Mais que uma empresa de petróleo, a Petrobrás é um marcador
incômodo do desenvolvimento brasileiro.
Seus sessenta anos comemorados nesta 5ª feira, 3 de outubro, arguem o país do século 21 com um exemplo de audácia bem sucedida trazida do ciclo anterior.
A implícita capacidade de cobrar o presente com o desassombro de um passado que o pré-sal atualiza e magnifica, talvez seja a principal explicação para a profunda antipatia que a simples menção do seu nome inspira no sistema auditivo conservador.
Mais que antipatia, há um esforço para tornar inaudíveis as perguntas que a sua trajetória enseja.
Por exemplo: como é que uma Nação que teve audácia de se credenciar na corrida do petróleo, num tempo em que isso equivalia a uma maratona de ricos, sofre hoje a duras penas para fazer rodovias?
Ou ampliar portos? Ou ainda, estender dormentes de trens? Rasgar e concretar um simples canal para levar um pouco do São Francisco ao sertão nordestino, que concentra a maior demografia mundial em um regime semi-árido?
Como é que o país que fez a 8ª maior petroleira do planeta, detentora de conhecimento de ponta na exploração em águas profundas, não consegue mais prover a infraestrutura básica?
O PAC e os planos de investimento em logística estão aí a atestar o empenho do governo em fazê-lo.
Mas por que a coisa então se arrasta em ritmo enervante, sem avançar no volume e prazo requeridos pela economia e a sociedade?
A Petrobrás é a dissonância à resposta do cuco conservador
Aquele que troca de plumagem, mas não troca o canto fúnebre de seu veredito sobre o Brasil.
‘O país não faz e não tem condições de fazer e o Estado está fadado a fracassar se o fizer’.
Dito assim, de hora em hora, e reafirmado nos intervalos pela emissão conservadora, acaba inoculando uma prostração que subtrai ao país o direito de dizer: ‘eppur si muove’.
O que havia de tão vantajoso assim no Brasil de 1953, em relação à esférica impossibilidade dos dias que correm?
A Petrobras nasceu da rua.
Começa por aí.
Nasceu de um amplo debate que politizava as escolhas do desenvolvimento.
Fez delas uma causa pública.
Tornou-se o ponto de convergência dos anseios de prosperidade com a consciência do seu requisito, a soberania.
Era um sonho.
Mas um sonho politizado.
Que deixa de ser um devaneio, porque submete seus flancos às mediações das circunstancias e ao escrutínio dos projetos.
Há 60 anos, uma geração de homens e mulheres apostou que o petróleo era necessário ao país.
Porque sem ele o Brasil ficaria mais distante dos anseios de dignidade, justiça, independência .
A luta do ‘Petróleo é Nosso’ foi isso.
Como hoje, havia derrisão na mídia conservadora diante do projeto que associava o petróleo a uma industrialização ainda frágil e difusa.
Um especialista, Walter Link, geólogo norte-americano, contratado pelo Conselho Nacional do Petróleo, emitiria, ademais, um veredito fatal.
O famoso Relatório Link descartava (com alguma razão, vê-se hoje) a ocorrência de reservas de alta acumulação em quase todo o território brasileiro.
Exceção feita a uma hipótese intangível.
As reservas mais promissoras concentravam-se na plataforma marítima.
Em profundezas tecnologicamente inacessíveis, a custos economicamente inviáveis, ao abrigo de desafios logísticos inalcançáveis até pelas economias mais ricas.
Era desse calibre a pá de cal do famoso relatório, que as oligarquias estendiam à emergente industrialização.
Se dependesse das restrições da época e do imediatismo das elites saqueadoras, Getúlio Vargas não teria criado a Petrobrás, naquele 3 de outubro de 1953.
Tampouco insistido na industrialização. Ou Juscelino feito Brasília. Nem Celso Furtado teimado em erradicar o apartheid que dava ao Nordeste um quê de bantustão avant la lettre.
A determinação de viabilizar cada um dessas bandeiras, extraiu do planejamento público a credibilidade que lhe sonegavam as elites e seu aparato emissor.
Há mais exemplos que o alto-falante conservador cuida de abafar.
A atual e festejada eficiência agropecuária, por exemplo (de custos ambientais e sociais nunca ponderados).
Só atingiu a grandeza de escala e produtividade, graças à semeadura incansável do crédito público.
E da pesquisa realizada por uma estatal fundada em 1973, que se transformou em referência mundial na agricultura tropical: a Embrapa.
O etanol brasileiro é outro.
Que não sairia do sonho de visionários sem um programa estatal iniciado em 1975, o Pró-álcool.
Bilhões de dólares foram destinados à consolidação do que é hoje uma opção efetiva de combustível renovável.
Sem esquecer a Embraer, estatal criada no final dos anos 60, privatizada em 1994.
Uma das maiores fabricantes de aeronaves de autonomia regional do mundo.
O que havia de singular no pós-guerra, até meados dos anos 80, era esse entrelaçamento da indução pública de recursos com o poder operacional de estatais.
