas, que agora estão sendo mandados para zonas de guerra em vários turnos de serviço).
Em resumo, depois de praticamente uma década de conflito, os EUA gastaram trilhões dos dólares dos cidadãos norte-americanos em munição e bombas, em soldados, em lança-míssies teleguiados não-tripulados, os “drones”. Os EUA já fizeram guerras no Iraque e no Afeganistão que ainda estão por acabar; e já começaram a atacar, com “drones”, no Paquistão, no Iêmen e na Somália, já mandaram Tropas Especiais para esses países e para outros – como as Filipinas –, e já construíram ou ampliaram centenas de novas bases militares em todo o mundo. E mesmo assim, Osama bin Laden continua livre, leve e solto, perfeitamente capaz de mirar e matar norte-americanos.
Al-Qaeda “de código aberto” [ing. Open-Source al-Qaeda]
Fundada em 1988, a al-Qaeda de bin Laden lançou “declaração de guerra” formal contra os EUA em 1996, basicamente contra a presença militar dos EUA no Oriente Médio. Embora Washington já estivesse caçando bin Laden e a al-Qaeda desde meados de 1990, uma resolução do Congresso, depois do 11/9, autorizou o presidente a usar de força contra esse grupo e os Talibã. Desde então, o Pentágono comanda uma das mais completamente fracassadas operações de guerra de que se tem notícia nos tempos modernos, para destruí-los.
Ao longo desses anos, o presidente George W. Bush autodeclarou-se “presidente de guerra”, presidindo país “em guerra” e que vivia “tempos de guerra”. Em voz mais suave, o presidente Obama já disse que os EUA estão “em guerra” e – no discurso sobre aprofundar a guerra, em West Point, em Dezembro – disse que, na mesma “guerra”, o principal inimigo é a al-Qaeda. No processo, os militares norte-americanos lançaram quantidades quase inacreditáveis de poder destrutivo contra partes do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Iêmen e Somália, causando a morte de combatentes da al-Qaeda, de não-combatentes da al-Qaeda e de civis inocentes. Milhares de soldados norte-americanos morreram e dezenas de milhares foram feridos no mesmo processo e, isso, sem contabilizar os mortos e feridos dos exércitos aliados dos EUA.
No mesmo período de tempo, novos “afiliados” da al-Qaeda, como a al-Qaeda do Iraque/Mesopotâmia, continuaram regularmente a brotar e, como no Iêmen, foram dados como oficialmente dizimados... antes de renascer das próprias cinzas. São grupos que, simplesmente, preencheram fichas presumíveis para se tornarem membros de alguma “al-Qaeda” e, isso feito, foram cuidar de atacar, cada um, seus inimigos preferidos. Simultaneamente, ‘rebentos’ ou simulacros da al-Qaeda proliferaram e a organização (ou outros simpáticos a ela ou aderentes espirituais) passaram a brotar sem parar; esses planejaram e executaram ataques contra os EUA e estimularam pessoas, de New York à California, da Nigéria à Jordânia, a unir-se ao movimento e por-se a trabalhar, lutar, matar e morrer pela causa, muitas vezes em ataques diretos contra norte-america nos.
A al-Qaeda não tem tanques nem blindados, não tem Humvees, nem submarinos nucleares nem aviões que transportam aviões, nem frotas de helicópteros de combate ou jatos de caça. A al-Qaeda jamais lançou ao espaço um satélite espião e não está desenvolvendo qualquer tecnologia para robôs lança-mísseis não tripulados (embora, talvez, já esteja começando a aprender como se faz, hackeando programas secretos e estudando vídeos dos ataques dos teleguiados norte-americanos). A al-Qaeda é especialista em operações de baixo-orçamento que vão das mais inacreditavelmente mortíferas às mais inacreditavelmente ineficazes – de carros-bombas mortais e aviões de passageiros usados como mísseis, até sapatos e cuecas-bombas que dão chabu.  
