22 de novembro de 2014
Ao apresentar, no primeiro dia, a proposta de desmembrar
AP 470, ele deixou claro o caráter político do "julgamento do século"
Personagem destacado em mais 50 anos de disputas jurídicas e
políticas, Márcio Thomaz Bastos (1935-2014) deixou lições de luta sob a
ditadura militar — e também sob o regime democrático. Teve um papel destacado
na defesa dos direitos humanos e na denúncia da tortura e, após a
democratização, atuou pela ampliação das liberdades e direitos do cidadão.
Advogado dos maiores empresários do país, seus
honorários na casa de 7 dígitos eram um lenda entre colegas mas não impediram
sua opção política pelo Partido dos Trabalhadores, o que fazia dele uma dessas
personalidades raras, intimamente tolerantes, capazes de mascar chiclete e
andar ao mesmo tempo.
O convívio muito próximo com o topo da pirâmide
não enfraqueceu sua lealdade a Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo.
Essa capacidade de fugir de uma postura que — fazendo uma
certa sociologia muito barata — seria possível chamar de egoísmo de classe,
incluiu uma firmeza notável durante o julgamento da AP 470. Márcio Thomaz
Bastos foi um dos primeiros de quem ouvi dizer, com muitos meses de
antecedência, que o julgamento deixara o terreno jurídico, técnico, para
se transformar num processo de natureza política. Toda vez que, em seu
escritório na Faria Lima, eu comentava sobre pontos fracos da acusação, ele
rebatia sem estridência que achava que o problemas não eram as provas, mas a
política: seria muito difícil para Supremo enfrentar a pressão da mídia.
Para ele, os jornais e revistas haviam transformado a AP 470 em sua causa — e
não admitiriam uma derrota no final, mesmo que não houvesse um base jurídica
para tanto. Já enxergava a criminalização, embora não usasse a palavra.
Márcio Thomaz Bastos foi o primeiro a definir os crimes da
AP 470 como casos típicos de Caixa 2. Num país onde se debatia sem oxigênio e
sem disposição para ouvir as partes, a análise foi descartada como simples
“estratégia da defesa.” Claro que era uma estratégia de defesa.
O problema é que, com o passar do tempo, e com um exame mais
sereno das provas e alegações da acusação, está claro que não se conseguiu
demonstrar outra coisa. O desvio de recursos públicos, base de toda a
denúncia, foi desmentido por uma auditoria do próprio Banco do Brasil, que
seria o principal prejudicado.
Em agosto de 2012, no primeiro dia julgamento da AP 470,
Márcio Thomaz Bastos apresentou uma proposta de desmembrar o processo. Em
respeito ao que diz a Constituição, ele queria separar os réus em dois blocos.
Aqueles que tinham direito a foro privilegiado seriam julgados no STF. Os demais,
bloco que incluía 9 entre 10 acusados, seriam julgados pela Justiça
comum, em primeira instância, com direito a um segundo grau de jurisdição em
caso de condenação. O pedido foi derrotado por 9 votos contra 2. Determinados
advogados da defesa sequer se empolgaram com a ideia. Convencidos de que seus
clientes não poderiam ser condenados com base em provas tão fracas, queriam
resolver aquela história rapidamente.
A história deu razão a Márcio Thomaz Bastos em dois
momentos. As penas enfrentadas pelos réus não só se mostraram muito severas,
mas foram agravadas artificialmente, para que ficassem um tempo maior na
prisão,
Já os réus do mensalão PSDB-MG, beneficiados pelo
desmembramento, ainda aguardam pelo encerramento da primeira fase do
julgamento, numa Vara de Belo Horizonte. Nenhum foi condenado até hoje. Quando
isso acontecer — se acontecer — terá direito a segunda instância. Está certo.
Está na lei, na Constituição. Dois réus do mensalão PSDB-MG tinham foro
privilegiado. Um era deputado. O outro, senador. Os dois renunciaram a seus
mandatos quando seu julgamento no STF iria começar. Nos dois casos, o mesmo
Supremo atendeu ao pedido para que fossem julgados em primeira instância.
Ninguém se lembrou do pedido de Márcio Thomaz Bastos nesta
ocasião. Mas estava claro que, com linhas muito, muito tortas, o futuro
lhe deu razão.