quinta-feira, março 23, 2006

ONDE ESTÁ A DIFERENÇA

Mesmo sem ruptura, política macroeconômica de Lula é diferente de FHC

Na avaliação de Paul Singer e Amir Khair, governo do PT segue a cartilha neoliberal. No entanto, promoveu mudanças em fundamentos da economia antes usados pelos tucanos, abrindo espaço para que outro tipo de política conviva no Planalto, ao lado da perene defesa do grande capital.
Bia Barbosa – Carta Maior

(http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10363)

SÃO PAULO – Em ano de eleições presidenciais, sobram comparações entre o governo Lula e a última administração do PSDB, que briga para voltar ao posto máximo do país apostando no governador Alckmin para a sucessão. E se há um telhado de vidro contra o qual a esquerda do Partido dos Trabalhadores mais atira pedras no governo é em relação à sua política macroeconômica. Para uns, não houve mudança alguma em relação àquela aplicada pelo governo FHC. Para outros, a equipe de Palocci radicalizou ainda mais os métodos neoliberais. Há, no entanto, quem, mesmo criticando os rumos escolhidos por Lula, aponte mudanças claras entre as duas gestões. Entre eles estão os economistas petistas Amir Khair, ex-Secretário de Finanças do governo Luiza Erundina, em São Paulo, e Paul Singer, hoje secretário nacional de Economia Solidária do governo federal, que debateram o tema num ciclo de debates organizado pelo Fórum de Reflexão Política – iniciativa de um grupo de petistas preocupados com as opções do Partido.A primeira das diferenças é a já tão falada política externa, através da qual o Brasil tem, desde 2003, deslocado parte importante de seu cardápio de exportação. Perdem peso países como o Estados Unidos e os da União Européia, em favor de mercados emergentes e menos saturados. Mesmo com a questão externa não se restringindo somente ao governo – incluindo a ação do setor privado – o país vivenciou uma mudança concreta. No governo FHC, a balança comercial era negativa. Para enfrentar parte do problema, o governo teria usado e abusado das privatizações, vendido o patrimônio nacional e aberto o caminho para os investimentos externos diretos. Durante o governo Lula, em conseqüência de um processo mais maduro de modernização das empresas, houve aumento das exportações.“Fechamos o primeiro ano com um saldo positivo de 4 bilhões de dólares; o segundo, com 11,7 bilhões; o terceiro, com 14 bilhões. Agora temos o petróleo a nosso favor na balança também, com a Petrobrás se tornando auto-suficiente, ao sair de 300 milhões negativos no ano passado para 3 bilhões positivos este ano”, disse Khair. “Houve uma mudança no perfil externo, com uma redução expressiva da dívida externa do país, composta pelo setor público e privado. Em 1999, precisávamos de 5 anos de exportações para pagar a dívida. Hoje, precisamos de um ano e meio. Isso faz com que qualquer abalo no exterior nos afete menos agora”, explica.ÁREA FISCALO governo Lula também teria apresentado um desempenho melhor na questão fiscal. No primeiro ano de governo de Fernando Henrique, sequer houve superávit. O déficit era de 0,2% do PIB e os juros, de 7 a 8% do PIB. Isso teria gerado um rombo médio de 7% do Produto Interno Bruto nos quatro anos de FHC. Com as crises, o governo mudou a política e consegui um superávit de 3%, mas os juros cresceram para 11%. Nos 8 anos do PSDB, o déficit foi de 7,1% do PIB. “Nunca houve um período tão prolongado de déficit. Já este governo teve uma média de 3,5% de déficit nominal, e 4,6% de superávit”, afirma Khair.Um dos termômetros para se avaliar a questão fiscal é o cálculo da dívida líquida do governo em relação ao PIB. Quando Fernando Henrique assumiu o país em 1994, a dívida líquida correspondia a 30,4% do Produto Interno Bruto, relação considerada boa e uma das mais baixas dos últimos anos da história do país. Em 2002, quando entregou o poder, o quadro era de 55,5% de endividamento. Com esforço, o governo Lula agora consegue baixar o número para 51,5%.Além disso, mesmo com um crescimento bastante abaixo da média dos países emergentes, a gestão petista já apresenta média de 2,6% contra 2,2% do período FHC. Numa perspectiva otimista, de uma expansão de 5% em 2006, a média do governo Lula subirá para 3,2%. E, se o aumento do emprego de 1992 a 2002 foi de 2,2%, de março de 2003 a dezembro de 2005 ele foi de 15%, com um incremento de 16,1% da massa salarial.No mesmo debate de que participou Khair, Paul Singer lembrou que a PNAD 2004 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) exibiu uma redução na desigualdade e na pobreza, que ele credita em grande parte ao programa Bolsa Família.“Estamos distribuindo mais dinheiro para mais gente. São 6,5 bilhões de reais para 8,7 milhões de famílias. O problema é que, como os dados atestam redução da pobreza, a Fazenda sugere a não extensão do programa para os 11 milhões de famílias previstos para este ano. É complicado. Há um processo de luta de classes dentro deste governo, e nada se faz sem que os dois lados sejam ouvidos. No final, todos os problemas acabam sendo arbitrados pelo Presidente da República”, diz Singer.