segunda-feira, março 07, 2016

Terremoto no Brasil

7/3/2016, Pepe Escobar, SputnikNews

Imagine um dos líderes políticos mais admirados em todo o planeta na história moderna arrancado do apartamento onde mora, às 6h da manhã, por agentes armados da Polícia Federal Brasileira, enfiado num carro sem identificação e levado ao aeroporto de São Paulo, para ser interrogado por mais de quatro horas, sobre eventos conectados a um escândalo de corrupção de um bilhão de dólares que envolve a petroleira brasileira Petrobrás.

Desse material se fazem os delírios de Hollywood. E a 'lógica' dos delírios de Hollywood é, exatamente, a 'lógica' por trás de mais essa elaborada produção.

Os procuradores por trás da investigação chamada "Car Wash"[1], que já dura dois anos, não se cansam de repetir que há "
elementos de prova" que implicariam Lula, o qual teria recebido fundos – no mínimo, 1,1 milhão de euros – do esquema de corrupção que envolveria grandes empresas de construção conectadas à Petrobrás. As acusações rezam que Lula teria – e é o máximo que se pode dizer: "teria" – sido pessoalmente beneficiado de grande parte desse dinheiro, sob a forma de um sítio (que não pertence ao ex-presidente), um apartamento modesto à beira-mar, de remunerações por palestras no circuito mundial da 'palestragem', de doações à fundação que leva seu nome.

Lula é o mais consumadamente talentoso animal político – em nível Bill Clinton, de competência. Já havia avisado que esperava algum movimento desse tipo, porque a máquina da "Operação Car Wash" já havia prendido dúzia de pessoas suspeitas de manipularem contratos e concorrências comerciais entre suas respectivas empresas comerciais e a Petrobrás – mais de $2 bilhões – para subornar políticos do Workers' Party (WT), ao qual Lula, então presidente da República, era/é filiado.

O nome de Lula surgiu nas investigações, pela boca do proverbial gângster que se torna delator para reduzir a própria pena. A hipótese que ainda se mantém de pé – porque não há prova de nenhuma dessas acusações – é que Lula, quando governou o Brasil, entre 2003 e 2010, ter-se-ia beneficiado pessoalmente do esquema de corrupção que tem no centro a Petrobrás, e que teria obtido favores para si mesmo. Entrementes, a ineficiente atual presidenta Dilma Rousseff também está sob ataque, também por efeito de delação premiada feita pelo ex-líder de seu governo no Senado.

Lula foi interrogado em conexão com acusações por lavagem de dinheiro, corrupção e ocultação de patrimônio. A blitz hollywoodiana foi autorizada pelo juiz federal Sergio Moro – que não se cansa de repetir que se inspira no juiz italiano Antonio di Pietro e a famosa investigação dos anos 1990s
Mani Pulite ("Mãos Limpas").

E é aqui que, inevitavelmente, a trama engrossa.

Prenda os que jornais e TVs acusam!

Moro e os procuradores da "Operação Car Wash" justificam a blitz hollywoodiana, com o argumento de que Lula ter-se-ia recusado a comparecer a qualquer interrogatório. Lula e o PT negam veementemente a 'acusação'.

Até agora, repetidas vezes os investigadores da "Operação Car Wash" têm vazado 'informes' e 'declarações' para a grande mídia – jornais, rádios e TVs –, sempre na direção de divulgar a 'notícia' segundo a qual "Até agora só conseguimos morder Lula. Quando o pegarmos, o engoliremos." Significa, para dizer o mínimo, uma politização, com partidarização, da Justiça, da Polícia Federal e do Ministério Público. Implica também que a blitz à moda de Hollywood pode ter autor ativo. A 'notícia' repetida incontáveis vezes no ciclo das 'notícias' da grande mídia-empresa, hoje instantaneamente global, foi que Lula teria sido preso 'porque é corrupto'.

Mas... a coisa vai ficando cada vez mais estranha, quando se descobre que o juiz Moro é autor de artigo publicado numa revista obscura, nos idos de 2004 ("Considerações sobre Mãos Limpas", revista CEJ, n. 26, Julho-Set. 2004). Nesse artigo, Moro prega, claramente, "a subversão autoritária da ordem jurídica para alcançar alvos específicos" e o uso da mídia para intoxicar a atmosfera política.

