terça-feira, dezembro 07, 2010

As dores do crescimento

Entrevista: José Sérgio Gabrielli presidente da Petrobras
A economia brasileira pode passar por um processo de desindustrialização, caso o governo acelere a licitação das áreas de exploração de petróleo da camada pré-sal. Isso ocorreria porque a cadeia produtiva do setor petrolífero já está funcionando no nível máximo de sua capacidade e, dessa forma, não teria como atender à demanda por equipamentos e serviços.

O alerta é do presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli. Segundo ele, com a aprovação do regime de partilha da produção, surgem duas forças contraditórias quanto à velocidade de licitação dos novos campos do pré-sal. Uma é pela licitação rápida das áreas para que o petróleo se transforme em riqueza e financie o Fundo Social. A outra é o fato de a indústria nacional ainda não estar preparada para atender à demanda.

"Se você acelera muito isso [as licitações], impossibilita que a indústria nacional se habilite para ser fornecedora. Então, aumenta o risco da 'doença holandesa'", diz Gabrielli nesta entrevista ao Valor. As importações aumentariam fortemente e, combinadas com a apreciação da moeda nacional, reduziriam drasticamente a competitividade da indústria nacional.

Apenas a Petrobras e seus fornecedores investirão nos próximos quatro anos algo entre US$ 624 bilhões e US$ 824 bilhões. "De janeiro a setembro, a Petrobras investiu, aproximadamente, R$ 2.370 por segundo", conta Gabrielli, acrescentando que a estatal responde hoje, sozinha, por 10% da Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) do país.

Embora não confirme, Gabrielli continuará presidindo a Petrobras após o fim do governo Lula, em 31 de dezembro. Ele, que está no cargo desde julho de 2005, revelou que, "se isso acontecer", promoverá mudanças na governança da empresa, que passará a contar com mais uma diretoria - a 7ª , batizada de "corporativa". "Se eu fosse despachar com cada uma das pessoas que obrigatoriamente têm que passar por mim, eu precisaria de 60 horas por dia", diz ele.

Valor: O sr. não teme que o forte desenvolvimento do setor petrolífero, a partir da Petrobras, faça o país sofrer a 'doença holandesa'?

Gabrielli: Com a aprovação do novo marco regulatório, o governo vai ter que definir a velocidade de colocação das novas áreas. Hoje, só 42% da camada pré-sal foi concedida. A velocidade de licitação das novas áreas vai ter duas forças contraditórias.

Valor: Quais?

Gabrielli: De um lado, a necessidade de acelerar a produção para monetizar a riqueza, gerando recursos para o Fundo Social. Para esse objetivo, quanto mais rápido, melhor. Por outro lado, isso está sendo feito num momento da economia brasileira em que a indústria do petróleo já está a todo o vapor. Se você acelera muito isso, impossibilita que a indústria nacional se habilite para ser fornecedora. Então, aumenta o risco da 'doença holandesa'. Logo, é preciso modular o crescimento, levando em conta que tem que acelerar mais para gerar recursos para o fundo social, mas ao mesmo tempo não pode ser muito rápido porque, se o for, chegaremos a uma situação em que a indústria nacional não conseguirá atender às necessidades. E, aí, teremos um problema de desindustrialização e de incapacidade para a indústria brasileira competir. Essa vai ser a tensão mais interessante quanto à liberação das novas áreas do pré-sal.

Valor: A capitalização foi suficiente para levantar os recursos necessários aos investimentos da Petrobras nos próximos quatro anos?

Gabrielli: A capitalização foi feita para aumentar a estrutura de capital. Estávamos com uma taxa de alavancagem [razão entre capital de terceiros e capital próprio] de 35%. Depois da capitalização, caiu para 18%.

Valor: Qual a vantagem disso?

