"Me preocupa quando juízes do STF pensam como
taxistas"
Em entrevista à Carta Maior, o
cientista político Wanderley Guilherme dos Santos alerta o país sobre o perigo
do julgamento do “mensalão” se transformar em um julgamento de exceção, a partir
de uma reinterpretação da lei para atender a conveniência de condenar pessoas
específicas. “Me chama a atenção o preconceito de alguns juízes contra a
atividade política de partidos populares. Minha preocupação é quando a opinião
dos magistrados coincide com a dos motoristas de táxi, que têm opiniões péssimas
sobre todos os políticos".
Najla Passos
São Paulo - Nenhum preconceito contra os taxistas e nenhum
problema quanto ao fato deles manifestarem suas opiniões. A comparação só se faz
pertinente porque estudos sociológicos sérios demonstram que a categoria, mais
do que outras, é muito suscetível a opiniões extremadas, eivadas de
preconceitos, como a defesa da pena de morte e a propagação do lugar-comum de
que todo político é corrupto. “A minha preocupação é quando a opinião dos juízes
coincide com a dos motoristas de táxi”, afirma o analista político Wanderley
Guilherme Santos, que alerta para o perigo do julgamento do “mensalão” se tornar
um julgamento de exceção.
Embora considere bem justificados os votos
apresentados até agora pelos ministros do Supremo, o decano das Ciências Sociais
no Brasil se insurge contra o “discurso paralelo” em construção na corte, tão
eivado de preconceitos quanto o cientificamente observado entre os taxistas, que
poderá servir a conveniência de condenar pessoas específicas. “Me chama a
atenção o preconceito contra a atividade política de partidos populares. O que,
obviamente, reflete o preconceito contra a universalização do direito à
participação política, que é recente no Brasil”, afirma.
Confira a
entrevista:
- Em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, o
senhor disse que o julgamento do “mensalão” poderá vir a se transformar em um
julgamento de exceção. Por quê?
Ele pode vir a se transformar em
um julgamento de exceção, na medida em que viole as leis vigentes no país,
especificamente para atender ao que eu já chamei de “condenatório ad
hominem”, ou seja, que permita uma interpretação da lei para atender a
conveniência de condenar pessoas específicas. Se isso ocorrer, a implicação que
eu imagino que aconteça é que esses argumentos não venham a ser utilizados em
relação a mais ninguém.
- Nesta mesma entrevista, o senhor disse
também que, até agora, o julgamento tem apresentado um caráter técnico. Como o
senhor avalia essas inovações de jurisprudências, essas mudanças de
procedimentos poucos habituais que têm ocorrido?
Eu não sou
especialista em direito. Eu não estudo os códigos penais. Como analista
político, estou me guiando pelo que é apresentado na televisão. Mas a lógica é
um patrimônio genético. Em qualquer área de conhecimento, a lógica tem que ser
obedecida. E, até agora, embora pareça que nunca houve tanta reinterpretação em
um julgamento só, quando os ministros votam, para mim que não sou especialista,
mas estou dotado de alguma lógica, parece que eles buscam fundamentar bem,
apontar bem os pontos dos códigos vigentes, do Código Penal em particular, que
dão sustentação aos juízos, de condenação ou absolvição, que têm proferido.
Essa fundamentação, essa justificativa com base em códigos, em artigos,
em incisos, parágrafos, dá a impressão de que eles estão utilizando a legislação
vigente no país, ainda que, em alguns pontos, a estejam reinterpretando de forma
inédita. Por este motivo, a minha capacidade lógica não foi agredida até agora
pelas justificativas dos votos dos ministros. Mesmo quando eles interpretam
contrariamente, divergem em interpretações de fatos, me parecem que todos tem
tido cuidado em compatibilizar os votos com as regras e normas vigentes nos
códigos do país.
- Então, por que falar em julgamento de
exceção?
