sábado, março 12, 2011

Temos milhões de jovens pobres que resistem nas periferias antropofagizando a cultura global, colaborando em redes! E o MinC agora volta a enxergar o direito autoral sob o prisma do copyright e a cultura como virtuosismo elitista” – diz o professor Cocco.



Giuseppe Cocco
Editada e enviada pelo pessoal da Vila Vudu

Para entender a relação entre relação entre capitalismo contemporâneo e capitalismo mafioso no Brasil, Giuseppe Cocco, na entrevista a seguir, concedida por telefone e email à IHU On-Line, falou da ocupação do Complexo do Alemão em dezembro de 2010. Na mesma entrevista, o prof. Cocco analisa o Pronasci e a atuação do Ministério da Cultura nesses primeiros meses de novo governo. 

“Na era do Twitter, do Facebook e do Google, voltamos a um conceito restrito de cultura e, pior, a um conceito de cultura proprietária da época industrial. É estarrecedor! Temos milhões de jovens pobres que resistem nas periferias antropofagizando a cultura global, colaborando em redes! E o MinC agora volta a enxergar o direito autoral sob o prisma do copyright e a cultura como virtuosismo elitista” – diz o professor Cocco.

Giuseppe Cocco possui graduação em ciências políticas pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em ciências tecnológicas e sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou com Antonio Negri o livro Global: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Ed. Record, 2005). Também é autor de Mundobraz - O Devir do Mundo no Brasil e o Brasil no Devir do Mundo.

Confira a ENTREVISTA.

IHU On-Line – Para o senhor, o que a ocupação do Complexo do Alemão, em dezembro de 2010, revela sobre relação entre capitalismo e máfia no Brasil?

Giuseppe Cocco – Podemos apreender a recente ocupação do Complexo do Alemão de dois pontos de vista: um primeiro, de mais curto prazo, diz respeito ao plano de desenvolvimento das políticas de segurança no Rio de Janeiro, com as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs); um segundo, de mais longo alcance, diz respeito à transformação das relações entre capitalismo mafioso e capitalismo tout court. 

Do ponto de vista das UPPs, tratou-se de retrocesso. Do ponto de vista da “guerra do Rio”, trata-se de uma batalha que marca uma aceleração das mudanças nas relações entre capitalismo mafioso e capitalismo “cognitivo”. O retrocesso está no fato que a ocupação do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro não se realizou no âmbito das diretrizes do Pronasci, ou seja, da integração de “segurança” e “cidadania”. 

Ao passo que o Pronasci, concebido e implementado pelo então ministro Tarso Genro, articula combate à violência e reformulação da própria polícia (não por acaso, as UPPs são unidades recém formadas de jovens policiais), a ocupação do Complexo do Alemão foi feita pelas atuais forças de polícia e, pior, pelas Forças Armadas: a pacificação tornou-se uma militarização e o Ministro da Defesa ocupou o lugar que devia ser do Ministro da Justiça. 

“A violência nas favelas é o fruto de um monopólio
absoluto do uso da força pelo Estado em sua relação
neoescravagista com os pobres”

De maneira mais geral, voltam à tona os estragos incalculáveis, inclusive na retórica de esquerda, da adesão superficial à teoria política liberal, seja a do Leviatã hobbesiano ou a do “Contrato” de Rousseau. Diz-se que o problema da violência nas favelas pode ser resolvido pela imposição do monopólio do uso da força pelo Estado, quando, afinal, se trata do contrário disso: a violência nas favelas é fruto de um monopólio absoluto do uso da força pelo Estado em sua relação neoescravagista com os pobres. 

Mas o Estado não consegue dar a essa tremenda efetividade, uma legitimidade estável nem consegue impor, sequer, a “paz do medo”. E toda a política de segurança – até a mais bem intencionada – encalha exatamente aí, nesse ponto. Isso, porque a base da corrupção generalizada da polícia (quer dizer: corrupção do Estado) está exatamente no direito de facto que os policiais têm, de matar e torturar os pobres! O Estado sempre esteve presente nesses territórios na sua forma mais truculenta, para matar os pobres. Essa é a base fundamental de todo processo de corrupção. 

