15/7/2014, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/World/WOR-01-150714.html
A notícia do dia é que a partir de hoje, 3ª-feira, em Fortaleza, nordeste do Brasil, o grupo dos BRICS, das potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) começa a combater a (Des)Ordem (neoliberal) Mundial, com um novo banco de desenvolvimento e um fundo de reserva criado para contrabalançar crises financeiras.
O diabo, claro, reside nos detalhes de como farão tudo isso.
Foi estrada longa e sinuosa desde Yekaterinburg em 2009, na primeira reunião de cúpula do mesmo grupo, até o contragolpe longamente aguardado, dos BRICS contra o Consenso de Bretton Woods – do FMI e do Banco Mundial – e do Banco Asiático de Desenvolvimento [orig. Asian Development Bank (ADB)] dominado pelo Japão, mas sempre respondendo às prioridades dos EUA.
O Banco de Desenvolvimento dos BRICS – com capital inicial de US$50 bilhões – não visará só a projetos dos BRICS, mas também investirá em projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em escala global. O modelo é o BNDES brasileiro, que apoia empresas brasileiras que investem em toda a América Latina. Em poucos anos, alcançará capacidade para financiamento de mais de $350 bilhões. Com fundos extras vindos de Pequim e Moscou, a nova instituição pode fazer o Banco Mundial comer poeira. Comparem (i) acesso a capital realmente existente gerado por poupança, e (ii) acesso a papel pintado de verde que o governo dos EUA imprime sem lastro.
E há também o acordo que estabelece um pool de $100 bilhões de moedas de reserva – o CRA [orig. Contingent Reserve Arrangement, Acordo de Reserva de Emergência], que o ministro de Finanças da Rússia Anton Siluanov descreveu como “uma espécie de mini-FMI”. É um mecanismo de não-Consenso-de-Washington, contragolpe para neutralizar a fuga de capitais. Para esse pool, a China contribuirá com $41 bilhões; Brasil, Índia e Rússia, com $18 bilhões cada; e África do Sul com $5 bilhões.
O banco de desenvolvimento deverá ter sede em Xangai – embora Mumbai muito se tenha empenhado em causa própria.[1]
Muito mais que de economia e finança, aqui se trata de geopolítica: potências que estão emergindo oferecem uma alternativa ao fracassado Consenso de Washington. Ora, afinal, como dizem os apologistas do Consenso, os BRICS podem bem conseguir “aliviar os desafios” que lhes são impostos pelo “sistema financeiro internacional”. A estratégia é também é um dos elos-chaves da aliança progressivamente mais firme entre China e Rússia, que já se viu firmemente amarrada no “negócio do século”, de gás, e no Fórum Econômico de São Petersburgo.
Vamos ao jogo de bola geopolítica
Assim como o Brasil conseguiu, contra muitas expectativas, construir e oferecer uma Copa do Mundo inesquecível – apesar de a seleção nacional do Brasil ter-se liquefeito –, Vladimir Putin e Xi Xinping chegam agora à mesma grande área para uma exibição de geopolítica categoria top.
O Kremlin considera altamente estratégica a relação bilateral com Brasília. Putin não se limitou a assistir ao jogo final da Copa do Mundo no Rio de Janeiro; além do encontro com a presidenta Dilma Rousseff do Brasil, também se reuniu com a chanceler alemã Angela Merkel (discutiram detalhadamente a Ucrânia). Um dos membros mais importantes da comitiva do presidente Putin é Elvira Nabiulin, presidenta do Banco Central da Rússia; ela tem divulgado em toda a América Latina o conceito de que as negociações com os BRICS devem deixar de lado o dólar norte-americano.
O encontro extremamente potente, emocionante, simbólico, entre Putin e Fidel Castro em Havana, além do cancelamento de $36 bilhões da dívida cubana, não poderiam ter impacto mais significativo em toda a América Latina. Comparem a visita e o perdão da dívida, ao embargo perene e doentiamente vingancista que o Império do Caos impõe a Cuba.
Na América do Sul, Putin reúne-se não só com o presidente Pepe Mujica do Uruguai – com quem discutirá, dentre outros itens, a construção de um porto de águas profundas –, mas também com Nicolás Maduro da Venezuela e com Evo Morales da Bolívia.