Gabrielli: Abriu espaço para aumentarmos a dívida. A nossa meta auto-referenciada, mas que tem uma relação com a avaliação das agências de rating, é manter uma relação entre capital de terceiros e capital próprio em torno de 30%, 35%. Como estamos em 18%, temos espaço para nos endividar. O programa de investimento até 2014 prevê aplicação de US$ 224 bilhões. Além disso, temos dívida vencendo até lá de US$ 38 bilhões. Isso significa que temos que gerar US$ 262 bilhões para pagar a dívida vincenda e os investimentos.

Valor: De onde sairá o dinheiro?

Gabrielli: Se o preço do barril de petróleo ficar mais ou menos em torno de US$ 80, com a nossa atividade operacional geramos US$ 155 bilhões depois dos dividendos, que representam em torno de 29% do lucro anual. Dos US$ 107 bilhões que ficam faltando, levantamos na capitalização US$ 27 bilhões. Tínhamos no início do ano US$ 11 bilhões em caixa, então, a conta cai para US$ 69 bilhões. Desse montante, US$ 38 bilhões é dívida a ser rolada. Então, US$ 31 bilhões é o que precisamos captar em quatro anos. Isso é absolutamente normal para a Petrobras.

Valor: Como esses recursos serão captados?

Gabrielli: Um terço deve ser dívida bancária, outro 1/3 vai vir de agências de promoção de exportação e bancos de desenvolvimento e um 1/3 do mercado de capitais.

Valor: Esse grau de alavancagem é compatível com o dos concorrentes da Petrobras lá fora?

Gabrielli: A indústria de petróleo em geral é pouco alavancada porque tem uma geração de caixa grande. As IOCs (sigla em inglês de companhias internacionais de petróleo) são empresas com poucos projetos, porque não têm muito acesso a reservas. Por causa disso, a alavancagem é baixa, em torno de 10% a 15%.

Valor: O que distingue a Petrobras?

Gabrielli: Primeiro, ela tem o maior programa de investimento do mundo. Ninguém tem neste momento um plano de US$ 224 bilhões para os próximos quatro anos. De janeiro a setembro, a Petrobras investiu, aproximadamente, R$ 2.370 por segundo. Esse volume leva, evidentemente, a uma situação de superalavancagem, quando comparada à de outras empresas de petróleo. Comparando com companhias de outros setores, somos pouco alavancados.

Valor: Em que medida?

Gabrielli: A alavancagem média das empresas está em torno de 40%, 45%.

Valor: A previsão de barril a US$ 80 não é otimista, uma vez que as economias avançadas estão fracas ou em crise, como a Europa?

Gabrielli: O que vai segurar o preço nesse patamar não é a demanda. Suponhamos que a demanda mundial nos próximos anos seja flat, a mesma de hoje - 85 milhões de barris por dia. O mundo vai precisar, daqui até 2020, de algo entre 45 e 65 milhões de barris por dia de produção nova, só para substituir o declínio da produção atual. Portanto, não é para crescer a demanda, mas para substituir o que vai desaparecer. O preço do petróleo não vai ficar fixo em US$ 80, vai ter uma grande volatilidade. Esperamos uma faixa de variação entre US$ 65 e US$ 85.

Valor: O investimento do campo de Tupi se paga com que valor de barril?

Gabrielli: Tupi tem um breakeven, ou seja, um preço que paga todos os custos operacionais, de extração e de capital, abaixo de US$ 45.

Valor: Quais são as possíveis restrições ao sucesso desse plano?

Gabrielli: O que pode vir a existir é uma limitação da capacidade do sistema produtivo de entregar o que precisamos.

Valor: Onde estão os possíveis gargalos?

Gabrielli: Não digo gargalos, mas há áreas críticas, estrangulamentos. Uma delas é a de sondas. Uma sonda leva de três a quatro meses para perfurar poços a mais de 2 mil metros de profundidade da lâmina d'água. Uma FSPCO (sigla em inglês de plataforma de produção de petróleo) usa de 15 a 20 poços. Portanto, com uma sonda você leva quatro anos para montar um sistema de produção. É um elemento crítico e o Brasil não fabrica.

