segunda-feira, janeiro 30, 2012

"A esquerda não está na televisão"

Enfrentar o latifúndio midiático

Por Terezinha Vicente, no sítio da Ciranda:

João Pedro Stédile colocou o enfrentamento aos meios de comunicação de massa entre os principais desafios que temos na conjuntura atual. O lider do MST falou na Assembléia dos Movimentos Sociais, ao final do FST.
Solicitando um minuto de silêncio pela morte de dois líderes de esquerda no ano passado - Egídio Brunetto, do MST e Paulo Schilling, um dos fundadores do PT - João Pedro Stédile iniciou a sua intervenção na Assembléia dos Movimentos Sociais, tradicional no encerramento de todas as edições do Forum Social.

"Análise de conjuntura deve ser um exercício coletivo", disse Stédile. "Do olhar diferente de cada um é que se pode construir a síntese do que ocorre na complexidade da realidade atual". O economista propos-se então a levantar pontos de introdução para um aprofundamento da atual crise do capitalismo, lembrando que o sistema rejuvenesceu nas crises anteriores, a crise estrutural por maior que seja não conduzirá o capitalismo a sua auto-destruição. "Na última grande crise 20 milhões de imigrantes foram expulsos da Europa".

Entretanto, "a crise global pela primeira vez atinge todos os países", disse o lider do MST. Ressaltando a financeirização do capital e o fato de que 500 empresas transnacionais hoje controlam o mundo, Stédile acredita que a crise será longa e causará muitas transformações na vida dos povos. A utilização do Estado como instrumento de acumulação de capital e salvação dos bancos, enquanto há 200 milhões de operários desempregados no mundo, é outro dado apontado como fundamental para analisar o momento histórico atual.

Na época da segunda guerra, os governos decidiam, hoje existe uma "dicotomia entre o poder econômico e o poder político", continuou. "Hoje os governos se reunem e não representam o capitalismo, os bancos mudam os presidentes, os governos não tem poder político". Para Stédile, a crise é importante para o lado dos que querem superar o capitalismo. Ou iremos à bárbarie ou conseguiremos mudar as estruturas em nossos países, acredita o lider, e para isso devemos enfrentar alguns desafios principais.

Capitalismo e redes de tv

Stédile apontou cinco desafios principais na conjuntura atual. O primeiro é tirar as massas da apatia, superando o medo dos trabalhadores e inserindo parcelas da juventude que protesta, mas que estão deslocadas do mundo da produção. "Defendemos um projeto que supere o capitalismo", segundo desafio. "Como explicar para as massas e construir um caminho até o socialismo?", questionou.

Para o lider, faz parte desta resposta o enfrentamento aos meios de comunicação de massa. "A burguesia no mundo controla as massas pela televisão, a esquerda não está na televisão". Este terceiro desafio é fundamental, diz ele. "Fazer a disputa ideológica, enfrentar os meios de comunicação de massa". Indo além das lutas locais, "importantes para resolver problemas imediatos", Stédile acredita que a "a conjuntura nos exige que consigamos construir lutas comuns, de massa, contra os mesmos inimigos: capitalistas e as redes de tv!"

Devemos ser mais criativos nas formas de organização e de luta para envolver as massas, afirma. Ele destacou a data de 5 de junho como dia de ação global, onde devemos buscar realizar grandes mobilizações de massa em defesa dos recursos naturais da terra. Concluindo com um chamado à unidade dos movimentos sociais, disse esperar que refletíssemos sobre a questão: "O que podemos fazer juntos daqui para a frente?"

sexta-feira, janeiro 27, 2012

“Anonymous” à caça dos governos (e da Rede Globo) depois dos protestos Anti-SOPA


Quinn Norton





25/1/2012, Quinn Norton, Wired
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu





Ver também
3/1/2012, Anonymous” 101: Introdução aoLulz [1], Quinn Norton, Wired (Parte I)
3/1/2012, Anonymous 101: O moralismo derrota o Lulz”, Quinn Norton, Wired (Parte II)
23/1/2012, A únicaentrevista que Anonymous jamais deram” , The shorty interview
11/1/21012 – “2011: Anonymous contra polícia,ditadores e ameaça existencial” – Quinn Norton, Wired



Na semana passada, os Anonymous lançaram sequência sem precedentes de ataques a páginas de governos e empresas, por todo o mundo. A fúria do enxame, que ano passado atacou Mubarak no Egito, volta-se agora contra outros governos em todo o mundo.
Repetidos ataques DDoS e de hacking, pelos Anonymous, parecem ser em boa parte uma resposta a propostas de arrocho na lei de propriedade intelectual à custa de uma internet aberta; e ao que os Anonymous veem como excessos no exercício do poder, por vários governos. Depois de atacar páginas de agências do governo dos EUA e dos grandes grupos proprietários de direitos autorais, em resposta contra a prisão de empregados da página de compartilhamento Megaupload, iniciou-se um novo round internacionalista, depois de mensagem distribuída por AnonyOps, numa espécie de “conta oficial” dos Anonymous no Twitter, no sábado [aqui traduzido]:
Se você odiou #SOPA, vai super odiar #ACTA [1] Negociado em segredo. Buscas no iPod estão em jogo.