O me chama a atenção é uma diferença muito grande entre
a argumentação que justifica o voto e um “discurso paralelo” que nada tem a ver
com o que tem sido usado para fundamentá-lo. É como se fossem dois julgamentos:
um invisível, que faz parte de um discurso, de uma retórica paralela à discussão
oficial, e outro fundado nos autos, ainda que com discrepâncias de
interpretações. A minha preocupação é com este “discurso paralelo” que vai se
materializar em algum momento do processo.
- Este discurso paralelo
se desvela na própria dinâmica do julgamento ou é uma construção mais
reverberada pela mídia?
Sem dúvida, esse discurso está sendo
reverberado pela imprensa, pela corrente política de oposição e, também, pelas
opiniões de certas camadas populares. É normal que casos de grande repercussão,
de grande mobilização da opinião pública ou da opinião publicada, afetem a
opinião das pessoas. Isso ocorre não apenas neste julgamento, mais em qualquer
tipo de crime desses mais escandalosos. As pessoas têm sua opinião, o que é
absolutamente normal, embora nem sempre seja opinião mais correta. Nós temos
grandes exemplos de julgamentos, feitos não pela justiça, mas pelos jornais,
revistas e grupos de opinião, que, na verdade, se revelaram como grandes erros
de avaliação.
- O senhor pode citar um exemplo?
Eu
citaria o exemplo da Escola de Base, em São Paulo. Já tem muito tempo, mas o que
houve foi um julgamento fora do Judiciário, na verdade um linchamento da
reputação de um grupo de educadores, com acusações de pedofilia e abusos, e a
justiça posteriormente registrou que nada disso existia. Só que, até lá, essas
pessoas foram destruídas moralmente, profissionalmente. Mas isso acontece não só
no Brasil. Essa divergência de entendimento ocorre no mundo inteiro. E é por
isso que é fundamental um judiciário isento, que não aja de acordo com a
emoção.
- Então o problema central não é a imprensa ou a opinião
manifesta de determinados grupos sociais, mas o próprio Judiciário?
Que exista este juízo diferente na sociedade, nos órgãos de
imprensa, é natural. É bom que exista esta liberdade de pensar, ainda que com
base em um conjunto de informações às vezes não muito precisa. É assim que o
mundo anda, no Brasil e nos outros países. Não vejo nisto nada de patológico. A
forma com que essas opiniões se manifestam em atores políticos como a imprensa,
a televisão – que são atores políticos, devido à capacidade de liderança – às
vezes não é algo positivo, devido à intensidade e à precipitação. Mas não
atribuo a essas agências à responsabilidade pelo andamento do caso específico da
ação penal 470.
Atribuo a uma coisa, a meu ver, muito menos defensável,
que é um sistema de valores e preconceitos dos próprios juízes, que são seres
humanos, que às vezes concordam muito mais com valores emitidos pela imprensa,
ou por motoristas de táxi, que são sabidamente pessoas que reagem com posições
sempre muito extremadas. E isso não é preconceito contra os taxistas, é uma
informação de sociologia. Há estudos que apontam que essa categoria é muito
vulnerável às posições extremadas. Em pesquisas sobre pena de morte, por
exemplo, os taxistas são os mais extremados, tem um percentual altíssimo
favorável a pena de morte. Eles têm opiniões péssimas sobre todos os políticos,
sobre os que estão aí e os que estão por vir. Pois bem, a minha preocupação é
quando a opinião dos magistrados coincide com a dos motoristas de táxi.
- E isso está acontecendo? Os ministros do STF estão pensando como
os motoristas de táxis?
Isso aparece precisamente no discurso
paralelo: o preconceito contra a atividade política profissional, o preconceito
contra os políticos populares, o preconceito contra atividades cotidianas ou
generalizadas da política, que eles preferem considerar como sendo gerada por
uma conspiração maligna de certos tipos de pessoas, e não, muitas vezes, pelos
posicionamentos legais que fazem com que as pessoas ajam de certa maneira.
- O senhor se refere, mais especificamente, ao caixa dois de
campanha?