Xi Jinping também está em Fortaleza, Brasil. Visitará, além do Brasil, Argentina, Cuba e Venezuela. O que Pequim anda dizendo (e fazendo) complementa Moscou: a América Latina também é vista pela China como altamente estratégica. É ideia que se pode traduzir em mais investimentos chineses e maior integração Sul-Sul.
Essa ofensiva comercial/diplomática russo-chinesa integra-se ao movimento dessas potências na direção de um mundo multipolar –, lado a lado com líderes sul-americanos. Exemplo claríssimo disso é a Argentina. Enquanto Buenos Aires, já mergulhada em recessão, ainda combate contra os fundos-carniceiros norte-americanos – o ápice da especulação financeira –, Putin e Xi chegam a New York oferecendo investimento para tudo, de estradas de ferro à indústria da energia.
Claro que a indústria russa de energia precisa de investimentos e de tecnologia das multinacionais ocidentais privadas. E é verdade que a “Made in China” que se conhece desenvolveu-se sem investimento ocidental, mas explorando mão de obra barata. Agora, os BRICS tentam apresentar ao Sul Global uma escolha.
De um lado, a especulação financeira, os fundos-carniceiros e a hegemonia dos EUA, Patrões do Universo. Do outro lado, um capitalismo produtivo – uma estratégia alternativa para o desenvolvimento capitalista, se comparada ao que sempre fez e faz o ‘Trio’ (EUA, UE e Japão).
Seja como for, ainda falta muito para que os países BRICS projetem um modelo produtivo independente do ‘modelo’ de especulação & jogatina do capitalismo de cassino, o qual, por falar dele, ainda mal se recupera da crise massiva de 2007/2008 (a bolha financeira não rebentou ‘bem’...).
Há quem talvez veja a estratégia dos BRICS como parte de uma crítica construtiva, em andamento, em processo, em que o criticado é o próprio capitalismo: como livrar o sistema de ter perenemente de financiar o déficit fiscal dos EUA e sua síndrome da militarização planetária – relacionada ao complexo militar orwelliano/Panopticon – subordinado a Washington.
Como diz o economista argentino Julio Gambina, o importante não é ser “emergente”; o importante é ser “independente”.
Em coluna publicada essa semana em RT,[2] Claudio Gallo, jornalista de La Stampa, introduz a questão que talvez seja a questão definitiva de nossos tempos: o fato de que o neoliberalismo – regendo quase todo o mundo, diretamente ou indiretamente – parece estar produzindo uma desastrosa mutação antropológica que nos está jogando, todos nós, num totalitarismo global (por mais que tantos falem tanto, praticamente sem parar, das “liberdades” das quais goza(ria)m no ‘ocidente’).
É sempre instrutivo voltar ao caso da Argentina. A Argentina está presa a uma crise de dívida externa gerada, há mais de 40 anos, pelo FMI – e atualmente ‘assumida’ e perpetuada pelos fundos-carniceiros. O banco dos BRICS e o fundo de reserva, como alternativa ao FMI e ao Banco Mundial oferece a possibilidade de que dezenas de outros países escapem ao suplício argentino. Para nem falar da possibilidade de que outras nações emergentes, como Indonésia, Malásia, Irã e Turquia também passem a contribuir para as novas instituições.
Não surpreende que a gangue de Patrões do Universo ainda hegemônica esteja agitada, nas suas poltronas estofadas. O Financial Times resume o pensamento da City de Londres, notório paraíso do capitalismo de cassino.[3]
Vivem-se dias entusiasmantes na América do Sul, em mais de um sentido. A hegemonia atlanticista ainda permanecerá por aí, como parte do quadro, é claro. Mas é a estratégia dos BRICS que indica o rumo a tomar, na marcha para futuro mais adiantado. E é a roda multipolar que continua a rodar. *****
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[1] Para conhecer mais da posição da Índia sobre os BRICS, vide India Tribune, 14/7/2014, “Construindo sobre tijolos [ing. bricks] de solidariedade” (ing.) em http://epaper.tribuneindia.com/c/3147122?fb_action_ids=635204433254025&fb_action_types=og.comments&fb_source=aggregation&fb_aggregation_id=288381481237582.
[2] “Totalitarismo Global. Não é proibido mudar: é impossível”, 8/7/2014, Claudio Gallo,* RT, Moscou, em http://rt.com/op-edge/171240-global-totalitarismo-change-neoliberalism/ [em tradução] (NTs).