O controvertido tratado será votado em breve na Polônia, o que contribuiu para transformar convenientemente a indignação contra uma lei norte-americana de censura à internet, em proposta transnacional.
Os Anonymous uniram-se a ativistas digitais poloneses, para responder. No Facebook, ativistas montaram um protesto físico e criaram um dia de blackout, na 3ª-feira, semelhante ao blackout de protesto contra a lei SOPA. Os Anonymous deflagraram um ataque DDoS contra páginas do governo polonês e anunciaram que teriam invadido computadores de ministérios dos quais teriam extraído documentos.
A combinação de ataques anônimos e reação das autoridades polonesas trouxe à luz o sempre obscuro tratado ACTA e ampliou a discussão na Polônia sobre se o tratado ACTA realmente interessa à Polônia e à internet polonesa. O ministro da Administração e Digitalização Michał Boni declarou que o tratado seria assinado, com ou sem ameaças dos Anonymous ou protestos da população na Polônia; mas o tratado ainda terá de ser aprovado no Parlamento polonês, antes de ser convertido em lei.
Com o início das manifestações de rua na Polônia, alguns Anons distribuíram uma nota, dizendo que era hora de suspender os ataques DDoS e, com isso, caíram também os ataques DDoS contra alvos nos EUA. Na 4ª-feira, milhares de manifestantes saíram às ruas em várias cidades da Polônia, cantando e exibindo cartazes de protesto contra a assinatura do tratado, prevista para acontecer dia 26/1.
O tratado ACTA é acordo secreto, promovido e possivelmente redigido, pelo menos em parte, pelos mesmos interesses que acabam de ver atacados em pleno voo, pela internet, os planos que tinham para aprovar a lei SOPA: a indústria do entretenimento. Os termos doACTA jamais foram bem discutidos publicamente, mas vazaram algumas versões do tratado, que revelaram que o ACTA inclui um dispositivo de lei pelo qual três acusações de infringir a lei implicariam o “acusado” ser expulso da Internet e uma volta ao estilo dos “portos seguros” do Digital Millennium Copyright Act (DMCA) de 1998, que permitiram o funcionamento de empresas como YouTube, Flickr, Tumblr, Twitter, Facebook e Google.
O governo Obama também já disse que não é necessário que o Congresso aprove o tratado, para torná-lo vigente nos EUA, e que será implementado por ordem executiva. A incapacidade da comunidade de internet para avaliar leis que podem afetar todos muito profundamente continua a ser frustrante.
“Todo o governo, basicamente, é sempre ‘levado no bico’, em todos os aspectos” – disse um Anon, no IRC envolvido com as ações anti-ACTA.
Na França, o movimento para deter a tramitação do Tratado ACTA floresceu em milhares de canais francófonos de servidores IRC dos Anonymous. Houve muitos ataques DDoS contra o império de mídia francês Vivendi. Centenas de falantes de francês, polonês e português tornaram os servidores AnonOps mais globais do que nunca antes.
Brasil: a violência policial em Pinheirinho
Outra parte dessa missão de envolvimento planetário veio à superfície no Brasil, onde um ataque de força policial contra uma favela chamada Pinheirinho também provocou a indignação e a ação do grupo Antisec – enquanto a expulsão violenta de mais de 5.000 moradores entra no quarto dia.
Hackers brasileiros pediram ajuda aos Anons “chapéu preto”, que informaram que teriam conseguido invadir dúzias de caixas no Brasil, cujos documentos teriam sido saqueados; informaram também que as chaves teriam sido passadas aos hackers brasileiros.
Antisec ajudou os brasileiros, porque eles pediram ajuda” – disse um Anon, num chat online, à revista Wired. “Eles consideram-se fãs e membros de Lulzsec e Antisec.”
Entre as páginas hackeadas estava uma página das Organizações Globo, grande conglomerado de mídia latino-americana que tem sede no Brasil[2]. Numa das páginas liam-se agradecimentos a Sabu e #antisec, e a frase que talvez já seja a mais perfeita tradução do “espírito do tempo” na internet, semana passada: “Que porra está acontecendo no mundo?!”
Segundo Biella Coleman, professora da cátedra Wolfe, de Alfabetização Científica e Tecnológica [orig. Chair in Scientific and Technological Literacy] da McGill University, o que está acontecendo é que uma geração de pessoas, cujo modo de vida já é inseparável da rede, sente sua cultura ser ameaçada e decide lutar.
“A operação tem raízes em algumas questões chave, que mobilizam profundamente os Anonymous e os entusiastas da internet: liberdade de expressão, censura e restrições de propriedade intelectual” – disse Coleman.