Claro que tudo isso serve a uma agenda específica. Na Itália, a direita viu a saga das Mani Pulite como excesso vicioso do exercício da justiça; a esquerda, do outro lado, entrou em êxtase. O Partido Comunista Italiano saiu da investigação com as mãos limpas. Mas no Brasil, a operação tomou a esquerda como alvo predefinido antes de qualquer devido processo legal –, e a direita, pelo menos até agora, está sendo mostrada como constituída só arcanjos tocadores de harpa e cantadores de hinos.

O candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2014, por exemplo, herdeiro mimado e cheirador de cocaína Aécio Neves, por exemplo, foi absolvido em três acusações por corrupção, canceladas, pode-se dizer, sem maiores investigações.

O mesmo vale também para outro muito suspeito esquema que envolve o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – conhecido autopromotor dos próprios suspeitos talentos e feitos, ex-desenvolvimentista convertido em empenhado aplicador de política neoliberais.

A impressão que a Operação Lava-Jato já deixou bem fundamente marcada em todo o Brasil é que acusações de corrupção só são investigadas se o acusado for nacionalista progressista. Os vassalos do consenso de Washington são sempre predefinidos como
anjos – generosamente imunizados contra acusações, delações e processos.

Está acontecendo como se vê, porque Moro e a equipe dele estão-se servindo empenhadamente da 'tática' que o próprio juiz Moro definiu, de usar a mídia-empresa para intoxicar a atmosfera política, com a opinião pública tornada alvo de manipulação serial, mesmo antes de qualquer acusado ser formalmente acusado de qualquer crime.

Aí está. Já se sabe que Moro e as fontes de que se servem ele e seus procuradores são em enorme medida farsescas, ou trambiqueiros conhecidos, ou mentirosos seriais. Por que, então, tantos parecem acreditar no que eles dizem? Porque não há prova de nenhuma das acusações. Simples. O próprio juiz Moro admite.

E isso nos leva a um quadro terrível: o complexo midiático-judiciário-policial parece ter sequestrado, no Brasil-2016, uma das mais saudáveis democracias do planeta.

Essa ideia encontra corroboração num fato visível para todos. O 'projeto' da oposição de direita no Brasil resume-se a um só objetivo: arruinar a economia da 7ª maior potência econômica do mundo, para, assim, conseguir destruir Lula como candidato á presidência em 2018.

Reina a elite saqueadora

Nada do que acima se lê pode ser compreendido por público global, sem algum conhecimento da Brasiliana clássica. No Brasil, reza a lenda que "o Brasil não é para amadores". Não é mesmo. Trata-se de sociedade espantosamente complexa – que transitou praticamente sem pausa de um Jardim do Éden [a Terra sem Mal, dos guaranis? (NTs)] (antes de a terra ser "descoberta" pelos portugueses em 1500), para a escravidão [que durou 300 anos e ainda permeia todas as relações sociais (NTs)][2]), dali a outro evento crucial, em 1808: a mudança, para o Brasil, de
Dom João 6º de Portugal (e imperador vitalício do Brasil), que fugia da invasão napoleônica, arrastando consigo 20 mil nobres portugueses, que lá organizaram o "moderno" estado brasileiro. "Moderno" é eufemismo; a história mostra que descendentes daqueles 20 mil europeus só fizeram saquear o país, ao longo dos últimos 208 anos. Poucos deles algum dia chegaram a ser julgados e condenados.

As elites tradicionais brasileiras compõem uma das misturas mais repugnante-arrogante-ignorantemente preconceituosas e tóxicas de todo o planeta. "Justiça" – e aplicação policial da lei – só se usam como armas quando as pesquisas não favorecem a agenda daquela gente.

E uma parte intrínseca daquelas elites são os proprietários dos veículos da mídia-empresa hegemônica no Brasil. Em grande medida semelhante ao modelo concentracionista que se vê nos EUA, no Brasil apenas quatro famílias controlam toda a paisagem 'midiática', com destaque para a família Marinho, que comanda o império empresarial midiático O Globo. Tenho experiência direta, de dentro, detalhada, de como operam.

O Brasil é estrutura corrompida até o cerne – das elites 'comprador' até largas fatias das "novas" elites, que incluem o Workers' Party. O Partido padece de grave carência de quadros qualificados. Parece inegável que houve e há a corrupção e tráfico de influência envolvendo a Petrobras, construtoras e políticos de vários partidos, embora a coisa nem de longe se possa comparar ao dia a dia do 'relacionamento' de compra-e-venda e suborno de políticos, do tipo Estado & Goldman Sachs, ou Estado & Big Oil e/ou do tipo Estado & Irmãos Koch/Sheldon Adelson nos EUA.