Unidade de Polícia Pacificadora
Os elementos positivos do Pronasci estão nos aspectos que afirmam que a política de segurança é uma política de cidadania e que precisamos de paz da cidadania, não de alguma paz do medo. Assim, no Rio de Janeiro, o Pronasci com seu programa dos “Territórios da Paz”, possibilitou a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), quer dizer de uma nova geração e de novas unidades de policiais voltados para a comunidade. 

A ocupação do Complexo do Alemão, na “guerra do Rio” é um episódio do processo da reorganização do território – determinada pela passagem às formas de acumulação próprias do capitalismo cognitivo. 

Por um lado, com o “pastiche midiático” denunciado por Luiz Eduardo Soares, construiu-se a imagem falsa de uma guerra do bem contra o mal, qualquer coisa, afinal, que permitisse extravasar o ódio que a classe média sente dos pobres. Por outro lado, por trás daquela falsificação, estava um processo de reorganização do controle territorial, reorganização que, até agora, estava sendo conduzida pelos comandos do narcotráfico. 

A situação chegou ao ponto a que chegou, porque o controle militar exercido pelos comandos do tráfico sobre o varejo das drogas esgotou-se economicamente – do ponto de vista do capital. Se o território das redes sociais está se tornando o espaço de organização da acumulação em geral, esse território não pode ser deixado entregue a um estado gerido por criminosos com poder militar, porque esse capitalismo mafioso escapa ao controle do próprio capital. Dado que o mundo já entrou em fase de acumulação de capital cognitivo, o que vemos lá é uma reorganização das relações internas do capitalismo: o capitalismo mafioso perde espaço para o capitalismo cognitivo. 

IHU On-Line – Dentro da ideia de capitalismo cognitivo, que mudanças se revelaram nessa guerra que o Rio de Janeiro vivencia?

Giuseppe Cocco – A política de segurança atual não tem como objetivo acabar com o narcotráfico. Por isso, é uma grande hipocrisia dizer que o narcotráfico foi vencido. O fato novo é outro: os espaços gigantescos onde os pobres vivem e produzem tornaram-se grandes jazidas de acumulação para o capitalismo cognitivo, uma verdadeira nova fronteira. Na década de 1990, tivemos dois primeiros momentos de inflexão nessa direção, que já anunciavam a tendência ao esgotamento do modelo econômico e militar implementado pelos comandos do narcotráfico. 

O primeiro momento foi o da onda de privatizações dos serviços públicos (que amplificou o peso e o papel das concessionárias privadas de serviços públicos, em particular dos transportes coletivos). Com isso, as privatizações foram se sobrepondo à gestão privada do espaço público que, no Brasil, sempre se manteve extremamente forte, muito mais do que nas economias centrais, mesmo nas economias liberais. 

Um segundo momento (que na realidade não é sequencial mas contemporâneo ao primeiro) é quando emergem as milícias. Setores da polícia e forças de segurança passaram a usar o poder que tradicionalmente lhe era (e continua sendo) entregue, poder de vida e morte sobre os pobres, para controlar diretamente as dimensões produtivas do território dessas populações. Então, as milícias expulsam os comandos do narcotráfico (pelo menos como organização hierarquizada e estruturada) e, às vezes, expulsam o tráfico de drogas. Elas tomam o controle da região e passam a controlar todos os tipos de serviços, a começar pelos “impostos”. 

As milícias cobram “impostos“ em troca da paz que elas mesmas ameaçam. Esse é um mecanismo tipicamente mafioso de vender a proteção. 

E, em seguida, elas exploraram o transporte coletivo, as vendas de botijões de gás, a pirataria de CDs e DVDs, os gatos de eletricidade e o furto do sinal da televisão e internet a cabo (o "gatonet" ou "gatovelox"). Portanto, as milícias se tornaram, junto com a privatização dos serviços públicos, o outro lado da mesma corrida em direção ao capitalismo cognitivo. 

O capitalismo cognitivo não é apenas o Google e a internet. O capitalismo cognitivo é essa dimensão de uma produção que se torna serviço e que encontra na metrópole o espaço produtivo de uma circulação produtiva. Então, a do Alemão não foi nem uma batalha “final” nem uma luta do “bem contra o mal”, mas um episódio importante na reorganização das relações entre capitalismo mafioso (direta e explicitamente ligado à acumulação primitiva) e capitalismo cognitivo.

