Golpe parlamentar e sufocamento de empresas nacionais: o caso da Coreia do Sul
Assim como no Paraguai (Lugo) e no Brasil (Dilma), a alta corte coreana deve ratificar o impedimento da presidente Park Geun-hye. Representantes de banqueiros foram nomeados para conduzir a política econômica, em claro antagonismo com as políticas de investimento público em infraestrutura, bandeira de Geun-hye
A Coreia do Sul experimentou extraordinária trajetória de industrialização com autonomia tecnológica nos últimos 60 anos. Tendo a industrialização como estratégia, transformou-se, de nação primário-exportadora, em país com importância geopolítica regional.
Causa e consequência do “milagre” coreano, grupos familiares nacionais encontram-se no controle dos grandes conglomerados. Assim como ocorreu com grupos da construção civil pesada no Brasil, os conglomerados coreanos se mantiveram prudentemente nas mãos de elite convergente com projeto para o território e seu povo. Desde 1997, auge da crise financeira na península, a Samsung optou por elevado autofinanciamento, aumentando-se a independência financeira do conglomerado. Há também histórico de firme apoio do Estado coreano às políticas expansionistas empresariais.
Por estas razões, a Samsung tem sido parte importante da estratégia nacional-coreana, sendo atualmente responsável por cerca de 20% da atividade econômica e, não menos importante, exerce liderança em competitivo mercado internacional de tecnologias de sensoriamento, processamento e comunicação. Além da Samsung, a família Lee, sua controladora, tem negócios nas áreas de fabricação de navios, indústria petroquímica, construção civil, entre outras.
As investidas dos bancos se multiplicaram após listagem do capital em bolsas de valores. O curto-prazismo dos mercados entrou em conflito com a hereditariedade familiar e gerou respostas do complexo financeiro-midiático-jurídico. Cada uma das três gerações de fundadores da Samsung teve sua quota de denúncias e processos, usualmente relacionados com a proximidade da empresa com políticas públicas que a favorecem: programas tecnológicos, compras governamentais, incentivos fiscais.
Conforme se pretende argumentar no presente artigo, a proximidade entre o principal conglomerado privado e o Estado sul-coreano resultou em projeto de país que passou a ser enfrentado pelos interesses financeiros internacionais desde os anos noventa.
Este enfrentamento toma, na conjuntura, proporções comparáveis ao ocorrido recentemente no Brasil, com: (i) aplicação de Golpe Parlamentar sobre governo legitimamente eleito; (ii) desconstrução do sucesso empresarial do principal conglomerado nacional; (iii) interrupção da trajetória de crescimento econômico devido a instalação de crise política no país.
Como uma família empreendedora frustrou (até aqui) o querer dos banqueiros internacionais?
A Samsung é, na realidade, conjunto amplo de firmas atuante em diferentes mercados e territórios. O que a caracteriza como conglomerado é a presença de controles cruzados de ações entre as empresas, detendo-se na holding controle indireto sobre todas as demais. Na Coreia do Sul, conglomerados familiares são chamados de chaebols[1] e o comando da Samsung se encontra subordinado a Cheil Industries e seus controladores, os herdeiros da família Lee, como se pode ver na figura abaixo.
A principal empresa do grupo é a Samsung Electronics, responsável pelo sucesso em tecnologias móveis de comunicação e demais equipamentos eletroeletrônicos.Na Figura 2 apresenta-se estrutura de controle da Samsung Electronics em meados de 2016. Conforme se pode perceber, há importante presença de instituições financeiras no capital, as quais administram cerca de metade das ações portadoras de voto. Destaca-se ainda significativa participação de fundos de pensão controlados pelo Estado coreano, os quais detêm juntos cerca de 16% dos votos na empresa.
Em setembro de 2015 foi anunciada fusão entre as empresas de construção civil, Samsung C&T, e a holding Cheil Industries. A consolidação contábil permitiu a família Lee dispor de adicionais 4% de votos na gigante Samsung Electronics.
Ocorre que nestas situações a determinação dos valores de cada uma das duas empresas que irão se fundir indica o quanto os “acionistas minoritários” irão ganhar na troca de ações. Este é o momento em que os banqueiros esfregam as mãos, cientes de que se trata de oportunidade única para grandes ganhos. Com o apoio dos fundos de pensão governamentais, a família Lee obteve os votos necessários para aprovar, em Assembleia de Acionistas, a proposta de fusão. O fundo financeiro norte-americano (Elliot) contestou que a fusão resultaria em perda de valor, na medida em que seu objetivo se esgotaria na centralização de poder nas mãos da família.
