Há 57 anos, uma negra chamada Rosa Parks deu um
rolezinho sobre as prerrogativas dos brancos no transporte coletivo de
Montgomery, nos EUA
Por Saul Leblon, em Carta Maior
Rosa Parks ficou conhecida pela luta contra o racismo nos
Estados Unidos dos anos 50 (Foto: reprodução)
O Museu Henry Ford, em Detroit, nos EUA, guarda inúmeras
relíquias da história norte-americana sobre rodas.
O veículo no qual Kennedy foi baleado está lá.
Gigantescas locomotivas que desbravaram a expansão
ferroviária do país no século XIX ilustram, em toneladas de ferro e aço, o sentido
da expressão revolução metal-mecânica.
Perto delas, os esqueléticos Fords-bigode que deram origem à
indústria automobilística, de que Detroit foi a capital um dia, parecem moscas.
O museu abriga também um centenário ônibus da National City
Lines, de número 2857; um GM com o número 1132, que fazia a linha da Cleveland
Avenue na cidade de Montgomery, no Alabama, em 1 de dezembro de 1955.
A ocupação de um assento naquele ônibus mudaria
a história dos direitos civis nos EUA, promovendo um salto na luta pela
igualdade entre negros e brancos no país.
O verdadeiro símbolo do episódio não é o velho GM, mas a
costureira e ativista dos direitos dos negros, Rosa Park (1923-2005) ,que
naquela noite se recusou a ceder o lugar a um branco.
Rosa tinha 40 quando desafiou a física do preconceito no
Alabama dos anos 50, segundo a qual brancos e negros não poderiam
usufruir coletivamente do mesmo espaço, ao mesmo tempo.
Rosa Parks viveria mais 50 anos para contar e recontar esse
rolezinho sobre as prerrogativas dos brancos, que transformaria o velho GM em
um centro de peregrinação política.
Barack Obama ficou sentado por alguns segundos no banco de
onde Rosa Parks recusou se levantar para dar lugar a um branco, em 1955 (Foto:
Pete Souza/Casa Branca)
O último presidente a sentar-se no mesmo banco do qual ela
só saiu presa foi Barak Obama.
Em 2012, depois de alguns segundos em silencio no mesmo
lugar, ele disse: ‘É preciso um gesto de coragem das pessoas comuns para mudar
a história’.
Rosa Parks era uma pessoa comum até dizer basta a uma regra
sagrada da supremacia branca nos EUA.
Em pleno boom de crescimento do pós-guerra, quando
negros se integravam ao mercado de trabalho e de consumo norte-americano, eles
não dispunham de espaço equivalente nem no plano político, nem nos espaços
públicos, como o interior de um veículo de passageiros.
No Alabama, os bancos da frente dos ônibus eram exclusivos
dos brancos; os do fundo destinavam-se aos negros.
Detalhes evitavam o contato entre as peles de cores distintas:
os negros compravam seu bilhete ingressando pela porta da frente, mas deveriam
descer e embarcar pela do fundo.
À medida em que os assentos da frente se esgotavam, os
negros deveriam ceder seu lugar a um novo passageiro branco que embarcasse no
trajeto.
Rosa Parks estava fisicamente exausta aquela noite e há
muitos anos cansada da desigualdade que humilhava sua gente.
Ela recusou a ordem do motorista e não cedeu o lugar,
mesmo ameaçada. Sua prisão gerou um boicote maciço dos negros de Montgomery.
Durante longos meses, eles se recusaram a utilizar o
transporte coletivo da cidade, provocando atrasos nos locais de trabalho e
prejuízos às empresas de transporte.
Milhões de panfletos explicativos seriam distribuídos
diariamente; de forma pacífica, grupos de ativistas vasculhavam os pontos
de ônibus da cidade para convencer negros a aderir ao boicote.
Quase um ano depois, a lei da segregação dentro dos
ônibus foi extinta.
Neste sábado, um dos shoppings mais luxuosos de São Paulo, o
Iguatemi JK, cerrou as portas para impedir que movimentos sociais
fizessem ali um protesto contra a discriminação em relação aos pobres.
O Iguatemi foi um dos pioneiros a obter liminar na Justiça
de SP autorizando seguranças a selecionar o ingresso de clientes para
barrar a juventude dos rolezinhos – marcadamente composta de jovens da
periferia, pretos, mestiços e pobres.
A memória dos acontecimentos de 57 anos atrás em Montgomery
nos convida a perguntar:
- A exemplo das transportadoras racistas do Alabama, quantos
dias o Iguatemi de SP aguentaria de portas cerradas, cercado por
manifestações pacíficas e desidratado pela fuga de seus clientes
tradicionais?