Claro, seria absurdo comparar o poderio militar dos EUA e da al-Qaeda que estão “em guerra”, não fosse pela evidência de que os EUA, sim, declararam guerra a esse grupo. Foi decisão tão efetiva quanto seria tentar matar um enxame de pernilongos com rajadas de metralhadoras: alguns sempre morrem, sim, mas o processo é claramente autodevorador.
Na atual "Guerra ao Terror", tenha o nome que tiver (e mesmo que, como atualmente, já nem nome tenha), os dois lados bem poderiam estar em mundos separados, Afinal, a al-Qaeda já não é, hoje, sequer uma “organização” no sentido normal do termo; não é, sequer, uma burocracia armada combatente. A al-Qaeda é, no máximo, um conjunto frouxo de ideias e um grupo não-coeso de indivíduos, lutando uma guerra em mundo de código aberto.
Ninguém precisa alistar-se na al-Qaeda, como as pessoas alistam-se para trabalhar no exército dos EUA. Se você e seu amigo estão sentados sem ter o que fazer, se são alienados, se estão furiosos, se discordam do estado em que está o planeta, basta você declarar que concorda com  o ideário básico de Osama bin Laden. É preencher a ficha. Quem se aliste ao seu grupo, e como você se alista a qualquer grupo, não importa. (...) É possível destruir várias dessas células de ‘aderentes’ e, mesmo assim, nenhum “inimigo” foi localizado ou morto; porque o inimigo não está em lugar algum, porque é um conjunto de ideias que nenhum grupo conhece completamente e que a maioria dos norte-americanos ignoram completamente.
O Pentágono, com sua burocracia gigante e hectares de salas e corredores, é o quartel-general do esforço de guerra dos EUA. A al-Qaeda não tem quartel-general, nem no Afeganistão nem no Paquistão – nem em lugar algum. Provavelmente, já nem existe mais qualquer “al-Qaeda central”. Osama bin Laden desfez-se no ar ou, tanto quanto se sabe, pode estar morto. Pode-se, no máximo, pensar em organização de código aberto, espantosamente capaz de se multiplicar por mecanismo de franquia!
É mais que hora, portanto, de os EUA pararem de pensar na al-Qaeda como complexa organização de terroristas super-homens, capazes de executar tarefas super-super, como organização que guarde qualquer semelhança com qualquer inimigo tradicional de qualquer força militar tradicional. Com a al-Qaeda, o caminho da guerra foi convertido em caminho para a perdição – como hoje os EUA já não podem não ver... um trilhão de dólares mais tarde.
Quando essa “guerra” começou, George W. Bush e seus asseclas – como Osama bin Laden e seus asseclas –, só pensavam no momento em que proclamariam uma “vitória” futura, quando diriam, petulantes, para humilhar o inimigo: “Tragam os prisioneiros! Que todos os vejam!” A palavra “vitória” desapareceu completamente de todos os lábios de Washington. Foi-se. Assim como se foram os brados de que os EUA seriam a nova Roma.
Até agora, não importa quantos combatentes perca, a palavra “vitória” só existe nos lábios dos que se autodesignam como “al-Qaeda-de-seja-onde-for”. Afinal, conseguiram atrair Washington para a guerra deles, em território deles – com resultados desastrosos para os EUA. Os militares dos EUA já mataram muitos combatentes da al-Qaeda, mas simplesmente não podem matar todos, por mais que “aprofundem” a guerra no Afeganistão, porque não podem ganhar guerra alguma que exija matança em grande escala de civis, em terras de muçulmanos.
É tempo de todos aprendermos a ver com olhos realistas a al-Qaeda – de uma perspectiva realista e humana, que permita ver suas espantosas vitórias, seus fracassos, sua loucura e sua glória, seus maiores sonhos. (Não, não, Virginia, jamais haverá um califato da al-Qaeda nem no nem perto do Grande Oriente Médio.) O fato é que a al-Qaeda não representa nenhum tipo de ameaça apocalíptica. Claro que seus militantes podem causar muitos danos, mas reduzir os EUA a ruínas é tarefa que só os próprios norte-americanos poderão levar a cabo com sucesso. 


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