Em entrevista exclusiva, de amplo alcance, com mais de duas horas de duração, realizada numa sala de prisão em Curitiba no sul do Brasil, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva do Brasil reemergiu depois de mais de 500 dias de cárcere, e enviou mensagem clara ao mundo.
No atual frenesi midiático, 24 horas por dia, sete dias por semana, de mentiras altissonantes e notícias forjadas [ing. fake news], é virtualmente impossível encontrar qualquer chefe de Estado atual ou anterior, em qualquer lugar do mundo, sentado para entrevista com jornalistas e que deseje, do fundo da alma, comentar todos os atuais desenvolvimentos políticos e conte, prazerosamente, histórias dos corredores do poder. Menos ainda, ainda em situação de prisioneiro.
Uma primeira parte dessa minissérie focou a Amazônia. Aqui, focamos as relações do Brasil com o grupo BRICS e Pequim. BRICS é a sigla que designa o grupo das principais economias emergentes – Brasil, Rússia, Índia e China – que se formou em 2006 e a partir de 2010 inclui em suas reuniões anuais também a África do Sul.
Minha primeira pergunta a Lula foi sobre o grupo BRICS e o atual tabuleiro de xadrez geopolítico, com EUA posta diante de uma parceria estratégica Rússia-China. Como presidente, de 2003 a 2010, Lula foi importante para formar os BRICS e expandir a influência do grupo – claro contraste com o que faz o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que parece convencido de que a China seria uma ameaça.
Lula destacou que o Brasil deveria ter-se aproximado da China, num processo especular do que se construiu entre Rússia e China: “Quando houve uma reunião dos BRICS aqui no Brasil, no estado do Ceará, eu disse à companheira Dilma [Rousseff, ex-presidenta do Brasil] que nós devíamos organizar um pacto semelhante ao pacto Rússia-China. Um grande pacto, que desse aos chineses parte do que eles queriam, a saber, a capacidade do Brasil para produzir alimentos e energia, e também a capacidade de acesso ao conhecimento tecnológico. O Brasil precisava de muita infraestrutura. Precisávamos de trens de alta velocidade, muitas coisas. No final, não aconteceu.”
Lula definiu suas top prioridades ao apoiar a criação dos BRICS: autonomia econômica e congregar um grupo de nações capazes de ajudar o que o “Consenso de Washington” descreve como Países menos Desenvolvidos [ing. LDCs, Least Developed Countries].
E enfatizou: “O grupo BRICS não foi criado para ser instrumento de defesa, mas para ser instrumento de ataque. Para que pudéssemos criar nossa própria moeda e sermos independentes do EUA-dólar nas nossas relações comerciais; para criar um banco de desenvolvimento, o que fizemos – mas ainda é tímidos demais; para criar algo forte, capaz de ajudar o desenvolvimento das partes mais pobres do mundo.”
Imagem: Ex-presidente Lula do Brasil fala de uma sala numa prisão, no sul do Brasil. Foto: Editora Brasil 247
Lula fez explícita referências aos medos que uma nova moeda inspiravam aos EUA: “Essa era a lógica por trás dos BRICS, fazer algo diferente, não copiar fosse quem fosse. Os EUA ficaram com muito medo quando eu discuti uma nova moeda, e Obama telefonou para mim, e perguntou ‘Você está tentando criar uma nova moeda, um novo euro?’ Respondi ‘Não. Só estou tentando me livrar do EUA-dólar. Só estou tentando deixar de ser dependente.”
Fácil imaginar como Washington engoliu essa.
Obama talvez estivesse tentando avisar Lula de que o ‘Estado Profundo’ dos EUA jamais permitiria que os BRICS investissem num moeda, ou cesta de moedas para escapar do EUA-dólar. Adiante, Vladimir Putin e Erdogan alertaram a presidenta Dilma – antes de ela sofrer o impeachment – de que o Brasil seria atacado sem piedade. No fim, a liderança do Partido dos Trabalhadores foi apanhada completamente despreparada para uma conjunção de complexas técnicas de guerra híbrida.
Uma das maiores economias do mundo foi ocupada por neoliberais de linha duríssima, praticamente sem luta e sem oferecer qualquer resistência. Na entrevista, Lula confirmou essa visão: “Temos de examinar os pontos em que erramos.”
Lula também manifestou algum desapontamento pessoal. Esperava muito mais dos BRICS. “Imaginei BRICS mais agressivos, mais proativos e mais criativos. ‘O império soviético fracassou; criemos um império democrático.’ Acho que tivemos alguns avanços, mas avançamos lentamente. Hoje, os BRICS deveríamos ser muito mais fortes.”
Lula, Obama e China
É fácil imaginar como o que veio depois foi digerido em Pequim. Explica-se assim em grande parte o imenso respeito que a liderança chinesa dedica a Lula. Também é relevante para o debate global em curso sobre o que está acontecendo na Amazônia. Deixemos que o próprio Lula conte a história, em seu estilo inimitável, com ecos de Garcia Márquez.