Se o que hoje se vê no Brasil fosse,
cruzada sem limites contra a corrupção – que os operadores da Operação Car Wash não se cansam de repetir que seria – a oposição de direita/vassalos das velhas elites também já teriam aparecido nas 'investigações' e já teriam sido expostas nos veículos da mídia-empresa dominante. Mas se aparecessem nomes conectados às velhas elites, a mídia-empresa dominante atentamente zelaria para que não fossem expostos e apagaria completamente do noticiário qualquer investigação em curso.

E jamais haveria, com personagem das elites, a blitz hollywoodiana montada contra Lula – apresentado como delinquente, com vistas a humilhá-lo diante do mundo.

Os procuradores da Operação Car Wash têm razão nisso: a percepção construída pela mídia-empresa passa a ser a realidade. Sim, mas, e se o tiro sair pela culatra?

Consumo zero, investimento zero, crédito zero

O Brasil atravessa situação extremamente difícil. O PIB caiu 3,8% ano passado; provavelmente cairá 3,5% esse ano. O setor industrial encolheu 6,2% ano passado; a mineração, caiu 6,6% no último trimestre. O país caminha na direção da sua pior recessão, desde... 1901.

Não há Plano B – no governo incompetente de Rousseff – para enfrentar a desaceleração da China, quando se reduziram as compras de produtos agrícolas e minérios do Brasil, nem o tropeço global nos preços de commodities.

O Banco Central mantém a taxa de juros em espantosos 14,25%. Um "ajuste fiscal" neoliberal desastroso, tentado pelo governo Rousseff, só aprofundou a crise. Pode-se dizer, usando uma figura de linguagem, que hoje Rousseff "governa" – para o cartel de bancos e os rentistas que lucram com a dívida pública brasileira. Mais de $120 bilhões do orçamento do governo evapora, para pagar juros da dívida pública.

A inflação está subindo – já entrando em território dos dois dígitos. Desemprego está em 7,6% – de fato, muito melhor que em muitos países da União Europeia –, mas aumentando.

Os suspeitos de sempre, claro, festejam, e nunca param de 'analisar' que o Brasil se teria tornado "tóxico" para investimentos globais.

Não há dúvidas de que a coisa está feia. Não há consumo. Não há investimento. Não há crédito. A única saída possível seria esvaziar a crise política. Mas os micróbios que pululam na 'oposição' só têm uma obsessão: o impeachment da presidenta Rousseff.

Pairam sombras da velha tática da "mudança de regime": para aqueles vassalos de Wall Street/EUA "Império do Caos", uma crise econômica, alimentada todos os dias por uma crise política, levará fatalmente, necessariamente, à derrubada do governo eleito naquele país BRICS crucialmente importante.

E então, de repente, do nada, aparece... Lula.

A ação da Operação Car Wash pode, sim, sair pela culatra – e gravemente pela culatra. Lula voltou à liça. Entrou em modo de campanha eleitoral para 2018 – embora ainda não seja candidato oficial. Que ninguém jamais subestime um animal político de tal envergadura.

O Brasil não está nas cordas. Se reeleito, Lula pode expurgar do Workers' Party uma legião de escroques, e imprimir nova dinâmica ao partido e ao país. Antes da crise, o capital brasileiro estava rapidamente se globalizando – via Petrobrás, Embraer, o BNDES (o modelo de banco que inspirou o banco dos BRICS), as grandes construtoras.

Ao mesmo tempo, pode haver vantagens em romper, pelo menos em parte, o cartel oligárquico que controla toda a construção de infraestrutura no Brasil. Para ver as vantagens, basta pensar em empresas chinesas construindo ferrovias para trens de alta velocidade, barragens e portos dos quais o Brasil tão desesperadamente carece.

O próprio juiz Moro teorizou que a corrupção prosperaria, porque a economia brasileira é excessivamente fechada, como foi a Índia até há pouco tempo. Sim, mas... Há enorme diferença entre abrir alguns setores da economia brasileira, e escancarar tudo para que interesses associados às elites comprador estrangeiras saqueiem o país.

E então, mais uma vez, temos de voltar ao tema recorrente em todos os grandes conflitos globais.

É o petróleo, estúpido!