Valor: Há outras carências?

Gabrielli: Sim. Os sistemas submersos, tubulações que ligam o fundo do mar à superfície, por exemplo. Hoje, temos a capacidade mundial praticamente contratada e vamos precisar de mais. Empresas inglesas e francesas estão vindo para o Brasil porque aqui é onde está a demanda. Precisamos avançar na área de grandes turbo-compressores, que são geradores flutuantes de eletricidade. É uma área que precisa crescer para atender à nossa demanda. Estamos falando de uma quantidade gigantesca de equipamentos.

Valor: De quanto aproximadamente?

Gabrielli: Cada sistema de produção produz entre 100 e 180 mil barris por dia. Então, se vamos produzir 4,5 milhões de barris por dia em 2020, precisamos ter 40, 41 sistemas desse. Cada sistema custa algo em torno de US$ 3 bilhões. Para funcionar, cada um precisa, em média, de cinco barcos de apoio. Estamos falando, portanto, de 200 barcos de apoio de todo tipo (rebocadores, chata, 'anchor handling', navio-bombeiro etc.). Para produzir 4 milhões de barris, vamos precisar de muitos petroleiros para transportar tudo isso. Se pensarmos em termos de Suezmax [petroleiro com capacidade de carga de 1,1 milhão de barris], vamos precisar diariamente em torno de 20 a 30 navios.

Valor: Há alguma estimativa sobre o investimento necessário por parte dos fornecedores da Petrobras?

Gabrielli: O BNDES estima que, para cada dólar investido pela Petrobras, será investido algo entre US$ 1,6 e US$ 2. Além dos US$ 224 bilhões da Petrobras, terá que ser investido, portanto, um volume entre US$ 400 bilhões e US$ 600 bilhões.

Valor: Já falta mão de obra especializada em diversos setores da economia. Esse é um problema para a Petrobras?

Gabrielli: É para a cadeia de fornecedores. A Petrobras tem 77 mil empregados; 51% têm menos de nove anos de empresa; 48% têm mais de 20, e 1%, entre nove e 20. Vamos contratar mais 14 mil pessoas. Não acreditamos que tenhamos problema para fazer isso. No último concurso, para a Petrobras Biocombustível, oferecemos 90 vagas e tivemos 36 mil candidatos. O problema existe para nossos fornecedores.

Valor: Por quê?

Gabrielli: Porque as empresas precisam de soldadores, engenheiros mecânicos, eletricistas especializados, operadores de guindaste, operadores de trator de duto, engenheiro detalhista de 3D e CAD [software para desenho de projetos], engenheiro especializado em tubulação e em corrosão, geógrafo etc. Mapeamos 720 ocupações em que há dificuldades.

Valor: Como resolver esse problema?

Gabrielli: Temos, junto com o governo federal, o Programa de Mobilização da Indústria de Petróleo (Prominp), que vai treinar 270 mil pessoas. Já treinamos 70 mil.

Valor: Os estrangulamentos não são preocupantes, à medida que o Brasil tem uma estrutura de capital cara e uma carga tributária que inibem o investimento?

Gabrielli: Temos preocupação, mas estamos atuando em várias áreas. A primeira característica do enfrentamento desses problemas é dar um horizonte de planejamento ao fornecedor.

Valor: Como se faz isso?

Gabrielli: Com transparência. Os nossos projetos de investimento são detalhados. A nossa demanda está identificada em 3.200 componentes, atualizada trimestre a trimestre, até 2014. Quando entra um novo projeto, a demanda é atualizada. Por exemplo: o fornecedor de parafuso sextavado [com seis faces] sabe que vamos precisar de 25 mil unidades para o terceiro trimestre de 2010. Além disso, identificamos e segmentamos o tipo de fornecedor. Temos pelo menos três grandes famílias de fornecedores.