[3] http://blogs.ft.com/beyond-brics/2014/07/10/opinion-a-summit-of-brics-without-straw/?Authorised=false
http://www.atimes.com/atimes/World/WOR-01-150714.html
A notícia do dia é que a partir de hoje, 3ª-feira, em Fortaleza, nordeste do Brasil, o grupo dos BRICS, das potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) começa a combater a (Des)Ordem (neoliberal) Mundial, com um novo banco de desenvolvimento e um fundo de reserva criado para contrabalançar crises financeiras.
O diabo, claro, reside nos detalhes de como farão tudo isso.
Foi estrada longa e sinuosa desde Yekaterinburg em 2009, na primeira reunião de cúpula do mesmo grupo, até o contragolpe longamente aguardado, dos BRICS contra o Consenso de Bretton Woods – do FMI e do Banco Mundial – e do Banco Asiático de Desenvolvimento [orig. Asian Development Bank (ADB)] dominado pelo Japão, mas sempre respondendo às prioridades dos EUA.
O Banco de Desenvolvimento dos BRICS – com capital inicial de US$50 bilhões – não visará só a projetos dos BRICS, mas também investirá em projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em escala global. O modelo é o BNDES brasileiro, que apoia empresas brasileiras que investem em toda a América Latina. Em poucos anos, alcançará capacidade para financiamento de mais de $350 bilhões. Com fundos extras vindos de Pequim e Moscou, a nova instituição pode fazer o Banco Mundial comer poeira. Comparem (i) acesso a capital realmente existente gerado por poupança, e (ii) acesso a papel pintado de verde que o governo dos EUA imprime sem lastro.
E há também o acordo que estabelece um pool de $100 bilhões de moedas de reserva – o CRA [orig. Contingent Reserve Arrangement, Acordo de Reserva de Emergência], que o ministro de Finanças da Rússia Anton Siluanov descreveu como “uma espécie de mini-FMI”. É um mecanismo de não-Consenso-de-Washington, contragolpe para neutralizar a fuga de capitais. Para esse pool, a China contribuirá com $41 bilhões; Brasil, Índia e Rússia, com $18 bilhões cada; e África do Sul com $5 bilhões.
O banco de desenvolvimento deverá ter sede em Xangai – embora Mumbai muito se tenha empenhado em causa própria.[1]
Muito mais que de economia e finança, aqui se trata de geopolítica: potências que estão emergindo oferecem uma alternativa ao fracassado Consenso de Washington. Ora, afinal, como dizem os apologistas do Consenso, os BRICS podem bem conseguir “aliviar os desafios” que lhes são impostos pelo “sistema financeiro internacional”. A estratégia é também é um dos elos-chaves da aliança progressivamente mais firme entre China e Rússia, que já se viu firmemente amarrada no “negócio do século”, de gás, e no Fórum Econômico de São Petersburgo.
Vamos ao jogo de bola geopolítica
Assim como o Brasil conseguiu, contra muitas expectativas, construir e oferecer uma Copa do Mundo inesquecível – apesar de a seleção nacional do Brasil ter-se liquefeito –, Vladimir Putin e Xi Xinping chegam agora à mesma grande área para uma exibição de geopolítica categoria top.
O Kremlin considera altamente estratégica a relação bilateral com Brasília. Putin não se limitou a assistir ao jogo final da Copa do Mundo no Rio de Janeiro; além do encontro com a presidenta Dilma Rousseff do Brasil, também se reuniu com a chanceler alemã Angela Merkel (discutiram detalhadamente a Ucrânia). Um dos membros mais importantes da comitiva do presidente Putin é Elvira Nabiulin, presidenta do Banco Central da Rússia; ela tem divulgado em toda a América Latina o conceito de que as negociações com os BRICS devem deixar de lado o dólar norte-americano.
O encontro extremamente potente, emocionante, simbólico, entre Putin e Fidel Castro em Havana, além do cancelamento de $36 bilhões da dívida cubana, não poderiam ter impacto mais significativo em toda a América Latina. Comparem a visita e o perdão da dívida, ao embargo perene e doentiamente vingancista que o Império do Caos impõe a Cuba.
Na América do Sul, Putin reúne-se não só com o presidente Pepe Mujica do Uruguai – com quem discutirá, dentre outros itens, a construção de um porto de águas profundas –, mas também com Nicolás Maduro da Venezuela e com Evo Morales da Bolívia.