O fracasso relativo no lançamento de produtos de consumo de massa (Galaxy S5 e Notes 7) desde 2014 levou o conglomerado a enfrentar críticas crescentes de “investidores minoritários”. O “mercado”, então, pressionou pela venda de divisões “menos lucrativas”. Em 2015, a Samsung se desfez de projetos na indústria bélica (desenvolvimento de radares militares, sistemas completos para controle de navios de guerra, chips para sistemas de mira em veículos de combate, entre outros).
Ataques coordenados ao Estado Coreano
A partir de julho de 2016, a presidente eleita Park Geun-hye sofreu intensos ataques por parte da mídia corporativa ([2]) por ter compartilhado com amiga próxima, não pertencente ao governo, minutas de documentos públicos. As ligações entre a presidente e ChoiSoon-sil já vinham sendo tratadas pela imprensa há muitos anos, sem que as acusações fossem propriamente investigadas. A partir de meados de 2016, as acusações foram sendo progressivamente “vazadas” pela imprensa, levando-se multidões a protestarem contra política nacional-desenvolvimentista defendida pela então presidente ([3]).
Após o impeachment, levado a cabo pelo parlamento cerca de apenas dois meses após o início das denúncias, contabilizaram-se 234 votos a favor e 56 contra. Ou seja, o Congresso sul-coreano reagiu de maneira inesperada, cooptando-se votos favoráveis ao impedimento mesmo no próprio partido da presidente eleita.
Assim como ocorrido no Paraguai (Lugo) e no Brasil (Dilma), a alta corte coreana deve ratificar o impedimento. Kim Byong-joon, ex-secretário na gestão liberal do adversário e antecessor Roh Moo-hyun’s, já ocupa a posição como primeiro ministro. Foram ainda nomeados representantes de banqueiros para condução da política econômica no país, em claro antagonismo com as políticas de investimento público em infraestrutura, bandeira da ex-presidente-eleita.
A receptividade do “mercado” quanto a solução pelo impedimento foi tempestiva. Na Figura 3 apresenta-se a evolução do “risco-país” antes, durante e depois do impedimento. Fica claro como a percepção dos bancos internacionais influiu diretamente sobre o processo, constituindo-se em ação coordenada com a mídia e o sistema judiciário para deposição da presidente eleita.
Finanças internacionalizadas e políticas nacionais: sabotagem do projeto de desenvolvimento sul-coreano
As relações entre o Estado coreano e os grandes conglomerados industriais podem ser consideradas firmes e antigas. No entanto, não impediu que ondas neoliberais invadissem o país na década de noventa. Apenas a partir de 2002/3 é que a Coreia do Sul reintroduziu políticas integradas em linha com projeto de desenvolvimento. Da mesma maneira que ocorrido no Brasil em 2016, tratou-se de estratégia a ser abortada pela via do golpe parlamentar, construído em torno da implementação de agenda neoliberal.
As origens do projeto defendido pela presidente deposta remontam o início do “milagre” coreano nos anos 1960. O general Park Chung-hee, pai da presidente impedida, foi ditador militar em período em que os EUA consolidaram presença militar no país. A aliança entre as elites industriais nacionais e os norte-americanos teve como estratégia a promoção de elevada prosperidade no país e, assim, manter a ameaça comunista distante do principal aliado ocidental na Ásia.
O desenvolvimento da Coreia foi não apenas tolerado, mas incentivado como política externa norte-americana. O contraste civilizatório entre as duas Coreias deveria ser tal que demonstrasse inequivocamente a superioridade da “economia de mercados” sobre o “comunismo”.
Ataque à Samsung
No dia 16 de fevereiro último, o pai do herdeiro e atual executivo da Samsung foi preso por determinação de juiz que acolheu pedido de “procuradores especiais”. Em conferência de imprensa, o pedido de prisão foi fundamentado em evasão fiscal de cerca de US$114 milhões. Lee também está sendo acusado de má conduta como executivo da Samsung no episódio da fusão entre a C&T e a Cheil.