É impossível saber por quanto tempo o enxame manterá a energia e o foco, na disputa contra os governos do mundo. Muito dependerá de como os cidadãos, nos países afetados, apoiarão o que os Anonymous estão fazendo, nos próximos meses. Seja como for, ao longo dos últimos meses os Anonymous parecem estar-se transformado em força unificada de ativismo pela rede, a única força que está conseguindo ultrapassar barreiras nacionais, de jurisdições, de protocolos e de idiomas.
Desde a 4ª-feira passada, muitos Anons estão praticamente sem dormir, saltando de alvo para alvo, tentando derrubar páginas de governos e grandes empresas, ou atacando servidores, ou até, em alguns casos, os computadores pessoais de representantes de governos. “Mas o momento é crucial” – disse um Anon, no IRC, à revista Wired – “e a batalha nunca foi mais importante”.
Eles concordam que a ação tenha sido disparada pelo caso MegaUpload, alimentada depois pelo sucesso dos protestos difundidos pela internet contra as leis SOPA/PIPA, mas dizem que, depois, a ação ultrapassou essas duas questões. Um Anon viu a notícia das prisões [MegaUpload] e conectou-se para distribuí-la; mas as operações já estavam em andamento. Esse Anon previu que os Anonymous “vão ficar doidos”.
A1: Acho que é mais que isso. MegaUpload fazia serviço válido pra todos nós
A2: e eles entraram e acabaram com tudo
A2: Quero dizer: essa é a parte principal
A1: Estamos doidos, porque hoje perdemos um grande sistema
E não ficou nisso, porque vários outras páginas de hospedagem de arquivos foram derrubadas ou saíram voluntariamente do ar nos últimos dias, talvez tentando fugir à ação da lei norte-americana, ou desconectaram-se dos EUA e de países que seguem o regime de IP dos EUA.
No IRC, um Anon de Antisec chamou a atual situação de “a mais grave ameaça à nuvem”.
“Os Federais fecharem uma página por força judicial é a mão de ferro em luva de veludo” – disse um Anon envolvido nas ações de DDoS e de antisec.
Durante os ataques, legais e não legais, na França, Polônia, EUA, Brasil e outros, a ala Antisec “chapéu preto” dos Anonymous hackearam e desmontaram a página OnGuardOnline.gov, da Comissão de Comércio Federal [ing. Federal Trade Commission website], onde estão reunidas várias agências federais que ali recebem online informação de segurança de computadores. Antisec diz ter centenas de servidores já rastreados, mas essa ação visava a transmitir mensagem específica aos chamados “chapéus brancos” – os hackers profissionais que trabalham para grandes empresas e governos. A mensagem dizia (excerto):
#ANTISEC SEZ É HORA DE RETALIAR CONTRA SOPA/PIPA/ACTA. APROVEM ESSE LIXO E POREMOS ABAIXO METADE DA INTERNET CORPORATIVA (...)
Se as leis SOPA/PIPA/ACTA forem aprovadas, será guerra infinita contra a internet corporativa. Destruiremos dezenas e mais dezenas de páginas de governos e empresas. Enquanto vocês lêem aqui, estamos arregimentado nossos exércitos de sombras aliadas, arquitetando o próximo raid. Estamos sentados em centenas de servidores, nos aprontando para derrubar e-mails e serviços de vocês. As senhas? Suas preciosas contas bancárias? Detalhes de seus sexy-encontros virtuais? Vocês nem sabem o que os espera.
Não é a primeira vez que o coletivo distribui manifestos dramáticos e apocalípticos, ou movidos por húbris-arrogância hacker ou movidos pelo lulz, mas a ação, dessa vez, foi mais ampla e mantida por mais tempo que qualquer outra ação dos Anonymous, desde que se envolveram na Primavera Árabe. “Mostra também que os Anonymous continuam capazes de colher uma emoção generalizada e difusa de descontentamento e amplificá-la, torná-la visível, mediante a campanha de DDoS e as ações de publicidade e divulgação que eles criam e distribuem muito rapidamente. A grande novidade, de fato, nas operações recentes, é o grande número de páginas que conseguiram derrubar ou desmontar num único dia. A ação foi impressionantemente ampla” – disse Coleman.
Na 4ª-feira, a Comissão Federal de Comércio disse, pelo Twitter: “Essa Comissão levará a sério esse ato criminoso” –, num de uma longa série de tuítes sobre o assunto. A página continua fora do ar, até que todas as vulnerabilidades de segurança sejam identificadas e corrigidas.
Depois de derrubarem (ação que causou grande prejuízo) toda a rede PlayStation da Sony, na primavera passada, e depois que, em dezembro, hackers invadiram a empresa de inteligência privada Stratfor, de cujos servidores extraíram muitos dados (o que causou grande embaraço), o mundo das grandes corporações começa a temer os Anonymous. Medo de verdade.

