quarta-feira, março 22, 2006

“Veja” na exaltação do tucanato. Edição desta semana dedica 44% de páginas editoriais ao PSDB


Passando das medidas

A grande mídia está em êxtase com Alckmin e seu rosário de medidas conservadoras. Mas nada supera a revista “Veja” na exaltação do tucanato. Edição desta semana dedica 44% de páginas editoriais ao PSDB.
Gilberto Maringoni


Está aberta a temporada de exaltação do tucanato, por parte de certa imprensa. No fim de semana, os jornalões de São Paulo e as revistas semanais “Veja”, “Época” e “Istoé” derramaram-se em extensas e laudatórias matérias ao candidato do PSDB ao palácio do Planalto, o governador de São Paulo Geraldo Alckmin. De quebra, o ex-presidente FHC recebe extensa massagem no ego.
A definição do candidato tucano é pauta de inegável relevância jornalística. Dono da terceira maior bancada no Congresso e no comando de sete estados da federação – entre eles São Paulo e Minas Gerais -, além de ter governado o Brasil por oito anos, o PSDB é uma considerável força política. Qualquer postulante pelo partido teria relevância no cenário político. Mas o que a mídia faz, a partir daí, ultrapassa qualquer limite razoável.

O ÓRGÃO DOS CIVITA
Comecemos pela “Veja”. A edição desta semana poderia substituir, com larga vantagem, qualquer boletim de propaganda do PSDB.
Vamos conferir. A revista tem 136 páginas, contadas as capas. Dessas, 59 são de publicidade, o que resulta em 77 páginas editoriais. Se forem descontadas as destinadas ao índice, ao expediente e às colunas fixas, sobram 55 páginas do que se classifica como “reportagem”.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é incensado na edição com a capa – “FHC explica FHC e o Brasil” – e mais 15 páginas internas. O pretexto é o lançamento de seu livro “A arte da política, a história que vivi”, cujos trechos são apresentados com ares de furo mundial. A notícia sobre a entronização de Alckmin como candidato ganhou outras 8 páginas.
Na ponta do lápis: de 55 páginas editoriais, o PSDB merece 24, ou 44% do semanário. Não bastasse, o tom geral das matérias é daqueles de fazer corar o personagem Fagundes, do cartunista Laerte, especializado em adular superiores.
O redator-chefe, Mario Sabino, assina a matéria principal sobre Fernando Henrique e bota os adjetivos para trabalhar. Segundo o jornalista, estamos diante do “melhor presidente que o Brasil já teve”, “A arte em política” é “o livro mais esperado do ano” e nele, “o ex-presidente explica o Brasil”. O autor é “um dos protagonistas mais importantes - se não o mais importante - da cena nacional no último quarto de século” e, para o repórter, trata-se de “um sedutor”, cheio de “savoir-faire”, que usa “dessa capacidade (...) para atrair eleitores, correligionários e adversários (nem todos, é verdade) para o caminho da razão”. Sem esmorecer, Sabino vai fundo: “nos anos FHC, o Brasil deixou para trás a improvisação na economia, começou a desvincular o conceito de Estado daquele de nação, integrou-se ao mercado mundial e traçou ao menos um esboço promissor de futuro”. Comentando a obra, o redator pontifica: “Como o ex-presidente em questão é o sociólogo Fernando Henrique, o leitor ganha de brinde reflexões que se alternam com os fatos relatados”. E além de tudo, o livro é “legibilíssimo, graças também ao didatismo e à relativa parcimônia com que são citados filósofos e pensadores políticos”.
Sobre o Plano Real, palavras retumbantes: “salvou a economia brasileira da hiperinflação e propiciou que o país entrasse nos eixos da modernidade”. De quebra, e a essa altura, com a mão já cansada, Sabino sentencia: “Fernando Henrique soube combinar a arte da política com outra arte difícil e até certo ponto inata - a de viver. ‘Joie-de-vivre’, como diria ele”.
Fica-se sabendo também que FHC foi auxiliado, na oceânica tarefa de preencher 699 páginas, pelo “jornalista Ricardo Setti, que foi editor de “Veja”, diretor do “Jornal do Brasil” em São Paulo e de várias publicações da Editora Abril”. Sabino chega lá, com certeza! Até porque Setti mostra o caminho: "Foram cinco meses de um trabalho intenso e prazeroso”.
Subordinados de Sabino, Fabio Portela e Camila Pereira, encarregados de cuidar do governador de São Paulo revelam mais comedimento no trato da língua pátria. Mas se esparramam em oito páginas repletas de boas notícias, quadros, gráficos e números. Para eles, “do ponto de vista das realizações, Alckmin também tem o que mostrar: retomou as obras de expansão do metrô e da contenção das enchentes do Rio Tietê, além de modernizar portos e ampliar a rede hospitalar”. Não há problemas e nem crises.

