sexta-feira, março 03, 2006
Esquerda, volver
José Dirceu
Ex-chefe da Casa Civil
É sintomático que a mídia, recentemente, tenha levantado o debate sobre a chance de retorno da direita no Brasil. Lógico, uma nova direita, democrática, e, pasmem, defensora não apenas dos direitos humanos e da democracia, mas reformadora - mesmo que seja para efeitos eleitorais -, que quer mudanças na tão sagrada taxa de juros, já que, segundo essa nova direita, não é democrático mantê-la acima dos 10%.
Seria cômico, se não fosse trágico, essa nova pantomima que tentam nos impingir em tempos bicudos, onde eternos corruptos, conhecidos da sociedade e da mídia, são arautos da ética e da moralidade pública.
O discurso é o de sempre. A esquerda não tem compromisso com a democracia, quer o poder para acabar com ela, e, além do mais, agora é corrupta, ou seja, subversão e corrupção - lembrem-se do golpe de 64 - são o DNA da esquerda no Brasil. Ela é intolerante e patrulha toda a manifestação da direita, ou os que a ela se opõem.
Essa esquerda, insistem os arautos da nova direita, é mantida no meio cultural por recursos públicos da Petrobras (esse monopólio que não deixa o Brasil se desenvolver), domina a mídia, a universidade, o cinema e a cultura. E, na verdade, precisa ser eliminada, como afirmou um dos porta-vozes da nova direita. Não se trata de um deslize de linguagem. Quem o conhece sabe que manifestou uma solução de preferência, já que, para este porta-voz, a esquerda propaga uma doutrina totalitária, comunista e fascista.
Ora, ora, senhores e senhoras, a direita domina e governa este país já faz muito tempo; no passado, na base do pau de arara e do garrote e, no presente, da defesa das forças de mercado, do capital financeiro e do escárnio das políticas sociais e distributivistas, empurradas para a vala comum do que chamam de populismo. Pregar o contrário seria subestimar a inteligência nacional. Democracia mesmo, no país - e, mesmo assim, sem direito de greve, sem liberdade para os comunistas e outras ''cositas mas'' -, só entre 46 e 64 e de 85 até hoje. Nas duas ocasiões, uma conquista do povo e da esquerda, e que custou muito sangue, suor e lágrimas. Ao povo, na redemocratização do país, se somaram os arrependidos, os apoiadores do golpe de 64 que tiveram seus interesses contrariados.
Até 1930, vivíamos no império dos coronéis, das eleições no bico de pena e nos eternos estados de sítio, já que nossa juventude militar e civil vivia em armas contra as oligarquias da República Velha. Ou os senhores e senhoras já se esqueceram que seus avôs e avós eram guerrilheiros, revoltosos, como se falava. Hoje, seriam terroristas, na boca desses novos arautos da direita de sempre.
Mas o que esse movimento tenta, na verdade, é levar o macartismo, que domina nossa cena política, para a cultura e a universidade. Na prática, a nova direita está se comportando como sempre acusou a esquerda que ela sataniza de se comportar - quer eliminá-la de toda a sociedade, e não apenas da política; quer silenciá-la, acuá-la ou cooptá-la. Esta é a verdade nua e crua.
E o verdadeiro motivo dessa nova histeria da nossa tão pura e limpa direita democrática é o avanço da esquerda na América Latina, depois de 25 anos de governos conservadores, de ditaduras sangrentas e corruptas, defensoras, por coincidência, do mesmo discurso dessa nossa nova direita. E, também, submetidas aos mesmos senhores: o mercado, o livre comércio (que a direita não pratica) e a democracia liberal (que liquida quando seus interesses não são atendidos). Daí o ódio a Lula, Chávez e Evo Morales; daí as tentativas de caricaturá-los, principalmente a Chávez e, de tempo em tempo, a Kirchner.
No Brasil, a nova (?) direita está aí, ávida pela volta ao governo, porque o poder ela já tem. Para tanto, faz tudo e de tudo, finge que é honesta, democrática e controla-se para não se trair, como na iniciativa, abafada, de tentar derrubar o atual governo. Agora, insistem vozes da nossa tão culta classe média conservadora, a direita precisa ter uma chance de governar o Brasil. Durma-se com um barulho desses, ou das balas perdidas de nossas grandes cidades, retrato da herança que os séculos de domínio da elite e da direita deixaram para que nós jamais nos esqueçamos de que precisamos de esquerda, volver.
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