Notas dos traditores
[1] Acordo Comercial Anticontrafação [ing. Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA)].

Esses moradores optaram por impor um limite à negociação de seus direitos, buscando exigi-los, numa ação de autoempoderamento, de dar direitos a si, e não de trocá-los por uma “paz” qualquer.

Justiça não é pacificação.
Por João Telésforo Medeiros Filho
Em artigo publicado hoje na Folha de São Paulo, o jornalista Elio Gaspari critica moradores do Pinheirinho por supostamente não terem aceitado proposta de pagar de R$ 3.000 a R$ 6.000 para adquirir seu lote na área, diferentemente de milhares de outras famílias, que teriam feito acordos nesse sentido. Gaspari critica a “estratégia da tensão” pela qual optaram aqueles que não aceitaram o acordo, afirmando que eles poderiam ter evitado o conflito.
O jornalista da Folha compartilha da perspectiva comum de que a solução justa é a que “pacifica” a questão, ainda que com prejuízos à parte mais fraca – na verdade, com o maior prejuízo possível que ela seja capaz de aceitar. Se a parte não aceita o “acordo” que se busca impor a ela, e como resposta recebe a violência, a culpa do conflito é dela! Lembrou-me uma música do grande sambista João do Vale (autor de clássicos como Carcará e Pisa na Fulô):
“Eu fui pedir aumento ao patrão
Fui piorar minha situação
O meu nome foi pra lista
Na mesma hora
Dos que iam ser mandados embora”
Pra que isso de pedir aumento, né? Só falta depois, no contexto da música, os operários inventarem de fazer greve em solidariedade aos que foram demitidos, gerando conflitos “desnecessários”. Justo seria eles não provocarem tensão alguma e se conformarem a receber salários aviltantes por toda a eternidade… ¬¬
É admirável a postura dos moradores do Pinheirinho que resistiram bravamente a ter de subtrair milhares de reais de suas já baixíssimas rendas para terem direito a algo que a sociedade deveria lhes garantir, por se tratar de direito humano: a moradia digna. Esses moradores optaram por impor um limite à negociação de seus direitos, buscando exigi-los, numa ação de autoempoderamento, de dar direitos a si, e não de trocá-los por uma “paz” qualquer.
Trata-se de defender, sim, a “estratégia da tensão” diagnosticada e criticada por Gaspari, porque justiça não consiste em “pacificação” de conflitos, mas em dar a todos a possibilidade de experimentação do conflito e equacioná-lo em termos democráticos, igualitários, o que implica assumir prioritariamente a ótica dos oprimidos sobre os direitos a que têm direito.
Seria melhor para os moradores terem aceitado um acordo que precarizasse seus direitos, em vez de resistirem em busca de sua satisfação integral? Ora, quem realmente tem todas as condições para dizer que sim ou que não são os próprios moradores: são eles que têm de lidar com a falta de dinheiro para pagar pela passagem de ônibus, a dentadura para o pai, o livro para a filha… São eles, também, que têm de lidar com a violência que sofrem quando se rebelam contra as imposições do Estado e do capital especulativo.
Não me entendam mal: não acho que nós, que não moramos no Pinheirinho, não possamos fazer avaliações estratégicas sobre as melhores saídas para a situação, e inclusive compartilhá-las com os moradores, pondo-nos ao seu lado em sua luta. Só não consigo aceitar a crítica que culpabiliza os moradores, seja aqueles que fizeram o acordo, seja aqueles que não o fizeram; em ambos os casos, agem acossados por fortes pressões e violências. Não culpar os moradores não significa irresponsabilizá-los politicamente pelas ações que escolhem tomar, mas precisamente o oposto: respeitar a responsabilidade que cabe primordialmente a eles. Sobretudo, não dá pra aceitar que pessoas que corajosamente não abrem mão de seus direitos sejam culpabilizadas pela violência policial que são obrigadas a enfrentar.
Gerar tensionamentos para garantir direitos
Finalmente, Elio Gaspari critica o PSTU, dando a entender que não teriam sido os moradores que não teriam aceitado o tal acordo, mas o partido, falando em nome deles ou influenciando-os a assumir essa postura. Tenho várias divergências programáticas e estratégicas com o PSTU, mas preciso discordar fortemente de Gaspari em dois aspectos, nesse sentido. Primeiro, sua visão tende a infantilizar os moradores, como se o fato de supostamente se relacionarem com um partido ou contarem com seu auxílio em sua organização significasse que eles deixariam de saber julgar por si mesmos o que é bom e aceitável ou não para si. A relação não é simplória como Gaspari faz parecer: se de fato algumas famílias optaram por contar com a ajuda do PSTU para organizarem sua resistência política pelo direito à moradia, não foi porque o partido fez lavagem cerebral nelas, mas porque elas concordaram com a estratégia de luta apresentada ou representada por ele; se o PSTU optou por apoiar essas famílias, do mesmo modo, é porque concordou com as demandas que apresentaram e a forma de exigi-las, o que é de todo legítimo. É isso o que se espera de um partido político, que seja um dos instrumentos de organização política da população para exigir direitos e determinar sua vida social.
Segundo, a postura do PSTU de apoiar os setores populares que se dispõem a resistir por seus direitos e gerar tensionamentos, em vez de aceitar “pacificações” quaisquer, não é errada. A estratégia do tensionamento nem sempre é a melhor, mas recusá-la por princípio é nada mais do que afirmar a conservação social como princípio. Aliás, o cientista político Marcos Nobre tem alertado que o grande problema atual da política brasileira é o “peemedebismo”, isto é, a tendência de praticamente todos os partidos e grupos políticos majoritários (inclusive o PT, nos últimos anos) a evitarem tensionamentos que gerem as polarizações capazes de transformar nossa vida social (v. post de Gabriel Santos Elias sobre esse assunto aqui no blog).
Foi por meio de muito tensionamento, enfrentando muita violência, que trabalhadores, mulheres, negros e outros amplos grupos conquistaram o reconhecimento social sobre os seus direitos, gerando um movimento de crescente ampliação e ressignificação da cidadania. Para cada uma das incontáveis greves, revoltas e gritos de protesto que foram reprimidos violentamente na história, poderia se fazer o comentário de que aquilo não era necessário, de que os trabalhadores, ou as mulheres, ou os habitantes da periferia poderiam ter aceitado menos e assim “evitado” a violência. Sim, podiam. Mas também podiam não ter aceitado, e foi isso que afirmaram por meio de cada revolta, de cada ato de resistência: contrariamente ao que se quer nos impor, nós podemos. Por meio dessa afirmação de potência, alargaram as fronteiras do possível, inventaram novos direitos, criaram poder popular e nos deixaram um legado de luta social que foi honrado pelos moradores do Pinheirinho.

A indignação pode ser apenas o alfa, o grau zero da política, jamais o ponto de chegada.