Casas Bahia - consumo popular
Uma reorganização acelerada pelo fato que as políticas sociais do governo Lula tornaram esses territórios dos pobres, tradicionalmente entregues à exclusão e ao narcotráfico, na nova fronteira de expansão do capitalismo rumo à conquista daquelas camadas sociais que os marqueteiros definiram como “classe C”. Os pobres passaram a ter poder de compra e as favelas se tornaram territórios de consumo e, por consequência, atrativas para a acumulação. 

Outro fator de aceleração é a agenda de Megaeventos do Rio de Janeiro. A cidade sediará, em 2011, as Olimpíadas Militares, em 2012 a cúpula do Rio+20, em 2014 a parte carioca da Copa do Mundo de Futebol e, enfim, os jogos Olímpicos de 2016. Tudo isso reconfigura o espaço metropolitano carioca e acelera a corrida para uma acumulação primitiva que passa pelo controle dos territórios, ou seja, dos fluxos que desenham as linhas de acumulação cognitiva: serviços, atividades de produção do intangível, trabalho imaterial, redes de telefonia e internet, transportes, moda, marketing, design, cultura etc. 

Então, aquela do Alemão é fundamentalmente uma batalha dentro de uma reconfiguração social e produtiva da chamada “classe C”. O verdadeiro desafio é saber se continuaremos a ficar presos do discurso sociológico da classe C (da “nova classe média”) e vamos assim apoiar, de maneira cega e consensual, o regime discursivo da guerra do bem contra o mal (ou seja, da guerra contra os pobres), ou se conseguiremos desenvolver novos conceitos e novas análises da composição da classe, de um novo tipo de trabalho, um trabalho que investe, como já dissemos, a vida como um todo, na circulação produtiva dos territórios metropolitanos. 

Para criticar esses embates, é indispensável produzir uma análise de classe do trabalho. Quero dizer: é preciso construir um ponto de vista adequado.

IHU On-Line – Como mudaram as relações entre capitalismo mafioso e capitalismo? 

Giuseppe Cocco – No capitalismo industrial, o capitalismo mafioso se torna marginal e é relegado à esfera do consumo. Isso porque a própria dinâmica do “desenvolvimento” industrial torna “primitiva” a acumulação mafiosa, nascida num tempo já quase esquecido que gerou as formas que conhecemos da propriedade privada: ou ela nasce do acaso (da herança) ou ela nasce da acumulação (industrial). 

Hoje, ricos e pobres já não são resultado do roubo (os ricos) e da derrota ante a lei da força (os pobres); ricos e pobres hoje são resultado de condições sociais determinadas por processos sociais e legais, assentados na força da lei. 

A apropriação direta e violenta dos bens, da terra, dos meios de produção e do trabalho dos outros (a escravidão e a servidão) é substituída pela dinâmica da inovação tecnológica. A acumulação mafiosa se torna marginal e podemos até dizer que a diferença entre desenvolvimento e subdesenvolvimento pode ser pensada em termos da presença explícita (ou não) de formas de acumulação primitiva: um país será tanto mais subdesenvolvido quanto mais a acumulação primitiva (ou seja, a acumulação mafiosa), seja explicitamente atuante em sua dinâmica econômica e social. 

Nesse marco, o capitalismo mafioso fica limitado à esfera do consumo e aparece como uma das formas de rentismo parasitário, que disputa o que já foi produzido e valorizado. Não por acaso, o rentismo parasitário é duramente ironizado por Keynes. 

O capitalismo cognitivo, diferentemente do capitalismo industrial, vive da apropriação direta do que é produzido em comum nas redes sociais (nas metrópoles, onde se geram as significações – cultura – e se espalham os estilhaços do trabalho imaterial). A relação entre valorização e acumulação é invertida: a valorização acontece nas relações sociais (na cooperação social); e a acumulação vem depois, como apropriação parasitária que renova e atualiza, continuamente, a acumulação primitiva.

Por isso as privatizações são apresentadas como necessárias e importantíssimas; por isso, também, todos os conflitos sobre as patentes e o copyright. 

Ora, sabemos que no Brasil a relação entre o capitalismo mafioso (acumulação primitiva) e capitalismo industrial nunca foi resolvida, no sentido de que a própria acumulação capitalista sempre aparece como acumulação mafiosa, numa relação direta com a economia criminal. Aqui a corrida para o capitalismo cognitivo explicita suas novas relações com o capitalismo mafioso. A mesma corrida aparece tanto sob a forma de milícias, como sob a forma de privatizações: “privataria” e “pirataria” andam juntinhas. 

