publicado em 18 de junho de 2013 às 10:22
Virada Política
por Lincoln Secco, especial para o Viomundo
O Brasil mudou. Excetuadas as passeatas festivas ou marchas
evangélicas, desde a Campanha pelo impeachment em 1992 não havia manifestações
de rua com tantas pessoas simultaneamente em várias cidades do país. É verdade
que as atuais não se comparam em número, finalidade e abrangência com as
Diretas Já, que ainda continuam sendo o maior movimento de massas da história
do Brasil (embora ainda não saibamos a amplitude que os protestos atuais
poderão tomar). Mas elas são o quarto movimento de politização em massa dos
últimos trinta anos.
No primeiro deles, as greves do ABC em 1978-1980 permitiram
a criação do novo sindicalismo, do MST, do PT e da CUT. O PT questionou a
estrutura tradicional dos partidos comunistas e foi em seus primeiros anos uma
verdadeira federação de núcleos e movimentos com grande autonomia em seu
interior. As greves foram derrotadas, mas o PT sobreviveu e cresceu.
O segundo momento foi uma Revolução Democrática que pôs fim
ao Governo Militar. O processo começou pela campanha das diretas, mas foi
filtrado pela lógica eleitoral que deu ao PMDB um papel proeminente na vida
política. A última tentativa de se opor àquela reação conservadora do PMDB foi
a campanha da Frente Brasil Popular em 1989. O saldo organizativo foi a
constituição do PT como alternativa eleitoral radical de poder.
O terceiro momento (o Impeachment) devolveu à UNE seu papel
de liderança dos movimentos estudantis, mas as lideranças se contentaram com a
simples troca do presidente Collor pelo seu vice Itamar Franco, o que acabaria
permitindo ao seu Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso se tornar
depois presidente.
Vimos que nos três momentos houve saldos de organização, mas
logo encapsulados pelas forças conservadoras. Durante a década neoliberal dos
anos noventa houve um esvaziamento das ruas e o declínio da militância
partidária, como se pode constatar pela História do PT. Ainda assim, aquele
partido manteve o controle das principais organizações sindicais e movimentos
sociais surgidos nos anos 1980.
Quando o PT foi jogado no canto do ringue durante os escândalos
de 2005 a Direita midiática esperava manifestações populares que nunca
aconteceram. Lula governou oito anos sem enfrentar uma situação como a atual.
Mas agora a política mudou. Fatores internacionais (crise de
2008, Primavera Árabe, movimento dos indignados), aliados a transformações
tecnológicas que permitem a ação em rede e a comunicação em tempo real por
telefones móveis também respondem pelas mudanças. Mas nada disso aconteceria se
o PT houvesse mantido sua hegemonia nos protestos de rua como acontecia antes.
Burocratizado, governista, ele não demonstrou capacidade de
se inovar e voltar às ruas. Mantém uma estrutura invejável, um líder
carismático e o sólido controle de sindicatos e movimentos sociais, mas não são
estes que convocam as manifestações. E por mais que tentem, seus concorrentes
de extrema esquerda também não controlam nada.
Na Cidade de São Paulo a tomada espontânea das ruas em
diferentes pontos da cidade não se compara a nada antes ocorrido. As pessoas
simplesmente se apropriaram do que deveria ser delas: o leito carroçável, o
direito de se manifestar e de andar à noite com os amigos em segurança. Afinal,
não há melhor segurança do que multidões nos espaços púbicos. O que elas
fizeram ainda não tem caráter de permanência, mas decerto a tarifa zero
permitiria um pouco de trabalho, diversão e arte todos os dias. A forma fez-me
lembrar a virada cultural paulistana. Só que agora se trata de uma virada
política.
A história nos ensina que cada movimento destes politiza de
uma só vez milhares de pessoas. Elas não aprendem com teorias, mas com ações.
Só que depois as teorizações, o aprendizado em coletivos permanentes é que
consolida o movimento. Daí a pergunta essencial que não se põe agora, mas se
colocará num futuro próximo: qual o saldo organizativo destas manifestações?
Se elas terão influência eleitoral futura é o que menos
importa. A Direita Midiática já começou vasta operação para se apossar do
movimento de massas. Mas ela não terá sucesso porque nada tem a oferecer. As
pessoas sabem que ela não apóia nenhuma das reivindicações do Movimento Passe
Livre. Mas a vigilância do MPL deve ser redobrada e ele não pode permitir que a
massificação dos atos seja submergida na oposição oficial partidária.
O PT também se vê pela primeira vez em sua história
confrontado por um movimento de massas. Por mais que militantes petistas e até
políticos estabelecidos apóiem, ainda que tarde, as manifestações, é inegável
que em São Paulo o aumento de tarifas de transporte determinado por
administração do partido foi o estopim do movimento. O PT não é mais o dono das
ruas, mas ninguém é.
Os partidos de ultra-esquerda cometeram o erro de nascer
cedo demais como rachas internos e sem o batismo que só agora as ruas poderiam
ter-lhe oferecido. O perigo é uma manifestação como a atual ter sua voz (como
já acontece) ser canalizada pela mídia conservadora que rapidamente percebeu
que podia virar o jogo para não perder mercado.
Que os partidos continuam importantes na rotina eleitoral e
que haja diferenças entre PT e PSDB pode não ser a crença de vários partidos de
esquerda, mas é a de milhões de beneficiários das políticas sociais, do aumento
do emprego e do salário mínimo que o PT implantou no Brasil.
O PT é melhor do que o PSDB evidentemente. Só que este
partido não pode contar mais com apoio militante que não seja
profissionalizado. Suas políticas sociais já dormem sob um cobertor curto que
ao se puxar para cobrir a cabeça, os pés ficam de fora. É que quando as pessoas
conquistam direitos, elas querem mais. Se a ousadia (ou mesmo o cálculo
eleitoral que, afinal de contas, tem sido a única coisa de interesse para seus
dirigentes) fizesse o PT defender a tarifa zero, ele criaria o seu segundo
bolsa família no Brasil.
Mas o futuro dessa geração nova que vai às ruas diz respeito
a outra coisa. Se os partidos saberão interpretar o seu desejo é problema
deles. O que o Movimento do Passe Livre apontou é uma questão maior: poderá a
autonomia das ruas se expressar em novas formas de organização ou será
enjaulada no discurso dos donos da Grande Imprensa?
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na
USP