Não vou escrever sobre o massacre, a tragédia, a desumanidade de Pinheirinho. Li inúmeros textos exasperantes, tantas análises desesperançadas, tanta crítica pela via negativa. Lendo alguns comentários, parece que um ou outro inclusive torce para que tenha havido mortos (e não duvido tenha). Fico com a impressão que se aparecessem os cadáveres, essas pessoas iriam comemorar, correndo a seus tuíteres e facebooks. Talvez alguns militantes precisem assistir às coisas sofrerem e morrerem, mas sempre à distância, a uma boa e segura distância, para vicariamente viver a indignação redentora, o gozo às avessas do desastre. O mecanismo depressivo culmina na culpabilização da população como um todo. Por que não se revolta afinal?, não é possível, só pode estar alienada pela grande imprensa, ou seriam mesmo incapazes e insensíveis para reconhecer a guerra contra os pobres.
A indignação pode ser apenas o alfa, o grau zero da política, jamais o ponto de chegada. Não discordo que algumas pessoas, diante do bombardeio, se indignem a ponto de fazer a diferença. Essas compreendem ou sentem na pele que Pinheirinho é uma condição que as atravessa. Somente assim, como condição existencial, consegue mobilizar o desejo. Essa potência que nos arranca dos esquemas cotidianos e nos convoca a ser o que não somos. Coloca-nos numa posição em que temos tudo a perder, menos a liberdade. Esse desejo que instiga a ocupar praças e ruas, a envolver-se em organização política, a deslizar da rotina e reinventar o tempo de vida para a gestação de outro mundo. A arriscar o mundinho em que nos acomodamos. Menos conversão do que elaboração. Por que fazer política? Ora, como não fazer? Agora, imediatamente.
A maioria dos indignados, desconfio, se restringe a retuitar, a reproduzir murais de facebook e exprimir sentimentos vagos de revolta. Até que o tópico da vez mude, quem sabe outro quase-estupro em rede nacional (“aquela trepadinha tipo vagabundérrima”, nas palavras de uma amiga). Solidarizar-se moralmente com as vítimas nunca foi suficiente. Elas sequer desejam o nosso apoio moral, esse disfarçado sentimento de pena. Não passa de outro insulto, que repete a humilhação. As redes sociais também contêm dispositivos para desanuviar a própria culpa. E compartilhar da expiação num grande ritual coletivo de má consciência e auto-enlevo. Pintar o governador de Hitler e a juíza de Eva Braun: bodes expiatórios para a servidão voluntária de cada um. Coletivizar a culpa é isentar os algozes, mas culpar somente os algozes é isentar a todos, em erro simétrico. Hitler foi um dos responsáveis, mas também quem assistia a contingentes desaparecendo dos prédios, vizinhos sumidos do nada, e muito convenientemente se convencia que os policiais só estavam cumprindo a lei, que talvez não fosse a solução justa, mas era a solução do estado e vivemos num estado de direito. Então que se há de fazer, né. A lei se cumpre como princípio da civilização, ponto.
Que isso está muito errado é óbvio. Quem se convence disso afogou-se no próprio cinismo. Desde Eldorado de Carajás, São Bonifácio, Candelária, desde as remoções olímpicas das grandes cidades, desde o choque de ordem contra pobres, camelôs e cracolândias, desde o racismo de sempre. Desde Canudos, Palmares, Haximu, Capacete. Que a grande imprensa trabalha para a manutenção da ordem é óbvio. Qualquer um em Pinheirinho sabe porque foram removidos. Sabe melhor do que os acadêmicos de direito. Basta ouvir os moradores. Porque tem muito dinheiro envolvido, porque os poderosos não podem aceitar vida fora das regras instituídas (a propriedade e o trabalho), porque não pode virar um tão mau exemplo para os pobres do mundo. Lidar com um Pinheirinho já dá tanto trabalho, imaginem mil, dez mil ocupações atrevidas? Não pode.
Pra mim, Pinheirinho não pode ser exemplar como repressão violenta do estado, como se pretende gravar na história. Esse é o mau exemplo, que não deve ficar como exemplo. Pinheirinho é exemplar como re-existência diante dessa ação violenta, que é sistemática e permanente. A favela teve a ousadia de politizar-se, produzir ela mesma os direitos, de fazer frente à repressão, de antagonizar afirmativamente. Comprou a briga. Desabrochou uma cultura de resistência, articulou-se com movimentos e sindicatos. Essa afirmação de discurso insurgente circulava na comunidade, conferindo autoestima. Sem nenhuma ajuda do poder público, a comunidade se autoconstituiu em várias dimensões: como tempo social, cultural, político. Estava se virando na pobreza, apesar de tudo.
Quando tentaram negociar, Pinheirinho inquietou-se: por que deveriam se subordinar a projetos de moradia proletária, se havia terra desocupada e abundante para viverem como gatos, animais sociais que já nascem pobres e livres? Por que aderir a um consenso que deprime, à miséria com que tentam comprar-nos? E respondeu com todas as letras que as autoridades estavam erradas, que as pessoas tinham, sim, o direito de ali produzir o seu mundo. Que tinham o direito e que iriam ficar, porque podiam e era isso. Está desvelado o conflito que existia desde o começo, camuflado. O constituinte contra o constituído. O direito achado na rua contra o ativismo judicial, como daquele desembargador orgânico da operação, debelando in loco remédios jurídicos. O direito do comum contra essa concreção do mando capitalista chamada propriedade, uma máscara atrás da qual sempre há dois lados em posição desigual. A legalidade, sim, pode ser apropriada como arma de resistência, não deve jamais ser descartada em princípio; mas que não nos iludemos: na materialidade, o direito estatal não está imbuído de altos valores humanistas, nem pondera valores com imparcialidade, muito menos embute consensos racionais de justiça ou idéias reguladoras de bem.
Meu ponto é que, nos meios de esquerda, a questão de Pinheirinho está desfocando. Está moralizando, tendendo ao esquerdismo fácil. Falam muito da violência do estado, da truculência, da humilhação, dos direitos humanos etc etc. E, em certa medida, se está correto em falar e é verdade e indigna e não é novidade. Não me entendam mal. Mas não se pode perder a perspectiva. A força e inovação de Pinheirinho é que eles resistiram, eles tensionaram até o final, eles foram os inadaptados, os problemáticos, os pinos redondos em buracos quadrados. Poucos estão falando como Pinheirinho foi uma singularidade não porque foram vítimas, mas porque resistiram e cantaram e ainda carnavalizaram a polícia, — uma ousadia inominável ante a corporação mais fascista do estado federativo mais fascista deste país apinhado de fascistas.
Não podemos perder o essencial, o significado afirmativo e empoderador. Do contrário estaremos fazendo exatamente o que pretendem que façamos: perpetuar a opressão no plano simbólico e botar medo em quem resiste. Torço para que as fotos dos fogos e medos não vinguem. Que continuem a inspirar ações as fotos de Pinheirinho à moda do incrível exército de Brancaleone. Do contrário, passaremos adiante a mensagem dos poderosos: frisar a consequência exemplar para outros Pinheirinhos do Brasil. Esses mil Pinheirinhos que, sem medo, na alegria e na ousadia, instituem e sustentam outra forma de viver a liberdade e as relações sociais, reapropriando-se da riqueza de todos. Enfim, só os mil Pinheirinhos do Brasil, tensionados e insurgidos, podem comprovar quem são os fracos da história, e quem são os mortos, e quem viverá.
———————–
Recomendo o melhor artigo sobre o caso, por João Telésforo Medeiros no Brasil & Desenvolvimento: Justiça não é pacificação.

Sobre o discurso de Obama que a imprensa brasileira achou muito importante e tentou enfiar na cabeça dos brasileiros durante toda a semana...