Valor: Quais?

Gabrielli: A primeira é a que já é competitiva por escala, tecnologia, gestão etc. e que, portanto, não precisa de nenhum incentivo. Nesse caso, nosso objetivo é atuar mais nas deficiências sistêmicas. Viabilizar, por exemplo, acesso a capital com taxas de juros menores, ajudar na questão regulatória para minimizar custos, tirar dos projetos alguns riscos desnecessários...

Valor: Por exemplo?

Gabrielli: Risco ambiental. Só fazemos contrato depois de obtida a licença ambiental. A segunda família de fornecedores é aquela que dificilmente vai ter escala e condições competitivas no horizonte de que estamos falando. Não há o que fazer. A terceira, talvez a maior, é aquela que, com alguma ajuda, aumenta a competitividade. Esta é a que teremos que dar maior atenção.

Valor: De que indústria o sr. está falando?

Gabrielli: Da indústria naval, por exemplo. A gente sabe que a indústria brasileira não tem condições de começar ofertando ao mesmo preço dos competidores internacionais, mas ela tem que convergir ao longo do tempo.

Valor: O que a Petrobras está fazendo para ajudar essa indústria?

Gabrielli: Primeiro, oferecemos pacotes grandes, com sete sondas, dez navios, 3 mil alternadores etc. Com isso, aumentamos a escala e dizemos o seguinte ao fabricante: "O primeiro equipamento vai custar mais, tudo bem, mas o décimo tem que custar o mesmo preço do internacional." Em segundo lugar, estamos padronizando e simplificando os projetos. À medida que fazemos isso, ajudamos o fornecedor, porque ele não tem que fazer nada especial. Além disso, temos hoje 670 termos de cooperação assinados para identificar qual é o estrangulamento daquele fornecedor específico. Uma vez identificado o problema, adotamos um programa para remediar a deficiência. Por fim, estamos investindo no aumento da capacidade da comunidade científica e tecnológica brasileira. Montamos 50 redes temáticas no país, envolvendo 70 universidades e centros de pesquisa e estamos construindo capacidade de infraestrutura nessas áreas para pesquisa empírica - laboratórios, bibliotecas, redes de comunicação etc.

Valor: Há alguma iniciativa na área financeira?

Gabrielli: Sim. Trabalhamos na montagem de FIDC [fundos de investimento de direito creditório] para viabilizar a utilização de recebíveis dos fornecedores e de fundos de participação que entram no equity dos fornecedores. Estamos lançando também o programa Progredir, com cinco bancos brasileiros, em que o fornecedor do primeiro elo de relação com a Petrobras pode repassar para os seus fornecedores parte do contrato. Com isso, amplia-se para os fornecedores dos fornecedores, e assim por diante, a garantia de Petrobras.

Valor: Investidores se queixam que a Petrobras é uma empresa muito grande para ter apenas seis diretorias.

Gabrielli: Já fizemos mudanças estruturais. A primeira não foi muito percebida, mas foi a transformação das unidades de negócios em unidades operacionais. A mudança não foi semântica, mas de concepção. Além disso, criamos os gerentes executivos de empreendimentos para cuidar dos projetos.

Valor: As mudanças param aí?

Gabrielli: Não. Uma outra mudança é no nível da presidência. Se eu fosse despachar com cada uma das pessoas que obrigatoriamente têm que passar por mim, eu precisaria de 60 horas por dia. Tenho sete gerentes executivos e seis diretores ligados a mim, fora as subsidiárias da Petrobras e os assessores diretos. Para mudar isso, vamos montar uma diretoria administrativa e corporativa, que vai cuidar essencialmente do que se chama, numa empresa normal, de área administrativa, ou seja, de serviços gerais, jurídico, recursos humanos. A presidência vai se voltar mais para novos negócios, a estratégia, o desempenho.
Valor Online