Sim, e eu tenho chamado a atenção para isso, para a
origem do caixa dois que todos os partidos fazem. A justiça eleitoral brasileira
faz uma sucessão de normas que, embora todas elas de boa fé, criaram uma
confusão, um sistema que condiciona à prática do caixa dois, que é simplesmente
um fluxo clandestino de financiamento de campanha. Mas, exatamente porque é
clandestino, favorece o cometimento de vários crimes, como subornos,
apropriações indébitas, desvios de dinheiro, que nada tem a ver com o ilícito
inicial, que é o processo de financiamento ilegal de campanhas. E quando a gente
diz financiamento ilegal, as pessoas já ficam muito indispostas quanto a isso,
por conta da palavra ilegal. Mas só é ilegal porque existe uma norma contrária.
Se acabar a ilegalidade, tudo isso passa a ser do bem.
É o que
acontecerá quando se legalizar o uso de maconha, que é algo defendido, por
exemplo, elo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Hoje, pessoas que compram,
que estão envolvidas com drogas, são chamadas de quadrilheiros, de criminosos,
uma série de adjetivos muito pesados, porque a lei impõe isso. Como era até
recentemente com quem praticava o aborto de anencéfalos. Porque até este próprio
STF decidir que não era crime, as grávidas que se submetiam ao aborto em virtude
desta tragédia eram consideradas assassinas, com agravantes. Os médicos que
procediam a defesa da saúde dessas mulheres eram outros assassinos, porque é
esta a terminologia jurídica.
Bastou uma decisão do mesmo STF que falava
em assassinos para que eles passarem a ser protegidos e defendidos, por exemplo,
da opinião religiosa que proíbe isso. Veja como o preconceito transforma pessoas
normais em assassinos e, de repente, as retransforma e as tornas pessoas normais
outra vez. Então, no caso do caixa dois, meu medo é em relação a este discurso
paralelo, que tem embasamento em preconceitos pré-democráticos contra a
atividade política, sem examinar a origem de certos processos ilícitos, que não
está na atividade política porque ela seja maligna, mas sim condicionados por
legislação que pode mudar de uma hora para outra.
- O senhor falou
em preconceitos pré-democráticos contra a atividade política. Mas me parece que,
neste julgamento, há outros fatores. No caso do “mensalão” do PSDB, por exemplo,
os deputados que receberam dinheiro do “valerioduto” não foram sequer
denunciados pelo MPF, que entendeu que se tratava de mero caixa dois de
campanha. No mensalão do PT, os deputados que sacaram dinheiro do mesmo
“valerioduto” não só foram denunciados como, ao que tudo indica, serão também
condenados. Não haveria também um preconceito de classe?
Esse
preconceito de classe contra a atividade política de partidos de origens
populares existe, sem dúvida. Então, há atividades que são piores consideradas
para determinados partidos que têm origem popular, até porque isso é uma
novidade na história do Brasil e fere a sensibilidade de quem ainda não digeriu
isso bem. E leva tempo mesmo para digerir a participação de grandes massas na
vida política. Eu acho que existe um descompasso grande entre o comportamento do
Supremo em causas sociais em geral, nas quais ele tem se mostrado modernizador,
e em relação a um caso como este, em que alguns juízes manifestam um preconceito
contra a atividade política de partidos populares. Sem dúvida.
E,
certamente, isso pode ajudar a entender a diferença de comportamento entre a
ação penal 470, contra partidos populares, e fundamentalmente o principal deles,
o PT, e as que envolvem os demais. Eu não sou militante de partido nenhum, mas é
óbvio que a política brasileira mudou com o surgimento do PT, dentro de um
contexto em que mesmo os partidos mais de esquerda, os mais avançados,
representavam a classe média ilustrada, como o Partido Socialista Brasileiro
(PSB) e até o Partido Democrático Trabalhista (PDT). O ponto fundamental é que
preconceito de classe pode haver. Mas é algo para ser investigado com um pouco
mais de cuidado. O que tem me chamado a atenção é o preconceito contra a
atividade política de partidos populares. O que, obviamente, reflete o
preconceito contra a universalização do direito à participação política, que é
recente no Brasil.