Sobre “State of the Union” (SOTU), 2012 (2)GM é o pior modelo possível para ‘recuperar’ os EUA25/1/2012, Frank Hammer, The Real News Network (vídeo e entrevista traduzida)
http://therealnews.com/t2/index.php?option=com_content&task=view&id=767&Itemid=74&jumival=7847

Frank Hammer é empregado aposentado da General Motors de Detroit, onde trabalhou durante 32 anos, e ex-presidente de Local 909 em Warren, MIchigan. Atualmente, está organizando a Auto Worker Caravan [Caravana dos Trabalhadores da Indústria Automobilística], associação de trabalhadores ativos e aposentados, que viajará a Washington para apresentar suas reivindicações ao governo.
PAUL JAY, editor sênior de TRNN: Pode-se dizer que a peça central do discurso do presidente Obama foi restaurar as fábricas norte-americanas. E o modelo de sucesso da intervenção do governo Obama teria sido a ‘salvação’ da General Motors e da indústria automobilística. Que lhe parece?

HAMMER: Acho que o modelo é ruim, é péssimo. Acho que se alguém soubesse o que realmente foi feito, que fomos jogados à falência pela crise financeira e, claro, Wall Street traçou o plano e ditou os termos do que fazer para tirar os bancos da falência. Resultado disso, os empregos desapareceram na indústria automobilística. Mais ainda: para recuperar a GM, foi preciso atar mãos e pés e amordaçar os trabalhadores. E tudo, a partir do mito inicial: de que a causa da falência teriam sido os salários. Não foram. A causa da falência foi a crise financeira.

JAY: O que você quer dizer, quando fala em atar mãos e pés e amordaçar os trabalhadores?

HAMMER: O presidente Obama mencionou que seu governo deixou que as empresas e os trabalhadores resolvessem suas diferenças. É. O que o governo Obama fez foi, primeiro, acabar com o direito de greve. Segundo, o governo Obama fixou, como salário máximo aqui em Detroit, o salário das fábricas do sul onde os trabalhadores não são sindicalizados. Assim reduziram nossos salários e nossa expectativa de vida decente. As fábricas em Detroit foram equiparadas às fábricas dos sul, cujos trabalhadores não são sindicalizados. Tudo isso foi feito pelo governo Obama, sim. Que obedeceu ordens de Wall Street.

E se esse é o modelo que Obama usou em seu discurso, o que Obama disse, de fato, é que todos devem reduzir o padrão de vida dos trabalhadores, equipará-los ao padrão de vida de trabalhadores do Terceiro Mundo, para que os EUA – lembre-se ele citou o exemplo de Master Lock[1]. O presidente Obama disse, isso sim, é que os trabalhadores chineses têm tido aumentos no salário mínimo e, portanto, é agora melhor negócio para a Master Lock voltar para os EUA, onde os salários dos trabalhadores são menores a cada dia. O que ele de fato disse é que está convertendo os EUA em país do Terceiro Mundo. E que, assim, seremos mais competitivos e que assim criaremos empregos. Mas só se os trabalhadores dos EUA aceitarem trabalhar por salários de Terceiro Mundo e sem direito de greve.

JAY: Obama também falou sobre desenvolver energia limpa. O que lhe pareceu?

HAMMER: Pareceu-me que ele mencionou a mudança climática uma vez. E só disse, sobre mudança climática, que o Congresso talvez esteja excessivamente dividido para discutir o problema. Foi muito pouco, uma droga de concessão, se se sabe que os cientistas têm dito que é preciso agir rapidamente. E continua repetindo aquelas bobagens, energia nuclear, biocombustíveis e petróleo. Quer dizer: Obama não parece ter ideia clara de que a questão central, definitória desse nosso tempo, são as energias renováveis, não os bicombustíveis, nem a energia nuclear, mas energia limpa. Para Obama, a questão definitória desse nosso tempo é se os EUA conseguirão manter o padrão de vida da classe média dos EUA. E ninguém manterá padrão algum de vida de classe média alguma, se não começar a preocupar-se com a mudança climática.

JAY: Um dos temas sobre os quais conversamos em outras entrevistas é que a recuperação da indústria de transportes poderia ser ponto de partida para outro tipo de economia. Mas Obama voltou ao modelo de Detroit.

HAMMER: Ele mencionou, a certa altura, que entende que as empresas devem receber incentivos para construir novas fábricas, nas áreas que foram mais duramente atingidas pela crise. Em 2009, Obama disse que cuidaria de áreas como Detroit como o governo Bush deveria ter cuidado de New Orleans depois do Katrina. Gostei daquela ideia, achei que ia na direção certa. Mas nesse discurso já nem apareceu um tópico que aparecera nos outros discursos Estado da União: a questão de construir transporte público, linhas férreas, transporte leve. Há muito tempo nós repetimos que algumas das grandes fábricas que foram fechadas em Detroit deveriam ser convertidas em fábricas de vagões, vagões leves, para linhas de alta velocidade. Em 2012, o presidente nem falou sobre isso. Tenho esperança de que se possa ver algum movimento na direção de utilizar energia solar e eólica, para reabrir algumas das fábricas que continuam fechadas. E que apareçam os incentivos que Obama mencionou no discurso.

JAY: Em termos gerais, qual foi sua impressão do discurso? Alguns dos que entrevistei hoje disseram que estão felizes de Obama ter falado, pelo menos, da desigualdade de renda. Quero dizer... Alguma coisa que se ouviu nesse discurso permite esperar que algum dia apareça um Obama diferente do que se viu?

