Não se pretende com a advertência despertar a xenofobia, que não é e nunca foi componente da cultura brasileira. Ao contrário, esta se distingue como paradigma de tolerância e de respeito à diversidade. Mas não se pode deixar de registrar que a ausência de uma política nacional do livro didático — que o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores estão a dever ao País — mantém desguarnecido um flanco que país algum, que seja cioso de sua soberania e de seus interesse nacionais, mantém aberto, ou mais propriamente escancarado, como ocorre no caso brasileiro.
Na aparência, pelo menos, não nos encontramos em situação de já não reconhecer a bandeira nacional. Ainda não vivenciamos o desconforto de presenciar em relação ao Brasil a troca de farpas diplomáticas entre o rei Juan Carlos, da Espanha, e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a propósito de visões divergentes — a do dominador e a do dominado —, sobre a herança colonial. Mas, em princípio, a exemplo do que já ocorreu em outros países, nada impede que, num contexto em que os interesses do mercado desregulado passem a prevalecer sobre as injunções do contexto cultural nacional, o controle sobre o conteúdo do livro didático venha a ser exercido de fora para dentro.
Lembre-se a propósito da epopéia, de má memória, do “Imperial Curriculum” (curriculum imperial), expressão utilizada na literatura acadêmica para caracterizar a empreitada de deformação e malformação da percepção e visão de mundo dos povos colonizados, pelos colonizadores britânicos, mediante o controle sobre a literatura didática posta à disposição dos alunos nos países subjugados. Por meio da evangelização, da colonização ou da alfabetização em massa, os modelos nacionais têm sido exportados e difundidos no exterior, na linha de menor resistência — e esse processo tem-se acentuado ainda mais com a globalização. Por isso, de uns dez anos para cá, as questões relativas à utilização, à tradução, à adaptação de livros didáticos estrangeiros passaram a se constituir em objeto de numerosos estudos, na Grécia, Itália, Argentina, Chile, México, Canadá e em muitos outros países.
Compreende-se o interesse das multinacionais pelo mercado brasileiro de livros didáticos: o programa do governo federal de compras de livros didáticos é o maior do mundo. Maior filão do mercado editorial, segundo informações do MEC, 75% das vendas de livros didáticos ao governo são disputadas por apenas quatro empresas (Moderna, FTD, Ática e Saraiva), que dividiram entre si três quartos, ou R$ 559,8 milhões dos R$ 746,4 milhões gastos pelo Ministério da Educação com material didático fornecido aos municípios em 2008. Esse valor é 43% superior aos R$ 523 milhões despendidos em 2007, o que sugere que, além de o País contar com o maior programa de compras de livros didáticos, esse segmento do mercado editorial brasileiro é também o que mais cresce no mundo.
Para abocanhar partes crescentes desse bolo, as editoras em geral não medem esforços, éticos ou condenáveis, para influenciar os responsáveis, direta e indiretamente, pelas compras, da mesma forma como procedem laboratórios farmacêuticos junto à classe médica. Para contê-las em seus ímpetos mercantis, o MEC elaborou recentemente uma cartilha de boas maneiras, para uso das editoras junto aos professores e às escolas. Contudo, a iniciativa, que alcançou eficácia relativa, não chegou a debelar o mal. Tanto assim que um dos motivos admitidos reservadamente por um diretor da Abril Educação, para sair do setor, é que a empresa não se encontra à altura da agressividade da concorrência, com a distribuição de automóveis, viagens internacionais e outros “mimos” para professores, diretores de escolas e autoridades da área de educação. E se o leitor duvidar de tal agressividade, sugiro que abra o site da Fundación Santillana, por exemplo, e constate a proximidade que a empresa espanhola mantém historicamente de ministros brasileiros da Educação, chefes de departamentos do MEC, secretários estaduais da educação e secretários municipais, caracterizando um dos lobbies mais bem incrustados no aparelho de estado brasileiro, do mesmo modo como procede em todo o mundo ibero-americano.
É dessa forma que se criam redes de relações sociais entre políticos, funcionários públicos e empresas (e seus tentáculos, como fundações, ONGs, etc.) que influenciam e conformam o pensamento político sobre a educação. Nesse tipo de rede, quase nunca é clara a distinção entre o que é assessoria, consultoria, apoio, patrocínio ou atividade de lobby. É sob esse estado ambíguo que o ex-ministro da Educação do governo FHC, Paulo Renato Souza, ao deixar a sua cadeira no Ministério, tomou imediatamente assento na Santillana, como “consultor”, assim como Mônica Messenberg, braço direito de Paulo Renato no MEC na condição de executiva responsável pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, passou a ocupar alto cargo executivo na mesma empresa, como diretora de assuntos institucionais (leia-se: lobby junto a governos, secretarias estaduais e municipais de Educação) da editora Moderna (Santillana).