Criadas ou já existentes, elas ordenavam o mercado e o setor privado à consecução de objetivos estratégicos.
O que se seguiu à crise da dívida dos anos 80 é conhecido: rapinagem, corrosão fiscal, sucateamento e privatizações escalpelaram a capacidade do setor público de orientar o desenvolvimento do país.
A década de 90 juntou a fome com a vontade de fazer regime de soberania.
Entregou-se o destino da economia e o da sociedade aos impulsos reptilíneos dos mercados autorreguláveis.
Não por acaso, a industrialização brasileira embicou a partir daí.
Padece hoje do longo e corrosivo esgarçamento dentro do qual terá que se reinventar nas novas –e difíceis-- condições de integração às cadeias globais.
Não é apenas um desafio tecnológico.
Os sacerdotes do sacrifício exibem a sangria como prova dos pecados da oferenda.
E cobram a penitência do autoflagelo definitivo, com a abertura irrestrita do país à purga redentora da concorrência internacional.
O diabo é a Petrobrás.
A sessentona rebelde, com todas as suas cicatrizes e cabelos brancos, avança na contramão do trânsito.
A disparar saltos de eficiência e avanços tecnológicos ali onde a disputa é mais renhida e travada contra interesses gigantes da geopolítica mundial.
Seu êxito ofusca o discurso da rendição redentora aos ‘livres’ fluxos de capitais e mercadorias.
Mais que isso.
Longe de se resumirem a uma efeméride, seus 60 anos embalam um trunfo que avaliza a possibilidade da reindustrialização brasileira.
A sangria de décadas sofrida no parque fabril do país tem sido mitigada com desonerações, protecionismo e ajuste de câmbio.
Mas reverter os buracos consolidados é mais difícil.
O dinamismo que se perdeu teria que ser substituído por um gigantesco esforço de inovação e redesenho fabril, a um custo que um país em desenvolvimento dificilmente poderia arcar.
Exceto se tivesse em seu horizonte a exploração soberana, e o refino, das maiores jazidas de petróleo descobertas no século 21.
É isso o que representa o pré-sal.
Dele o país já obtém 300 mil barris/dia. Este ano, nove plataformas entram em operação e podem elevar em 50% a produção da empresa.Em 2020, o pré-sal fornecerá 2,1 milhões de barris/dia, dobrando a produção nacional.
Até 2017, US$ 237 bilhões serão investidos nessa maratona.
Não existe automatismo entre esses valores e o desenvolvimento do país.
Os efeitos virtuosos disso no conjunto da sociedade só ocorrerão por conta de um lacre de segurança que não pode ser removido: o marco regulador do pré-sal.
Aprovado com a oposição de quem agora agita a bandeira contra o intervencionismo petista –- ele institui o regime de partilha e transfere o comando de todo o processo tecnológico, logístico, industrial, comercial e financeiro da exploração à Petrobras (PPSA).
Todos os contratados assinados nesse âmbito –inclusive os do polemico leilão de Libra-- incluem, por exemplo, cláusula obrigatória de conteúdo nacional nas compras de equipamentos, de 65% , pelo menos.
Esse é o ponto de mutação da riqueza do fundo do mar em prosperidade na terra.
O novo marco regulador transfere à Petrobras/PPSA a responsabilidade soberana de harmonizar duas variáveis básicas: o ritmo da extração e do refino; e a capacidade brasileira de atender a demanda por plataformas, máquinas, barcos, sondas etc.
Se a exploração correr livre, como gostariam a república dos acionistas e as multinacionais, o fôlego da indústria local será atropelado.
Não são apenas negócios que estão em jogo.
Cerca de 300 mil jovens brasileiros serão treinados nos próximos anos pelo Promimp, o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural.
Sem o novo marco regulador, que sofreu e sofre o cerco beligerante do conservadorismo, eles seriam desnecessários.
O conjunto requer ainda forte expansão da rede brasileira de refinarias, estagnada desde 1980.
Tudo isso causa erupções cutâneas na pátria dos dividendos, que prefere embolsar lucros rápidos, com o embarque predatório de óleo bruto.
O que a sexagenária Petrobras propicia ao país, portanto, é uma espécie de berçário da reindustrialização de que o desenvolvimento brasileiro tanto necessita.
É desse arcabouço de medidas e salvaguardas que poderão jorrar os recursos do fundo soberano para superar os grandes interditos que ainda afligem a população brasileira.
O acesso à saúde e à educação públicas de qualidade, por exemplo.
Desqualificar a estatal criada por Getúlio é um requisito para reverter a blindagem em torno de uma riqueza, da qual as petroleiras internacionais e o privatismo de bico longo ainda não desistiram.
Mais que isso.
É uma salvaguarda contra um perigo maior.
Aquele que pode levar o discernimento nacional a enxergar no épico contrapelo do petróleo nacional – ordenado pelo guarda-chuva de uma estatal espelho poderosa-- uma inspiração para destravar o arranque de um ciclo acelerado de expansão da infraestrutura brasileira.
Postado por Saul Leblon às 20:45