HAMMER: Olhe, francamente, discordo muito de alguns dos meus queridos amigos afro-americanos, que ainda creem que, no segundo mandato, Obama será presidente diferente. Acho que, se for reeleito, veremos mais do mesmo Obama. O momento perfeito para um discurso que incendiasse a base foi ontem, naquela fala do Estado da União. E não aconteceu. Sei disso, porque minha filha, por exemplo, trabalhou muitíssimo para eleger Obama em 2008. Falei com ela hoje, e com meu genro, e nenhum dos dois estava muito entusiasmado com o discurso. Essa era a base de Obama. São os jovens que votaram aos milhões e o elegeram. E não acho que Obama os tenha emocionado, com o discurso de ontem. Fiquei com a impressão de que Obama cantava pelo livro de salmos dos Republicanos. Perdi a conta de quantas vezes repetiu que regulações são péssimas. Acho que o que se viu foi mais rendição, mais um passo na direção do que para muitos seria o centro, mas que cada dia mais é mais à direita, à direita, à direita, mais a cada ano que passa. Acho que Obama teria de tentar incendiar a sua base, em ano eleitoral. Fiquei com a impressão de que Obama está dando por garantidos os votos de sua base. Obama nem falou, nenhuma vez, sobre Occupy Wall Street – e é o movimento que está varrendo todo o país. Aliás... não falou de 99%, mas falou de 98% (os que estão com os salários estagnados). Entendeu?

JAY: Talvez tenha redefinido a base. Talvez esteja jogando para a base. Só que não é a base que acredita que ainda seja a base de Obama.

HAMMER: Pode ser. Mas a base de Obama em 2008 foi fonte de energia e entusiasmo para a campanha. Se Obama redefiniu sua base... Escolheu caminho terrivelmente perigoso.

JAY: Obrigado pela entrevista, Frank.
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[1] Master Lock fabrica produtos de segurança, com sede em Milwaukee; há pouco tempo a empresa declarou que traria de volta os empregos que exportou para a China, se encontrasse condições de apoio econômico. Desde meados de 2010, a empresa ‘reimportou’ 100 postos de trabalho, que voltaram à fábrica em Milwaukee (25/1/2012, em http://www.fox11online.com/dpp/news/wisconsin/obama-mentions-master-lock-in-2012-state-of-the-union) [NTs].

Temos aqui um presidente que disse ser candidato pela paz, mas que apresenta aos eleitores, como trunfo eleitoral, o número de pessoas que matou e quantos mais está disposto a continuar matando.

Sobre “State of the Union” (SOTU), 2012Obama jura promover o império 25/1/2012, Glen Ford (vídeo e entrevista transcrita), The Real News Network, TRNNhttp://therealnews.com/t2/index.php?option=com_content&task=view&id=31&Itemid=74&jumival=7842
Glen Ford é conhecido radialista e comentarista político. Em 1977, Ford co-fundou, produziu e animou o programa “America's Black Forum” [Fórum Negro dos EUA], primeiro programa de entrevistas produzido por negros na televisão comercial dos EUA. Em 1987, Ford criou o primeiro programa nacional de Hip Hop, retransmitido para 65 rádios em todo o país. Em 2002, criou o programa Black Commentator e, em 2006, lançou Black Agenda Report. É também autor de The Big Lie: An Analysis of U.S. Media Coverage of the Grenada Invasion [A grande mentira: análise da cobertura, na mídia dos EUA, da invasão de Grenada].

PAUL JAY, editor sênior de TRNN: Você está em New York ou New Jersey, Glen?

GLEN FORD, diretor executivo de Black Agenda Report: New Jersey.

JAY: E qual é sua primeira impressão do discurso?

FORD: Bem, foi discurso sobre banqueiragem e império, porque são os únicos temas que existem para Barack Obama. O que não foi isso, foram jogos de palavras, fumaça e metáforas, nada que valha a pena comentar. Abriu e fechou o discurso com elogios à própria política externa. Temos aqui um presidente que disse ser candidato pela paz, mas que apresenta aos eleitores, como trunfo eleitoral, o número de pessoas que matou e quantos mais está disposto a continuar matando.

JAY: Surpreendeu-me muito, já na abertura do discurso, quando Obama falou sobre o Iraque e disse que a guerra do Iraque nos tornou mais seguros e mais respeitados... Não sei. Quero dizer, pode parecer que estou levantando a bola para você chutar, mas... O que você achou disso?

FORD: É até engraçado. George Bush deve ter-se sentido aliviado de todas as culpas. Obama reescreveu a história. Obama vangloriou-se de ter feito a guerra do Iraque, guerra tão nobre, e também se vangloriou de um suposto papel que teria sido dele, e também muito nobre, de estar retirando os soldados de lá. Obama sempre faz isso, quando fala para os Democratas. Todos sabemos que Obama fez de tudo, usou os seus generais e todos os seus diplomatas, até o último momento, para tentar manter uma presença forte dos militares dos EUA no Iraque. Pena que os iraquianos não colaboraram. Os iraquianos, com resistência armada, obrigaram George Bush a assinar um acordo de retirada. Agora, Obama está saindo, cumprindo aquele mesmo acordo, no qual os iraquianos nunca aceitaram introduzir nenhuma mudança. Por isso os EUA estão saindo de lá. E, acho eu, nem o governo Maliki teria conseguido manter-se no poder no Iraque, se tivesse tentado mudar o acordo.

Quero dizer: temos um presidente que quer ganhar pontos pelos dois lados. Obama, de fato, sempre faz isso. Por um lado, apresenta-se como o formidável imperialista que diz que os EUA são o “número 1”, e ‘todos conhecerão minha mão pesada’, ‘para que vocês se orgulhem do que são’. E por outro lado, diz ‘vocês sabem, estou realmente me esforçando para trazer os soldados de volta para casa, e, quando voltarem, o herói serei eu’.

JAY: Tive a impressão de que Obama não deu sinal de qualquer incômodo por os EUA estarem agindo com mão pesada – quero dizer, por estarem tentando influenciar os desdobramentos da rebelião e os rumos da resistência que se vê no mundo árabe. Obama falou de “valores americanos”, mas evidentemente estava falando de interesses americanos.