O interesse pelo livro didático cresce à medida em que esse mercado transpõe fronteiras sob o impulso da acumulação do capital a partir dos países centrais e a leniência de países periféricos, ao mesmo tempo em que, no campo ideológico, acirra-se a disputa conceitual entre educação como mercadoria e educação como formação integral sob a responsabilidade do Estado. Nesse contexto, é de destacar que os livros escolares assumem múltiplas funções associados aos interesse estratégicos da soberania nacional. De acordo com Alain Choppin, especialista na história dos livros didáticos, a pesquisa mostra que os livros didáticos exercem quatro funções essenciais. São elas:
1. Função referencial, também chamada de curricular ou programática, que se constitui no suporte dos conteúdos educativos, depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social assume como necessários para transmitir às novas gerações.
A importância de tais funções, no contexto da autonomia nacional, sobressai ainda mais, ao se constatar a existência de iniciativas do mercado que visam a subvertê-las. No que se constitui na mais recente ameaça ao processo independente e democrático de seleção e escolha do livro didático, sob a coordenação do MEC, surgem grupos educacionais — empresas que exploram a educação privada e que mais recentemente decidiram por fazer incursões mercantis também no setor público — para a venda de material didático diretamente às prefeituras, secretários municipais da educação, funcionários públicos, diretores de escola e professores. Trata-se de um conluio entre autoridades estaduais e municipais, de um lado, e empresas de material escolar, de outro, que tem por objetivo neutralizar e reverter na prática as diretrizes e normas sobre o livro didático estabelecidas pelo MEC, trazendo de volta o tráfico de influência, a ausência de controle de qualidade e eventual corrupção no processo de compra.
Como expediente para escapar ao controle do MEC, autoridades municipais e estaduais entendem-se diretamente na negociação de “apostilas” e “material pedagógico” - eufemismos utilizados para dispensar o governo federal de prover às escolas os livros didáticos avaliados pelos especialistas. A compra desse material por parte das prefeituras caracteriza um dispêndio desnecessário, já que o MEC distribui os livros gratuitamente. O argumento utilizado pelos prefeitos para justificar a realização do negócio diretamente junto às editoras é que o material didático adquirido representa um “diferencial de qualidade”. Segundo informações divulgadas pela imprensa, o negócio do “diferencial de qualidade” entre administrações municipais e grandes editoras tem-se revelado como um dos mais rentáveis e auspiciosos, apresentando resultados financeiros no balanço das empresas, que, a cada ano, chegam a 50% acima dos do ano anterior. Assim, entra pela porta dos fundos o que o MEC nos últimos anos havia conseguido expelir pela porta da frente.
É sabido que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local. Os autores e editoras de livros didáticos não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade no processo de formação das novas gerações, provendo dela eventualmente uma imagem deformada, esquematizada, maniqueísta: as ações contrárias à moral são punidas exemplarmente; e os conflitos sociais, os atos delituosos ou a violência cotidiana são silenciados.
Não é suficiente, por isso, deter-se nas questões que se referem aos autores e ao que eles escrevem; é necessário também prestar atenção àquilo que eles silenciam, pois se o livro didático é um espelho, pode ser também uma tela, observa Alain Choppin.
Sem ser especialista em políticas educacionais, ocorre-me uma sugestão, no plano do bom senso, que certamente iria contribuir para dirimir o qüiproquó recorrente entre independência na elaboração dos conteúdos e interesses do mercado. A sugestão não é original, pois já foi adotada pela França. As instituições públicas de ensino superior, em parceria com as entidades do professorado e autores de livros didáticos poderiam assumir a responsabilidade pela elaboração dos conteúdos que, uma vez produzidos, seriam colocados pelo governo em licitação pública para impressão, ou seja, para confecção física do livro. Dessa forma, a participação do mercado nos programas do livro didático seria restrita à sua fase industrial, propriamente dita, deixando-se para o Estado a responsabilidade que lhe cabe na defesa e afirmação da cultura como componente da soberania nacional.
Como afirmei neste espaço anteriormente, tudo isso são elementos suficientes para justificar a necessidade de se promover um debate nacional sobre o papel do Estado na definição de uma política nacional do livro didático.
Rui Falcão, advogado e jornalista, 64 anos, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.