segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Um fim previsto*


Uri Avnery
10/2/2008

Já se disse com muita razão que “o tolo aprende por experiência própria. O inteligente aprende pela experiência dos outros.” E, pode-se acrescentar, “o idiota nunca aprende, nem por experiência própria”.

Assim sendo, o que se poderia aprender de um livro que mostre que Israel não está aprendendo nem pela experiência?

Tudo isto, de introdução, para recomendar que todos leiam “Violent Politics”[1], de William Polk, livro que acaba de ser lançado nos EUA.

Polk estava na Palestina em 1946, no auge da luta contra a ocupação inglesa; desde então, estuda a história das guerras de libertação. Em “Violent Politics”, em menos de 300 páginas, ele compara vários movimentos insurgentes, da Revolução Americana às guerras no Afeganistão. Os anos que trabalhou no serviço de planejamento do Departamento de Estado aproximaram-no do conflito Israel-Palestina. Suas conclusões são muito iluminadoras.

TENHO interesse especial neste tema. Quando me alistei no Irgun, com 15 anos, mandaram-me ler sobre guerras de libertação, sobretudo na Polônia e Irlanda. Li diligentemente tudo que me caiu nas mãos e desde então acompanho os movimentos insurgentes, as lutas de libertação e as guerras de guerrilha pelo mundo, na Malásia, no Quênia, no Iêmen do Sul, na África do Sul, no Afeganistão, no Curdistão, no Vietnã e outras. Envolvi-me de modo especial com a guerra de libertação da Argélia.

Quando eu estava no Irgun, trabalhava no escritório de um advogado formado em Oxford. Um alto oficial do governo inglês do Mandato era nosso cliente, homem inteligente, agradável e engraçado. Lembro-me de ter pensado, um dia, ao encontrá-lo: Como é possível que gente tão inteligente dirija uma política tão estúpida?

Desde então, quanto mais aprendo sobre outros movimentos insurgentes, mais cresce em mim o mesmo espanto. É possível que a própria situação de ocupação e de resistência condene os ocupantes ao comportamento mais estúpido, e converta em idiotas até os mais inteligentes?

Há alguns anos, a rede BBC de televisão exibiu uma longa série sobre o processo de independência de ex-colônias britânicas, da Índia às ilhas do Caribe. Um episódio sobre cada colônia, com longas entrevistas com ex-administradores coloniais, oficiais dos exércitos de ocupação, combatentes da resistência e de milícias de libertação e outras testemunhas e atores dos eventos. Entrevistas interessantíssimas e muito deprimentes.

Deprimentes – porque cada novo episódio era exata repetição do anterior. Todos os dirigentes da ocupação de todas as colônias repetiam exatamente os mesmos erros do episódio anterior. Acalentavam as mesmas ilusões e amargavam as mesmas derrotas. Ninguém aprendeu lição alguma com os erros de quem errara antes, mesmo no caso de as mesmas forças de ocupação aparecerem em mais de um episódio – como aconteceu com os oficiais ingleses que foram transferidos da Palestina para o Quênia.

O livro de Polk é compacto. Nele narram-se e comparam-se os principais movimentos insurgentes dos últimos 200 anos; da comparação o autor extrai as conclusões óbvias.


CADA MOVIMENTO INSURGENTE é, é claro, único e diferente de todos os outros, porque os cenários são diferentes, como são diferentes a cultura dos ocupantes e dos ocupados. Os britânicos são diferentes dos holandeses e ambos são diferentes dos franceses. George Washington é diferente de Tito, Ho Chi Minh é diferente de Yasser Arafat. Mesmo assim, apesar das diferenças, todas as lutas de libertação assemelham-se.

Para mim, a principal lição a aprender é bem clara: no momento em que a população abraça a causa da rebelião, a vitória dos rebeldes está assegurada.

Esta é uma regra pétrea: movimentos insurgentes apoiados pela população civil sempre vencem, sejam quais forem as táticas adotadas pela forças da ocupação. O ocupante pode matar indiscriminadamente ou pode adotar métodos menos desumanos; pode torturar combatentes insurgentes até a morte ou pode tratá-los como prisioneiros de guerra – nada faz diferença, no longo prazo. Pode acontecer de o último ocupante partir solenemente, embarcando num grande navio, como o Alto Comissário inglês embarcou em Haifa. E pode acontecer de ele ter de disputar ferozmente um lugar no último helicóptero, como os soldados dos EUA no telhado da Embaixada Americana em Saigon. Nada muda, porque a derrota das forças de ocupação está decidida no momento em que o movimento insurgente atinge um determinado ponto.