FORD: Não há dúvida alguma de que, com Barack Obama, os EUA voltaram à ofensiva. Os EUA são hoje tão agressivos militarmente no mundo, quanto eram antes de serem derrotados no Iraque. É a promessa que Obama fez aos militares. Se se analisassem suas palavras quando falou ao equivalente da Comissão de Relações Exteriores em Chicago, todos saberíamos que Obama prometeu devolver os EUA a uma posição em que possam usar impunemente a força em todo o mundo, sem arruinar as interrelações com os aliados. Basicamente, essa é a missão que Obama se autoatribuiu. Agora, se pavoneia, dizendo que fez o que prometeu fazer. De fato, em vários sentidos, ele fez. A OTAN está transformada em força expedicionária que já atacou sem qualquer provocação, e destruiu, um país africano soberano. E Barack Obama conseguiu safar-se sem sequer ter de admitir que os EUA estavam engajados na guerra na Líbia. Mas é tentar enganar todos todo o tempo.

JAY: E sobre afirmar os “valores americanos” na região, vê-se no Egito, onde o governo militar, como muitos já dizem, atacou os manifestantes com mais violência do que a própria polícia de Mubarak – e com pleno apoio do governo Obama.

FORD: De minha parte, não sei quais seriam esses “valores americanos”. Conheço os valores do mundo corporativo. Sei que se trata de encurralar mercados e criar monopólios, e sei que toda a política externa dos EUA só faz trabalhar a favor dessas corporações monopolísticas. Se se trata do que os EUA fazem, os valores americanos são esses, e só esses. A impressão que tenho é que Obama fala uma espécie de linguagem cifrada, que pouco significa mas é a linguagem da maioria dos norte-americanos. Acho que os americanos estão pouco preocupados – a maioria, com certeza, não está preocupada – com democracia em outros países. Menos ainda, se são países ‘não brancos’. A maioria dos norte-americanos pensa mais, sempre, no poder e no prestígio dos EUA.

JAY: Voltando ao que você disse, que Obama é sempre isso. No discurso, ele disse, literalmente, que continuaremos a ser “nação indispensável no mundo dos negócios”. E afirmou: “vou manter as coisas nessa trilha”. Sabemos o que isso significa. Por outro lado, se você procura a via alternativa... quero dizer: não sei se podemos eleger Newt Gingrich, que quer John Bolton como secretário de Estado. Parece que, por aqui, estamos forçados a escolher entre o neoliberalismo imperial e os sociopatas.

FORD: É. Você citou John Bolton, que significa abolir a diplomacia. E acho que ele pensa exatamente nesses termos. “Nação indispensável”... Que frase! Pense bem. Qualquer outro país que tivesse a arrogância de proclamar-se indispensável, seria imediatamente odiado por 99,9% dos americanos e dos demais povos do mundo. Os EUA dizem isso, assim, sem mais nem menos, como se fosse normal, evidente, que os EUA sejam indispensáveis. Claro que, se são a única nação indispensável, estão dizendo que todos os demais países do mundo são dispensáveis. Depois, os norte-americanos não entendem por que somos tão odiados em todo o mundo.

JAY: Se se pensa na situação no Irã, Obama acaba de cancelar exercícios militares agendados com Israel. Para alguns analistas, teria sido mensagem a Israel, de que os EUA não apoiaríamos qualquer tipo de ataque militar preventivo de Netanyahu contra o Irã. Sabe-se que há opiniões divergentes sobre atacar o Irã também dentro de Israel. Até ex-chefes de agências de inteligência de Israel já disseram que Netanyahu é temerário e capaz de agir por sua conta. E, se se considera a alternativa eleitoral nos EUA, os Republicanos estão cada vez mais próximos de Netanyahu ideologicamente, politicamente, e no que tenha a ver com o Irã. Um presidente Republicano não estaria mais próximo de atacar o Irã? Não haveria alguma melhor racionalidade no modo como Obama conduz as coisas, se se pensa na alternativa eleitoral, hoje?

FORD: Bem, para começar, não estou convencido de que o governo Obama deseje atacar o Irã. Obama está em campanha eleitoral. Ele sabe que atacar o Irã teria consequências econômicas catastróficas, as quais, por sua vez, podem custar-lhe a reeleição. Mas esses navios de guerra gigantes... Depois que são postos em movimento, é difícil fazê-los dar meia volta. Se o país for induzido a crer que exista alguma real ameaça existencial contra os EUA, será difícil abortar um ataque no último instante, sobretudo se, do seu lado, há gente como Netanyahu, com agenda própria. Claro que, de um momento em diante, pode tornar-se impossível fazer abortar um ataque militar – mesmo que você não quisesse atacar ninguém. O que quero dizer é que os EUA já criaram uma situação extremamente perigosa, que não sei se poderão controlar.

JAY: Volto ao meu ponto. Quando as pessoas estão resolvendo em quem votar nessa eleição – e falo de gente que deseja movimento político independente, que não quer ver-se como apêndice do Partido Democrata – e se se pensa na questão do Irã... Você acha que há alguma diferença essencial aí, entre o que poderá acontecer em mais quatro anos de Obama, e num governo dos Republicanos, no que tenha a ver com o Irã?

FORD: Acho que há aí diferentes níveis de competência. Claro que entregar a política exterior a John Bolton é completa estupidez. Mas, sim, concordo que não haja muitas diferenças de objetivos. Acho que Obama é dos políticos mais inteligentes que jamais chegou à presidência. É também dos mais espertos, dos mais ‘lisos’, e, sim, muitos espertos conseguem passar por inteligentes em algumas circunstâncias. Acho que pode estar havendo algum excesso de esperteza, se alguém pensa que pode bater tambores de guerra dia e noite sem parar, ‘porque’ poderá declarar a paz de repente, quando bem entender.

JAY: Muito obrigado pela entrevista ao The Real News Network

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