Para o Império do Caos, o Brasil sempre foi grave dor de cabeça desde a primeira eleição de Lula, em 2002 (para avaliação das complexas relações EUA-Brasil, vide o trabalho indispensável de Moniz Bandeira[3]).

Alta prioridade do Império do Caos é impedir a emergência de potências regionais que cheguem abarrotadas de recursos naturais, do petróleo a minérios estratégicos. É o Brasil, descrito em minúcias. Washington como sempre se sente perfeitamente autorizada e legitimada para "defender" recursos que não lhe pertencem. Mas, para tanto, ela não só precisa fazer abortar quaisquer associações de integração regional, como Mercosul e Unasul, mas, sobretudo, tem de impedir que cresça o alcance global dos BRICS.

A Petrobrás sempre foi empresa estatal muito eficiente, que passou a ser também operadora única das maiores reservas de petróleo descobertas, até agora, no século 21: os depósitos do pré-sal. Antes de tornar-se alvo de ataque massivo de especuladores, 'judiciário' brasileiro e mídia-empresas, a Petrobrás gerava 10% dos investimentos e 18% do PIB brasileiro.

A Petrobrás descobriu os depósitos do pré-sal baseada em suas próprias pesquisas e inovações tecnológicas aplicada à busca por petróleo em águas profundas – sem nenhuma participação de outros países, de nenhum tipo. A beleza da coisa está em que não há risco: se você perfura aquela camada de pré-sal, o petróleo ali está. Nenhuma empresa do planeta entregaria essa riqueza à concorrência.

Pois mesmo assim, uma lesma da oposição de direita prometeu à Chevron em 2014 que entregaria a exploração do pré-sal com preferência ao Big Oil. Agora, a oposição de direita trabalha para alterar o regime jurídico do pré-sal; a modificação já foi aprovada no Senado. E Rousseff está cordatamente deixando a coisa evoluir. Para piorar, o governo Rousseff nada fez para recomprar ações da Petrobrás – cuja queda vertiginosa foi espertamente construída pelos suspeitos de sempre.

O desmanche meticuloso da Petrobrás, com o Big Oil eventualmente chegando aos depósitos do pré-sal, para deter e manter parada a projeção do poder global de mais um BRICS, tudo isso casa-se às mil maravilhas com os interesses do Império do Caos. Geopoliticamente, isso é muitíssimo mais importante que blitz hollywoodiana e investigação de Operação Car Wash.

Não é coincidência que as três maiores nações BRICS estejam sendo simultaneamente atacadas – em incontáveis níveis: Rússia, China e Brasil. A estratégia combinada pelos Masters of the Universe que ditam as regras no eixo Wall Street/Av. Beltway [governo dos EUA em Washington] é minar por todos os meios possíveis o esforço coletivo dos BRICS para produzir alternativa viável ao sistema econômico/financeiro global – esse mesmo que, atualmente, está submetido ao capitalismo-de-cassino. É pouco provável que Lula, sozinho, consiga detê-los.*****


[1] Em port. "Operação Lava Jato". Dado que toooooooooooooooodos os jornais da mídia-empresa falam de Lava Jato, optamos por introduzir essa variante, na discussão: Operação Car Wash. O mesmo vale para Workers's Party (WP), para Partido dos Trabalhadores (PT), que optamos por referir em inglês. São ferramentas discursivas q temos de aprender a usar, para reorientar a discussão. Guerra é guerra. Não vai ter golpe. [NTs]
[2] Os dois livros mais importantes sobre essa específica trajetória histórica do Brasil, com sua correspondentemente específica inserção no mundo do capital ocidental são:

– SCHWARZ, Roberto, Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. (3ª ed. São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2001), em inglês: A Master on the Periphery of Capitalism: Machado de Assis. Trans. John Gledson. Durham: Duke University Press, 2002); e

– SCHWARZ, Roberto, Ao Vencedor as Batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977 (5ª ed., revista. São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2000), em ing. Misplaced Ideas: Essays on Brazilian Culture. (Ed. and with an introduction by John Gledson). London: Verso, 1992 [NTs].
[3] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul (da Tríplice Aliança ao Mercosul), 1870-2003. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 3ª edição revista e ampliada, 669 págs (dentre vários outros títulos todos importantes). O professor Moniz Bandeira é empenhado amigo do Coletivo de Tradutores Vila Vudu, do que muito nos orgulhamos [NTs].