Porque o Brasil nunca conseguiu tornar primitiva a acumulação de tipo ilegal, a nova ‘mafiosidade’ do capitalismo cognitivo aparece de maneira mais nítida.

IHU On-Line – A partir dessa perspectiva da relação entre violência e capitalismo, quais são as novas batalhas da guerra no Rio de Janeiro?

Giuseppe Cocco – As batalhas que vemos hoje são as batalhas para desmilitarizar o narcotráfico, pois funcionamento econômico do narcotráfico tornou-se obsoleto e não pode ser tolerado. As novas batalhas à frente são as batalhas da “classe C”. 

Elas têm como teatro a emergência dos pobres como sujeito econômico e/ou político e a questão da “paz” está atrelada às alternativas que atravessam esse processo. Por um lado, tanto o capitalismo mafioso quanto o capitalismo cognitivo visam a homologar a nova classe média (“C”) como fronteira constituída por uma enorme jazida de novos consumidores; nos dois casos, sem reconhecer as dimensões produtivas da nova classe média. 

Aqui, a disputa entre as duas formas de acumulação apenas aponta para o fato que o capitalismo cognitivo é necessariamente mafioso: seja quando aparece na forma da milícia (com o monopólio que têm (é monopólio estatal, mas é monopólio ilegal) do uso da força; seja quando aparece na forma das decisões de uma agência reguladora sobre compartilhamento de sinal wireless de internet. Há uma política estatal (legal, porém ilegítima) de produzir escassez (escassez de sinal, nesse exemplo), como base para que o capitalismo renove e mantenha uma acumulação que é, ao mesmo tempo, mafiosa e cognitiva (e não tem mais legitimidade técnica). 

É a mesma coisa que acontece com o fechamento, por uma delegada da polícia civil, da Xerox [empresa fotocopiadora] da faculdade de Serviços Social da UFRJ (no final de 2010). A aplicação truculenta do copyright visa às alunas pobres e do subúrbio e ao seu direito ao saber; não visa os jovens da PUC. O copyright se reafirma contra o compartilhamento e para subordinar os pobres. Os filhos da elite nem preocupam nem interessam a quem se preocupa e interessa-se pelo copyright. A mesma delegada, não por acaso, aparecia na TV comentando as operações do Alemão. 

É a mesma guerra, com batalhas diferentes. O que está em jogo é essa apropriação capitalista dos pobres como consumidores a serem explorados, diante da possibilidade que eles se constituam como sujeitos capazes de afirmar politicamente sua riqueza. 

Nos 8 anos de governo Lula, o MinC de Gilberto Gil, Juca Ferreira e Célio Turino tinha começado a trabalhar nesse segundo sentido, de maneira muito forte e expressiva, com grande potencial para a reformulação das políticas públicas como um todo. É triste constatar que o Setor Cultural do PT (e setores do governo da Dilma) não entenderam literalmente nada e, desestruturando esse trabalho, entregaram de volta o MinC à Industria Cultural (aquela que precisa da mamata estatal para ser “criativa”) e aos interesses corporativos dos “artistas” assustados diante da mutação que o novo contexto tecnológico e do trabalho anuncia e proporciona: a estética não é mais definida pela transcendência dos poucos (curadores, marchands, medalhões da “arte” espetáculo), mas pela imanência da multidão que produz e cria em rede, de maneira colaborativa. 

As periferias querem o reconhecimento de sua estética e criação – como podemos ler no belo livro de Marcus Faustini (Guia Afetivo da Periferia, Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2010) – e não o acesso à suposta criação culta dos artistas do Leblon. Essas redes de criação e trabalho são metropolitanas, sociais e técnicas ao mesmo tempo. Elas desenham os territórios de uma circulação que mistura produção e reprodução, tempo livre e tempo de trabalho. De repente, a questão da guerra e da “paz” aparece de maneira nova. Hoje em dia, é preciso um espaço metropolitano de paz para que a cooperação produtiva aconteça dentro do território. 

Antes, esse território de paz acontecia dentro dos muros da fábrica, dos escritórios, das empresas e de seu copyright. Hoje, as empresas, para funcionarem, precisam da metrópole e de seus serviços terceirizados. 