“A crítica que se faz ao Banco Central e a Palocci é justa e eu também a faço. No entanto, este não é um governo compacto. Há uma outra fonte de poder que antes não podia ser exercida e que agora tem espaço pra fazer política. Nós fazemos política. Por isso é preciso olhar para os dois lados”, avalia o secretário nacional de Economia Solidária. OS ENTRAVESQuais seriam então os problemas da política defendida pelo “outro lado” do governo Lula? Um deles, apontado pelos economistas, é a alta carga tributária. Internacionalmente, a “regra” considerada neste caso é: quanto maior a renda per capita da população, maior a carga tributária. Em países emergentes e com renda per capita próxima à nossa na América Latina, a carga tributária gira em torno de 20% - na Europa, por exemplo, é de 40%. No Brasil, no entanto, de 1970 a 1993, a carga tributária era de 25%. Durante o Plano Real, subiu para 30%. Fechou 2002 a 36% e encerrará 2006 a 38%.“A reforma tributária não sai, pois os governadores não querem perder o ICMS. Então o governo federal tem que dar o exemplo e baixar a carga tributária com a redução das alíquotas, fazendo cair aos poucos um ou dois pontos do PIS, da Cofins e do INSS. Parte da carga tributária hoje está presa ao preço dos produtos. Se o preço sobe, ela sobe. Isso prejudica a parcela da população da classe média para baixo, porque são pessoas que consomem a maior parte do que ganham e poupam pouco”, analista Khair. “Temos que baixar as alíquotas. Isso não diminui a arrecadação. Pelo contrário. Gera mais consumo, diminui a informalidade e a inadimplência e a receita pública cresce mais que a economia. E contribui para queda do preço criando desenvolvimento, pois aumenta o poder aquisitivo da população. E não geraria um problema na demanda, porque a indústria nacional tem capacidade de crescimento”, acredita. Uma espécie de “reforma tributária” que está sendo feita meio na surdina pela “outra parcela” do governo Lula vem através da Lei Geral da Pequena e Média Empresa. Ela permite o pagamento de somente uma fração do imposto de acordo com o rendimento da empresa. A política de apoio ao pequeno empresário é focada exatamente na diminuição da carga tributária.“Assim, milhões de empresas podem se formalizar. Hoje, muitas são informais porque não conseguem arcar com os tributos, e aí vivem num mundo contido, de pobres vendendo para pobres, sem nota fiscal. É uma economia toda informal. Mas o que as empresas mais querem é se formalizar, para aumentar sua possibilidade de venda”, afirma Singer. O projeto ainda está sendo votado no Congresso, mas já sofre também resistências por parte da equipe de Palocci, novamente com medo da diminuição da arrecadação. O que a Fazenda não conta é outras empresas poderão, a partir desse momento, se regularizar e passar a pagar ao menos esta fração do imposto, possibilitando o equilíbrio das contas.JUROSO outro calcanhar de Aquiles do governo é a taxa de juros. Em 2005, o governo pagou 157 bilhões de reais de juros. Historicamente, a taxa Selic – utilizada por um único devedor, o Tesouro Nacional –, sempre foi alta no Brasil. Os juros eram de 16% no governo FHC e, em média, de 10,5% no governo Lula. Em países emergentes como o nosso, no entanto, a média é de 1,3%.“Estamos completamente fora da realidade. Um Banco Central que opera assim deveria ter vergonha. Isso gera uma distribuição de renda às avessas: o dinheiro sai do governo e vai para rentistas. Enquanto o Bolsa Família gasta 5 bilhões, um ponto na Selic mexe com todos os títulos que o governo tem e economiza 10 bilhões”, contabiliza Khair. “Se governo diminuir as despesas com juros, sobra dinheiro para investimento no social e em infraestrutura, e isso baixa o custo de produção das empresas e diminui a inflação. Mas o governo não batalhou na redução dos juros quando tinha que fazer, e agora não sobrou dinheiro para investimento”, critica. Que o crescimento do país em 2005 poderia ter sido duas vezes maior, e não o foi por causa da política financeira e da política de juros, ninguém diverge. O desafio para o Brasil, no entanto, é conseguir crescer com inflação baixa. O crescimento aumenta a demanda pelo consumo e os preços sobem por contaminação. E, eleitoralmente falando, a inflação é um problema mais importante do que o desemprego, porque atinge a todos. Mas na avaliação dos economistas petistas, isso é possível combinando políticas para manter a inflação baixa. “O estímulo à demanda tem de ser usado com cautela. O capitalista só vai aumentar sua capacidade de produção se tiver garantias mínimas de que vai vender. Então tem que haver uma contínua pressão por demanda. E qual seu limite, para que não se gere aumento de preço em vez de aumento de emprego e consumo?”, questiona Singer. “Eu acho que podemos crescer mais. A China se expande 9% ao ano sem inflação, e conseguiu taxas de crescimento por 28 anos. Conseguiu graduar pressão pela demanda com oferta para crescimento. Mas isso só é possível com forte intervenção na economia. A diferença entre a direita e a esquerda é que nós apostamos mais no desenvolvimento do que na inflação baixa. Estaríamos muito melhor com um crescimento de 6% e inflação de 10%”, acredita Paul Singer, para quem a política de Palocci hoje é mais criticada pela grande imprensa do que a de FHC porque a burguesia empresarial agora quer, exatamente, crescer 7%. “Houve, portanto, uma mudança na mentalidade. Não só dentro do governo”, conclui.

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