A verdadeira guerra contra a ocupação acontece na mente dos homens e mulheres de uma população obrigada a viver sob ocupação. Portanto, a principal tarefa dos que lutam por liberdade não se trava contra a ocupação, como às vezes se pensa. O combatente que tenha de resistir à ocupação luta, sempre, para conquistar o coração de seu próprio povo. Por outro lado, a principal tarefa das forças de ocupação não é matar os resistentes. A principal tarefa das forças de ocupação é impedir que a população abrace a causa da resistência. Combate-se sempre, portanto, pela cabeça, pelos pensamentos, pelas emoções da população.

Esta é uma das razões pelas quais quase todos os generais fracassam na guerra contra combatentes que lutam pela libertação de seus povos. Um oficial de exército é a pessoa menos indicada para disputar cabeças, pensamentos e emoções. Sua formação, seu modo de pensar, tudo o que ele aprendeu é o oposto do que se exige para esta tarefa. Napoleão, gênio militar, fracassou na luta contra os que lutavam pela liberdade na Espanha (onde pela primeira vez usou-se a palavra guerrilla, “guerra pequena”), assim como também fracassaram, pelo mesmo motivo, os estúpidos generais norte-americanos, no Vietnã.

Um oficial de exército é um técnico, treinado para tarefas específicas. O serviço do oficial de exército é irrelevante em combate contra movimentos de libertação; parece importantíssimo, mas é irrelevante. O fato de um pintor de paredes entender de tintas não faz dele um pintor de retratos. Um engenheiro hidráulico não é necessariamente um bom consertador de torneiras. Generais não entendem o espírito dos movimentos nacionais insurgentes; daí que nenhum general entenda as regras que regem os movimentos insurgentes.

Por exemplo: os generais medem seus sucessos pelo número de inimigos mortos. Mas na luta contra movimentos clandestinos os mortos têm de ser exibidos à opinião pública. E a opinião pública não vê inimigos mortos, nos mortos dos movimentos insurgentes: a opinião pública vê ali os seus mártires. Os generais aprendem a preparar-se para combates e a procurar combates, para vencê-los. Os combatentes guerrilheiros não procuram combates: eles lutam para não dar, aos generais, condições de combate.


Che Guevara, ícone dos resistentes, definiu bem os estágios das guerras de libertação clássicas: "Primeiro, um grupo parcialmente armado desloca-se para lugar remoto, de difícil acesso [ou ‘desaparece’ numa grande população urbana, eu acrescentaria]. Depois de algum ataque bem-sucedido contra as autoridades, o grupo inicial aumenta, acrescido de pequenos proprietários, camponeses descontentes, jovens idealistas etc. Faz-se contato com moradores da região (...) e organizam-se ataques-surpresa, ações rápidas. Com o tempo e a prática, os combatentes aprimoram-se, conseguem enfrentar uma coluna militar e destroem as lideranças. Em seguida, o grupo organiza acampamentos semi-permanentes (...) e estrutura-se como governo em miniatura (...)”.

Para seguir adiante, os insurgentes têm de ser alimentados por alguma idéia que entusiasme a população. Havendo esta idéia, a população une-se aos insurgentes e lhes dá abrigo, socorro médico e informação, inteligência. A partir deste ponto, todas as ações das autoridades de ocupação favorecem os insurgentes. Cada combatente insurgente morto é substituído por outro e outros que avançam e assumem o seu posto (como eu fiz quando era jovem). Quando o exército ocupante impõe castigos a toda a população, só faz aumentar o ódio contra si e reforçar as alianças de socorro mútuo entre os resistentes. Quando conseguem capturar ou matar algum líder do movimento de libertação, outros líderes aparecem para o mesmo posto – a resistência é como a Hidra da lenda grega, da qual brotavam novas cabeças a cada cabeça que Hércules decepava.

Vez ou outra, as autoridades de ocupação conseguem provocar rachas e divisões no movimento de resistência e consideram uma grande vitória. Mas todas as facções, ainda que competindo também entre elas, continuam a combater as mesmas forças de ocupação – como Fatah e Hamás fazem hoje.