O SEMANÁRIO DA GLOBO
A revista “Época”, por sua vez, se esqueceu da bela matéria de capa, publicada em 16 de janeiro e assinada pelas repórteres Eliane Brum e Débora Rubin, na qual se desvendam as ligações do governador paulista com a organização da extema-direita católica Opus Dei. Agora, ao tratar de Alckimin, a revista aparenta ter encomendado um manual de redação à sua concorrente.
A capa, uma foto do governador, traz o título “Presidente Alckmin?”, uma expressão onde a afirmação tem mais força do que a interrogação (ao contrário do que seria se fosse “Alckmin presidente?”). A legenda afirma: “le quer ser um novo Juscelino. Promete tirar o país do marasmo econômico. Mas tem um desafio formidável pela frente: destruir o prestígio de Lula”. Em plano fechado, a eterna cara do bom-moço interiorano. Dentro, dez páginas, em ritmo samba-exaltação, não deixam por menos: “Enfim, o anti-Lula”.
Os repórteres David Friedlander, Gulherme Evelin e Leandro Loyola foram às minúcias: “Como médico, Alckmin aplicou mais de 3 mil anestesias”, atributo fundamental para um postulante à presidência. Em seguida, os repórteres ressaltam que “As idéias de Alckmin são simples e diretas” e colocam o ovo em pé ao relatar o programa do candidato: “ajuste das contas públicas, redução de gastos, eficiência na gestão e corte de impostos”. E reproduzem uma pérola do governador, esgrimida por todo o conservadorismo brasileiro, desde o advento da Era Collor: “Não é possível o brasileiro carregar nas costas este Estado ineficiente”.
Além de tudo, o tucano é boa praça - “o governador guarda certo jeitão caipira, meio reservado, mas com gosto pelas piadas” – e limpo: “até agora não foi atingido por denúncias”. Sobre os mais de 50 pedidos de CPI parados na Assembléia Legislativa de São Paulo, graças ao rolo compressor da bancada governista, nenhuma palavra. Para quê? “O eleitorado está cansado de luta política”, garante o ex-prefeito de Pindamonhangaba, que deseja ser a sexta ou sétima pretensa reencarnação do ex-presidente Juscelino Kubitschek a rondar a vida nacional, com sua “fixação pelo crescimento econômico”. As mesmas promessas de FHC na reeleição. E tome números sobre os 12 anos de governo tucano em São Paulo, suas economias e cortes de gastos, onde tudo são rosas. A revista vibra com sua “prioridade à Alca e a acordos de comércio bilateral, como os que o Chile e outros países latino-americanos firmaram recentemente com os Estados Unidos”. Um êxtase.

MAIS SÓBRIAS
“Istoé” apresenta uma matéria de capa mais discreta, de autoria de Marco Damiani, que em cinco páginas, acompanha um vôo do tucano até Brasília.
Já a “CartaCapital” optou por uma cobertura sóbria e equilibrada. O texto não se esquece de relatar o principal: como Alckmin implodiu o processo decisório do PSDB, centrado na alta cúpula. Não faltam ironias do repórter Sergio Lírio ao ícone da revista dos Civita: “Além de apontar o ocaso do poder supremo dos cardeais do PSDB, a escolha de Alckmin parece ter ocorrido na ante-sala do velório político de FHC”. Lírio é agudo: “O ex-presidente costuma se auto-avaliar pelos cumprimentos que recebe em restaurantes caros de São Paulo e nos saguões dos aeroportos internacionais, mas a pesquisa do Ibope, encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e divulgada na quarta-feira, 15, demonstrou outra vez sua irrelevância no processo sucessório”.
A revista faz ainda uma rápida análise do possível programa econômico do PSDB, a ser pilotado pelo ex-ministro de FHC, Luiz Carlos Mendonça de Barros, o mesmo do escândalo das teles. Na pauta, entre outros pontos, a busca por concretizar o ideário mais duro do neoliberalismo, como aumentar a Desvinculação de Recitas da União – dos atuais 20% para 30% - o que permite retirar recursos de áreas como saúde e educação, que têm um patamar mínimo fixado pela Constituição de 1988.
O ESTADÃO PULA O ALAMBRADO
O jornal “O Estado de São Paulo”, por sua vez, parece ecoar os ventos de “Veja”. Pulou o alambrado destinado à torcida e entrou em campo na disputa peessedebista, ao vaticinar em editorial, no dia seguinte – 16 de março - à escolha do candidato: “O PSDB fez a coisa certa”. Vestindo a camisa, o “Estadão” esmera-se por colocar, com destaque, todos os dias, uma ação exemplar do governador em sua primeira página. E tome a conclusão do rodoanel, o perfeito equilíbrio das contas públicas, o rebaixamento da calha do poluído rio Tietê, as vitoriosas PPPs etc. etc.
No domingo, 19, não deu para segurar. O ungido estrelou a segunda manchete na capa – “Alckmin promete reforma fiscal e choque de eficiência” – e duas páginas internas de entrevista. Uma terceira dava conta de quem comandará o programa – se Mendonça de Barros, ou alguém ligado ao ex-ministro Pedro Malan. No rodapé, há uma singela nota de Paulo Moreira Leite (ex-editor de “Veja” e de “Época”) intitulada “Nas raízes do governador, um mundo de classe média”. Ali se revela que a cidade natal do mandatário paulista, Pindamonhangaba, não tem shopping centers e nem “bolsões de violência”, ao mesmo tempo em que “todo mundo parece classe média”. Até as intrincadas relações de poder municipal são tratadas com condescendência.
Pouco importa se irmãos, cunhados e sobrinhos repartem as rédeas da administração. Moreira Leite, em jeito de “Conversa ao pé do fogo” - clássico da literatura caipira do início do século XX, de autoria de Cornélio Pires – entra na campanha: “Nesse universo onde o novo se encontra com o velho, nem os adversários tentam envolver Alckimin em irregularidades. Quando assumiu a prefeitura, há 30 anos, não havia um posto de saúde. Deixou cinco. Criou creche, asfaltou ruas”.
Com esse jeitinho simples e singelo, quase interiorano, a grande mídia está anunciando: o chumbo grosso já começou.


Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Agência Carta Maior, é autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo) e observador, a convite do CNE, no processo do referendo revogatório na Venezuela.