À prisão do líder da Samsung seguiu-se a torrente de denúncias de procuradores ecoadas pela mídia corporativa sobre as relações de favorecimento entre o Governo da presidente eleita e o conglomerado. No centro da discussão, encontra-se troca de favores relacionados ao voto de minerva do fundo de pensão controlado pelo governo na manutenção do controle empresarial na Samsung por parte da família Lee.
Como medida de contenção, a Samsung anunciou o desmantelamento do escritório de estratégia corporativa, de onde supostamente se organizou esquema de corrupção com o poder público.
O procurador especial Park Young-soo recomendou, no início de março de 2017, o indiciamento da presidente eleita como resultado de 90 dias de investigação. Segundo a denúncia, a ex-presidente e sua amiga próxima teriam conspirado para obter suborno de U$ 35 milhões contra voto do fundo de pensão na fusão de 2015 no grupo Samsung.
A tentativa de aprisionamento das principais lideranças políticas e econômicas coreanas está apenas se iniciando. Conforme já é de conhecimento dos brasileiros, os bancos internacionais possuem como objetivo enfraquecer as melhores chances empresariais nacionais no jogo do capitalismo internacional. E devem promover isso com a instrumentalização de um congresso nacional receptivo a reformas liberais e privatização. Por outro lado, a longa novela da corrupção se prolongará até as próximas eleições em fins de 2017.
Considerações finais
A presidente deposta reafirmou estratégia de crescimento fundamentada na expansão da infraestrutura no país, com consequente aumento na demanda industrial. Em um mundo pós-2008, a continuidade do crescimento sul-coreano passaria a ter maior ênfase no mercado interno.
O espaço político comprometido com agenda neoliberal na conjuntura da Coreia do Sul só é comparável com aquele alcançado no Brasil, também após o impedimento da presidente eleita. Naturalmente, a reação política dos conglomerados foi proporcional a ameaça percebida. Esta é uma das razões pelas quais o complexo financeiro-midiático-jurídico foi novamente acionado no início de 2017, tendo-se agora como alvo a Samsung. Ou seja, não basta para os bancos remover as lideranças políticas comprometidas com projeto para o país, mas torna-se igualmente imperioso deslocar a elite capitalista que defende o projeto de desenvolvimento.
Apesar da histórica aliança da Coreia do Sul com os EUA, a China responde atualmente por cerca de um quarto dos destinos para exportações sul-coreanas. Este enlace comercial da China com sul-coreanos cria tensões geopolíticas[1] sobre os rumos para reunificação do país. Um fracasso da Coreia do Sul poderia gerar desequilíbrio político na região Ásia-Pacífico.
Desta maneira, cria-se para os EUA nos próximos anos a necessidade de zelar pela manutenção da ordem social, política e econômica frente à política neoliberal pós-impedimento. Caso os interesses financeiros insistam na guerra midiático-jurídica contra os conglomerados, a crise econômica resultante irá entrar necessariamente em contradição com o interesse geopolítico dos EUA na região.
Ou seja, tal como verificado no Brasil, a desorganização econômica e o radicalismo político que decorrem da agenda neoliberal irão despertar a necessidade de ação política pelos EUA em defesa dos interesses estabelecidos no território. Esta ação política majoritariamente se dará pelo enfrentamento da hegemonia financeira consolidada internamente aos EUA. Em geral, o fato novo, que muda tudo, vem da frente militar.
Notas
[1]Outros chaebols são Hyundai Motor Group, Daewoo Group e LG.
[2]Conforme na IstoÉ Dinheiro de 09.12.2016, “Os telespectadores coreanos prendem a respiração enquanto acompanham as audiências da investigação da comissão parlamentar que analisou a destituição da presidente, um programa de reality show pelo qual passaram executivos, parlamentares com muita lábia e até um ex-gigolô”.
[3] 81% dos Coreanos “apoiaram o impedimento” e apenas 5% se posicionaram contra, segundo Gallup-Korea.
[4] A presidente eleita deu autorização para instalação de baterias de mísseis anti-mísseis no território, assim como estabeleceu acordos de inteligência com o Japão, também por indução dos EUA.
Crédito da foto da página inicial: Jeon Heon-kyun / Pool / Reuters
É professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É colunista do Brasil Debate