domingo, maio 04, 2008

Emir Sader: Os nossos espelhos de Eduardo Galeano




Alguma vez me perguntaram que livro eu recomendaria a alguém que fosse ler um único livro e eu respondi: ''O mundo de cabeça para baixo''. Agora tenho que acrescentar: no século passado. Neste recém nascido, eu diria: ''Espelhos – Uma história quase universal''.


Por Emir Sader, na Agênia Carta Maior*

Uma vez ao mês, mais ou menos, ele – o nosso melhor escritor – nos brinda com uma crônica que fala de tudo e de todos, em poucas palavras e linhas. Diz tudo, com a contundência, a erudição e o fervor moral de quem desvenda as leis ocultas do nosso tempo e as torna legíveis aos olhos de todos. Como se estivesse atendendo ao pedido desesperado de Brecht, quando falava da maior das dificuldades para dizer a verdade: não era a de descobri-la, a de separar as essenciais das inócuas, mas a de fazê-la chegar a quem mais precisa delas, as maiores vitimas das mentiras do nosso tempo.


Para isso, escolher uma linguagem compreensível, buscar exemplos do cotidiano, falar do que importa para uma vida melhor, denunciar o inaceitável e levantar esperanças donde só se pode ver miséria, desencanto e morte. Para que a verdade seja reconhecível para quem vive embrulhado por inverdades, principalmente pelas mentiras do silêncio sobre o que é fundamental, invisível aos olhos e corações, como tarefa cotidiana da imprensa mercantil.


Cada tanto tempo ele nos regala com livros. Alguma vez me perguntaram que livro eu recomendaria a alguém que fosse ler um único livro e eu respondi: O mundo de cabeça para baixo. Agora tenho que acrescentar: no século passado. Neste recém nascido, eu diria: Espelhos – Uma história quase universal.


Ele se chama Eduardo Galeano, vive em Montevidéu, mas habita o mundo e os nossos corações. É o mais subversivo dos seres humanos, por isso o Brasil é o único pais dos que eu conheço, que não publica suas crônicas regularmente na chamada grande imprensa. Não querem dar tiro nos seus próprios pés – ou no próprio bolso, permitir comparações com os ventríloquos dos poderosos que eles publicam diariamente. Fazem bem. Censuram por razões compreensíveis, tornam mais saborosos ainda os textos do Galeano.


Espelhos:


Os espelhos estão cheios de gente.

Os invisíveis nos vêem.

Os esquecidos nos recordam.

Quando nos vemos, nós os vemos.

Quando nos vamos, eles se vão?


Essa a abertura. Na última capa:


Este livro foi escrito para que não se vão.

Nestas páginas se unem o passado e o presente.

Renascem os mortos, os anônimos têm nome:

os homens que levantaram os palácios e os templos de seus senhores;

as mulheres, ignoradas pelos que ignoram o que temem;

o sul e o oriente do mundo, desprezados pelos que desprezam o que ignoram;

os muitos mundos que contêm e esconde;

os pensadores e os sentidores;

os curiosos, condenados por perguntar,

e os rebeldes e os perdedores e os loucos lindos que foram e são o sal da terra.


Não digo mais nada, não cito mais nada, me entristeci quando terminei a leitura dos quase 600 relatos, aí me alegrei quando recomecei. Só lhes digo: leiam, leiam todos os seus relatos. Mas sobretudo leiam a história de Rosa María, a primeira negra alfabetizada no Brasil, como nasceu, como viveu e como desapareceu. Nos enfeitiçamos com ela e com os espelhos em que reconhecemos o mundo que criamos e recriamos todas as horas, mas em que fingimos não nos reconhecermos.


Espelhos de nós mesmos. Obrigado, Galeano.




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