Do ponto de vista dos pobres, ou seja, da composição de classe do trabalho metropolitano, precisamos articular uma outra perspectiva, aquela que afirma (e constitui) a paz como condição e resultado da cooperação social. Mas essa paz não é aquela do medo, mas a paz dos cidadãos. Isso só pode acontecer pelo envolvimento dos pobres nos territórios onde eles vivem e trabalham, transformando politicamente essa fusão de vida e trabalho que caracteriza as novas formas de acumulação capitalista. 

Vida e o trabalho se unem diretamente e, portanto, precisam formar suas próprias milícias. As UPPs, inspiradas na Polícia Comunitária, fizeram um passo nessa direção. Mas precisamos avançar muito mais. Vejam bem, estou na realidade falando da reforma da polícia, para que ela seja uma milícia cidadã: ela não pode ser “técnica”. Somente a participação dos cidadãos também nas questões de segurança, por exemplo, passando a eleger, em eleições democráticas, os delegados e os comandantes das polícias irá nesse sentido. 

O que o Rio de Janeiro precisa não é eliminar o conflito, mas organizá-lo para que os moradores se organizem, participem, manifestem as suas reivindicações sobre questões essenciais como a moradia, o ensino, a distribuição de renda, o transporte... Só o movimento social, só o conflito organizado dentro de um espaço democrático, só a emergência desses movimentos é que irão permitir a transformação da cidade. Então, o verdadeiro desafio das próximas batalhas é que a guerra não continue a ser o horizonte da destruição do espaço público e a paz do comum encontre sujeitos capazes de constituí-la. Por um lado, a “classe C”, pelo outro, a nova composição de classe do trabalho metropolitano.

De toda maneira, os únicos territórios da paz que funcionarão serão aqueles que saberão construir instituições do comum. As diferentes instâncias de governo ainda têm uma visão extremamente tradicional e inadequada. Como dissemos, no MinC do governo Dilma, a cultura volta a ser vista como enfeite (proporcionado por “artistas” virtuosos) ou como indústria cultural (uma múmia “nacional” revitalizada pela importação do chavão britânico de “indústria criativa”). 

Na era do Twitter, do Facebook e do Google, voltamos a um conceito restrito de cultura e, pior, a um conceito de “cultura proprietária” da época industrial. É estarrecedor! 

Temos milhões de jovens pobres que resistem nas periferias antropofagizando a cultura global (o funk, o tecnobrega, o rap cantado em guarani), colaborando em redes. E o MinC agora volta a enxergar o direito autoral sob o prisma do copyright, e a cultura como virtuosismo elitista. Assim, reduz-se a criação à indústria (criativa) e a criação (social) à pirataria. Para os jovens das periferias e das favelas, só é oferecido o horizonte do emprego e do trabalho subordinado e, no máximo, um “vale cultura” para assistir à medíocre produção “nacional” cujas bases tecnológicas e clichês são importados. 

IHU On-Line – Por que o senhor se refere ao narcotráfico no Brasil a partir do fordismo?

Giuseppe Cocco – Falar da dimensão fordista do narcotráfico no Rio de Janeiro significa se referir ao papel por ele desempenhado diante da ausência de pleno emprego industrial e, pois, da falta de uma relação salarial capaz de concentrar em suas instituições o conflito social entre capital e trabalho e sua mediação. O narcotráfico acabou ocupando o espaço social da exclusão. 

Nesse sentido o narcotráfico é uma figura do fordismo em uma sociedade não fordista, tendo se tornado, para os pobres das favelas, no mecanismo de produção de elementos paradoxais de proteção social. O narcotráfico é fordista sem fordismo: pois é nos espaços por ele controlado que se multiplicaram formas fracas e mínimas de welfare urbano: gatos, autoconstrução do espaço urbano e até algumas formas de previdência. 

Atualmente, os serviços não são mais elementos de reprodução das forças de trabalho, eles são as próprias redes de produção e acumulação capitalistas. As cidades das Olimpíadas precisam fazer uma gestão direita e integrada dos serviços e é aí que o capital encontra o fluxo de acumulação de valor. Por isso que há uma transformação. A primeira transformação é o fato de que a polícia passou a fazer a gestão do território, na forma das milícias, a partir da gestão dos serviços. Todo mundo, com isso, passou a ser incluído, mas incluído pelas condições impostas pela milícia. Agora, o próprio Estado assume o papel de desbravador do capitalismo cognitivo. 