“Uma coisa que os chineses devem recordar, é que houve muita gente zangada, quando reconheci a China como economia de mercado. Muitos amigos meus foram contra. Mas eu insisti, ‘Não. Quero os chineses na mesa de negociação, não fora dela. Há discordâncias? Ponham os chineses na OMC, vamos legalizar tudo.’ Sei que Hu Jintao [presidente da China] gostou muito.”
“Outra coisa que fizemos com a China foi a COP-15 [Conferência das Partes*] em Copenhagen, em 2009. Deixe-me contar algo: cheguei à COP-15 e havia uma lista de pedidos de audiência. Todo mundo queria falar comigo – Angela Merkel, Sarkozy, Gordon Brown; Obama já telefonara duas vezes. – E eu não entendia por quê. Não entendia por que eu seria tão importante. O que queria de mim, aquela gente? Queriam que o Brasil concordasse, na COP-15, que a China seria o principal demônio poluidor do planeta. Sarkozy veio falar comigo, com uma linha de montagem cinematográfica, 30 câmeras, um show completo: Lula acusando a China. Tivemos várias reuniões e eu disse a todos ‘Olha, eu sei que a China está poluindo. Mas quem pagará pela poluição histórica, séculos de poluição que vocês poluíram, antes de a China poluir? Onde está a comissão de estudos históricos, para analisar a industrialização da Inglaterra?’’
“Então, aconteceu uma coisa fantástica. Não havia acordo à vista, e eu queria que Sarkozy conversasse com Ahmadinejad – adiante falarei sobre o Irã [falou, adiante, na entrevista]. Ahmadinejad não apareceu no jantar que marcamos, e portanto não houve reunião. Discutimos, discutimos, até que eu disse ao Celso [Amorim, Ministro de Relações Exteriores do Brasil], ‘Celso, olhe aqui, temos um problema. Essa reunião vai acabar sem acordo, e eles vão culpar Brasil, China, Índia, Rússia. Temos de achar uma solução’. Propus então que o Celso telefonasse aos chineses e acertasse uma reunião paralela. Lá estavam Brasil, China, Índia e acho que África do Sul. A Rússia, me parece, não estava.
“Nessa reunião, imagine a nossa surpresa quando Hillary Clinton ‘descobre’ que estávamos lá, e tenta invadir a reunião. Os chineses a impediram de entrar. Todos aqueles chineses nervosos atrás da porta, e eis que aparece Obama. Obama também queria entrar. Os chineses também o impediram de entrar. A China estava representada ali por Jiabao [Wen Jiabao, primeiro-ministro].
Imagem: Lula e o
presidente Barack Obama dos EUA, à esq., em reunião com chineses e outros
líderes em Copenhagen, dezembro de 2009, na COP15, da Conferência da ONU para
mudança climática. AFP / Jewel Samad
“Afinal, permitimos que Obama entrasse. Obama entrou e disse ‘Vou sentar perto do meu amigo Lula, para não ser atacado aqui.’ Sentou ao meu lado e começou a falar sobre o acordo. Dissemos a ele que não havia acordo algum. Um dos negociadores chineses estava tão furioso com a presença de Obama, que nem sentou, falava em pé, em mandarim, ninguém entendia coisa alguma, ele pediu um tradutor, Jiabao não permitiu. A impressão que se tinha, dos gestos que ele fazia, era que ele gritava palavrões contra Obama, falava muito agressivamente, de dedo em riste. Obama comentou ‘Esse está bravo’.” A embaixadora do Brasil disse que falava alguma coisa de mandarim e contou que o homem gritava palavrões pesados.
“O fato é que nessa reunião acumulamos enorme credibilidade, porque nos recusamos a culpar os chineses. Lembro uma sessão plenária, na qual estava previsto que Sarkozy, Obama e eu falássemos. Eu seria o último a falar. Quando cheguei, vi que não havia nada preparado para eu dizer, nem uma linha anotada, nada. Disse a um dos meus assessores, por favor, saia e prepare alguns itens para que eu me oriente. Mal ele saiu, fui chamado para falar: haviam invertido a pauta. Fiquei muito nervoso. Mas fiz um bom discurso. Fui aplaudido de pé. Sei-lá que tipo de coisa eu disse a eles [risos]. Depois foi a vez de Obama, que absolutamente não tinha o que dizer. E o público distraiu-se e começou aquele zum-zum, de gente conversando na plateia: pouca gente deu atenção a Obama. E com Sarkozy, na sequência, a mesma coisa.
“Mas naquele dia falei sobre o papel do Brasil na questão ambiental. Vou pedir que alguém do Partido dos Trabalhadores localize aquele discurso e mande para vocês. Agora, só se ouvem vozes que comparam as políticas do meu governo e de Bolsonaro. Não se pode aceitar essa coisa de que ONGs estariam incendiando a Amazônia. Quem está queimando a Amazônia são eleitores de Bolsonaro, empresários, criminosos locais, gente interessada em matar índios, gente que sempre quer matar os mais pobres.”*******
* Conferência das Partes” é o corpo que toma
decisões, da United Nations Framework Convention on Climate Change, UNFCCC [NTs].