Xi Jinping também está em Fortaleza, Brasil. Visitará, além do Brasil, Argentina, Cuba e Venezuela. O que Pequim anda dizendo (e fazendo) complementa Moscou: a América Latina também é vista pela China como altamente estratégica. É ideia que se pode traduzir em mais investimentos chineses e maior integração Sul-Sul.
Essa ofensiva comercial/diplomática russo-chinesa integra-se ao movimento dessas potências na direção de um mundo multipolar –, lado a lado com líderes sul-americanos. Exemplo claríssimo disso é a Argentina. Enquanto Buenos Aires, já mergulhada em recessão, ainda combate contra os fundos-carniceiros norte-americanos – o ápice da especulação financeira –, Putin e Xi chegam a New York oferecendo investimento para tudo, de estradas de ferro à indústria da energia.
Claro que a indústria russa de energia precisa de investimentos e de tecnologia das multinacionais ocidentais privadas. E é verdade que a “Made in China” que se conhece desenvolveu-se sem investimento ocidental, mas explorando mão de obra barata. Agora, os BRICS tentam apresentar ao Sul Global uma escolha.
De um lado, a especulação financeira, os fundos-carniceiros e a hegemonia dos EUA, Patrões do Universo. Do outro lado, um capitalismo produtivo – uma estratégia alternativa para o desenvolvimento capitalista, se comparada ao que sempre fez e faz o ‘Trio’ (EUA, UE e Japão).
Seja como for, ainda falta muito para que os países BRICS projetem um modelo produtivo independente do ‘modelo’ de especulação & jogatina do capitalismo de cassino, o qual, por falar dele, ainda mal se recupera da crise massiva de 2007/2008 (a bolha financeira não rebentou ‘bem’...).
Há quem talvez veja a estratégia dos BRICS como parte de uma crítica construtiva, em andamento, em processo, em que o criticado é o próprio capitalismo: como livrar o sistema de ter perenemente de financiar o déficit fiscal dos EUA e sua síndrome da militarização planetária – relacionada ao complexo militar orwelliano/Panopticon – subordinado a Washington.
Como diz o economista argentino Julio Gambina, o importante não é ser “emergente”; o importante é ser “independente”.
Em coluna publicada essa semana em RT,[2] Claudio Gallo, jornalista de La Stampa, introduz a questão que talvez seja a questão definitiva de nossos tempos: o fato de que o neoliberalismo – regendo quase todo o mundo, diretamente ou indiretamente – parece estar produzindo uma desastrosa mutação antropológica que nos está jogando, todos nós, num totalitarismo global (por mais que tantos falem tanto, praticamente sem parar, das “liberdades” das quais goza(ria)m no ‘ocidente’).
É sempre instrutivo voltar ao caso da Argentina. A Argentina está presa a uma crise de dívida externa gerada, há mais de 40 anos, pelo FMI – e atualmente ‘assumida’ e perpetuada pelos fundos-carniceiros. O banco dos BRICS e o fundo de reserva, como alternativa ao FMI e ao Banco Mundial oferece a possibilidade de que dezenas de outros países escapem ao suplício argentino. Para nem falar da possibilidade de que outras nações emergentes, como Indonésia, Malásia, Irã e Turquia também passem a contribuir para as novas instituições.
Não surpreende que a gangue de Patrões do Universo ainda hegemônica esteja agitada, nas suas poltronas estofadas. O Financial Times resume o pensamento da City de Londres, notório paraíso do capitalismo de cassino.[3]
Vivem-se dias entusiasmantes na América do Sul, em mais de um sentido. A hegemonia atlanticista ainda permanecerá por aí, como parte do quadro, é claro. Mas é a estratégia dos BRICS que indica o rumo a tomar, na marcha para futuro mais adiantado. E é a roda multipolar que continua a rodar. *****
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[1] Para conhecer mais da posição da Índia sobre os BRICS, vide India Tribune, 14/7/2014, “Construindo sobre tijolos [ing. bricks] de solidariedade” (ing.) em http://epaper.tribuneindia.com/c/3147122?fb_action_ids=635204433254025&fb_action_types=og.comments&fb_source=aggregation&fb_aggregation_id=288381481237582.
[2] “Totalitarismo Global. Não é proibido mudar: é impossível”, 8/7/2014, Claudio Gallo,* RT, Moscou, em http://rt.com/op-edge/171240-global-totalitarismo-change-neoliberalism/ [em tradução] (NTs).
[3] http://blogs.ft.com/beyond-brics/2014/07/10/opinion-a-summit-of-brics-without-straw/?Authorised=false