Não por acaso, antes das Forças Armadas, foi o Banco Santander que abriu uma agência bancária no Alemão e a propaganda dessa iniciativa teve como sua figura central Junior, do AfroReggae. No mesmo sentido, a Nextel mobiliza em suas propagandas de rádio-telefones MV-Bill da CUFA. No dia depois da “ocupação”, o Rio de Janeiro recebia o “grau de investimento” e as operadores de telefonia e internet entravam para “regularizar” os contratos (uma vez eliminados os gatos).

IHU On-Line – Então, o capitalismo cognitivo implica também um capitalismo mafioso?

Giuseppe Cocco – No capitalismo industrial a dimensão mafiosa do capital era jogada para o passado, onde houve uma acumulação ... primitiva. Hoje, o capitalismo cognitivo renova diariamente suas dimensões mafiosas. Por isso ele pode apresentar-se nas formas de uma empresa privada de concessionária de serviços públicos ou das milícias. No Rio de Janeiro isso aparece de maneira ainda mais nítida na medida em que aqui o capitalismo nunca chegou a fazer esquecer a sua face primitiva. Mas os mecanismos são novos. Vejam o filme “A Rede Social”, sobre o criador do Facebook. O roteiro do filme é de uma banalidade espantosa. 

A succes story é uma série de episódios de brigas judiciais sobre quem é o proprietário da “ideia Facebook”. E a solução judiciária é impossível na medida em que a “ideia” é fruto da socialização, do trabalho colaborativo em rede. É impossível dizer de quem é uma ideia e ainda menos de quem é a riqueza de informações, imagens, afetos dos quais o Facebook ou as redes de telefonia celular são o teatro. Mas isso não impede que um tribunal, ou uma “agência reguladora” de decidir.

O problema está em que a decisão que estabelece um direito autoral ou que penaliza que se compartilhe com o vizinho uma frequência de acesso wireless à internet é duplamente arbitrária: porque o capitalismo cognitivo explora nossas próprias relações sociais; porque, dessa maneira, cria-se uma escassez artificial diante das dimensões expansivas e desmedidas da riqueza produzida em rede.

Estamos exatamente em uma sociedade de trabalho em rede, de trabalho colaborativo que vem do comum e produz outro comum, em espiral! Por isso, volto a enfatizar, a relação entre a guerra do Rio e a virada neoconservadora do Ministério da Cultura. 

O governo não apreendeu a importância que tem: 1) a dimensão ampliada da cultura; 2) a dimensão urbana da cultura metropolitana; e 3) a necessidade de vermos a economia do ponto de vista da cultura e não a cultura do ponto de vista da economia. As políticas públicas da paz têm que ser políticas da vida, biopolíticas: reconhecimento das dimensões produtivas da vida. Não se trata de erradicar a pobreza, mas reconhecer a riqueza dos pobres. As políticas do MinC na gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira foram tão importantes quanto as do Bolsa Família.

IHU On-Line – Os conceitos de Império e Multidão se aplicam a essa guerra no Rio de Janeiro?

Giuseppe Cocco – O conceito de Império funciona perfeitamente. A definição básica de Império é “um não lugar sem fora. Ou seja, no Império, você pode encontrar elementos de periferias e de centro em qualquer lugar. E o que encontramos exatamente no Rio de Janeiro são os elementos de periferia e de centro que se misturam e parecem não ter fronteiras. Sem fronteiras, as operações de polícias parecem com operações de guerra, e as operações do Exército (no Rio bem como no Haiti) se parecem as de polícia. Não dá mais para se saber onde acaba a polícia e onde começa o Exército, onde começa o “dentro” e o “fora”.

O conceito de multidão também tem tudo a ver, pois o desafio de uma política dos pobres implica exatamente uma recomposição de classe que não passa mais pelos processos de homogeneização produzidos pela relação salarial. A recomposição de classe hoje depende da capacidade que teremos de combater a ideologia capitalista e consumista da “classe C”, para afirmarmos as lutas dos pobres que são multidão de singularidades que cooperam entre si, sem dissolver as diferenças, mantendo-se singulares!
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