É PENA que Polk não dedique capítulo especial de seu livro ao conflito Israel-Palestina, mas, de fato, nem é necessário. Nós mesmos podemos escrever este capítulo, com o que já sabemos.

Ao longo de 40 anos de ocupação, os líderes políticos e militares israelenses sempre fracassaram na luta contra a guerrilha palestina. Não são nem mais estúpidos nem mais cruéis que os que os antecederam – holandeses na Indonésia, ingleses na Palestina, franceses na Argélia, norte-americanos no Vietnã, soviéticos no Afeganistão. Os generais israelenses só ganham dos demais no quesito arrogância – na crença de que sejam os mais espertos, na fé de que alguma “cabeça de judeu” inventará inventos que nenhum Goyim, não-judeu, jamais inventará.

A luta está decidida, na Palestina, desde o momento em que Yasser Arafat conseguiu conquistar o coração dos palestinos e reuniu-os em torno do ardente desejo de livrarem-se, eles mesmos, da ocupação. Se os israelenses fossem mais espertos, teríamos chegado a um bom acordo político com Arafat, naquele momento. Mas os políticos e os generais de Israel não são mais espertos que outros políticos e generais. E assim Israel continua a matar, bombardear, destruir e exilar, na crença alucinada de que, se atacarmos mais uma vez, a vitória tão almejada aparecera, afinal, no fundo do túnel – até entender que o fim de túnel é o começo de outro túnel, ainda mais escuro.

Como sempre acontece, quando uma organização de libertação não atinge os seus objetivos, surge outra, mais radical, mais extremista, ou ao lado da primeira ou em lugar da primeira; e consegue também ganhar o coração da população. Organizações como o Hamás assumem o posto de organizações como o Fatah. O regime colonial que não construa qualquer acordo com a organização mais moderada sempre acaba obrigado a aceitar os termos impostos pela organização mais radical.

O General Charles de Gaulle conseguiu construir a paz com os resistentes na Argélia antes de chegar ao estágio em que Israel está hoje. 1,25 milhão de colonos franceses ouviram, certa manhã, que o exército francês faria as malas em data marcada e partiria. Os colonos franceses, muitos deles já de quarta geração, tiveram de correr para salvar a pele e não receberam qualquer tipo de indenização (os colonos israelenses que deixaram a Faixa de Ghazaa em 2005 foram indenizados). Mas não temos de Gaulle. Estamos condenados a continuar como até aqui, ad infinitum.

Não fossem as terríveis tragédias que vemos todos os dias, seria caso de rir do desamparo patético em que estão os políticos e generais israelenses, que batem cabeça sem saber de onde virá a salvação. O que fazer? Matar de fome os palestinos? Esta idéia levou à derrubada do muro na fronteira com o Egito. Matar os líderes palestinos? Israel já matou o Sheik Ahmed Yassin e muitos outros, incontáveis. Pôr em ato a “Grande Operação” e reocupar toda a Faixa de Ghazaa? Israel já ocupou duas vezes a Faixa! Hoje, Israel encontrará guerrilheiros muito mais bem organizados e armados, muito mais fundamente enraizados na população. Cada tanque, cada soldado lá estará como alvo. O caçador virou presa.

ENTÃO, o que Israel pode fazer, que já não tenha feito?

Primeiro, todos os militares, soldados e políticos devem ler o livro de William Polk e, em leitura paralela, todos devem ler algum dos bons livros que há sobre a ocupação e a resistência na Argélia.

Segundo, fazer o que todos os regimes ocupantes fizeram no final, em todos os casos em que a população levantou-se: construir um acordo político razoável para os dois lados, que interesse aos dois lados. Em seguida, para Israel, é cair fora da Palestina.

Afinal de contas, todos sabemos como a ocupação acabará. Só estamos discutindo, ainda, o número de assassinatos, o número de casas derrubadas, quanto, ainda, de sofrimento, Israel provocará na Palestina, antes de Israel chegar ao fim previsto.

Cada gota de sangue derramado é sangue desperdiçado.
* An End Foreseen, 10/2/2008, em Gush Shalom [“Grupo da Paz”], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1202631015/. Copyleft. Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.
[1] POLK, William. Violent Politics, 2007. NY e Londres: Harper Collins Publishers. Para comprar e para ler (e-book) na internet em http://browseinside.harpercollins.com/index.aspx?isbn13=9780061236198


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