terça-feira, novembro 22, 2011

15/11/2011, Julian Brookes, Rolling Stone Review
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
“Se o povo é bem informado”, escreveu um Thomas Jefferson ainda otimista, “o povo pode governar-se bem, ele mesmo”. OK, mas... e se o povo só recebe ou bobagens e opiniões mal construídas, ou só deliberadas mentiras, como informação?
Praticamente todos os desafios que países e povos enfrentamos hoje – da mudança climática às doenças e à explosão demográfica – implicam conhecimentos de ciência e tecnologia. Se nós – nós, o povo – tivermos de decidir sobre o que fazer para sobreviver a esses desafios, e se se esperam de nós decisões adequadas, é preciso que conheçamos, pelo menos, um pouco da ciência básica envolvida nesses desafios. O problema é que não sabemos, pode-se dizer, coisa alguma do que teríamos de saber.
O escritor e professor Shawn Lawrence Otto diz em seu novo livro, Fool Me Twice: Fighting the Assault on Science in America [Me engane de novo: contra o assalto à ciência, nos EUA] [1], que a maioria dos cidadãos norte-americanos são ou absolutamente ignorantes de questões científicas, ou ativamente contra o conhecimento científico, ou as duas coisas. E vale o mesmo também para os políticos e os jornalistas: todos tão completamente ignorantes de questões científicas quanto a maioria dos cidadãos (e, isso, para nem falar dos altos executivos de grandes empresas, para os quais qualquer movimento no campo da mudança climática, por exemplo, é imediatamente tratado como ameaça existencial aos ‘negócios’). Milhões de cidadãos norte-americanos creem firmemente que a mudança climática é lenda urbana; que vacinas provocam autismo; milhões creem – como Newt Gingrich repete sempre – que pesquisas com células tronco implicam assassinato de criancinhas.
Voltando ao que disse Thomas Jefferson, como podemos nos governar democraticamente bem – como poderemos enfrentar os gigantescos desafios à nossa frente – se somos cidadãos sempre miseravelmente mal informados? Ou, nas palavras do próprio Otto: “Como a democracia conseguirá funcionar, num século dominado por ciência muito complexa, quando a ciência afeta todos os campos da vida?” A resposta, no livro, é curta: a democracia não pode funcionar nessas circunstâncias, e não funciona. A menos que se promovam grandes mudanças, mudanças no modo como os alunos estudam ciência, no modo como os jornalistas escrevem sobre ciência, no modo como os cientistas explicam-se e explicam o próprio trabalho à opinião pública, e no modo como o dinheiro hoje opera na política, também, é claro, na política dita “democrática”.
Conversamos com Otto pelo telefone, sobre o relacionamento disfuncional entre a ciência e os EUA. Eis alguns trechos da conversa.
É ainda mais difícil ser “bem informado” hoje, que no tempo de Jefferson
Jefferson acreditava que não se exigia nenhuma educação formal para que o povo fosse capaz de votar e governar-se bem, mas a ciência fez aumentar muito o que sabemos em geral e o que absolutamente não sabemos; e fez aumentar também os problemas do mundo político em que vivemos. Hoje é indispensável uma boa educação científica, para compreender o mundo. Mais cedo ou mais tarde, teremos de enfrentar esse problema, que só aumentará à medida que o século avance.
Os políticos que nos representam são “analfabetos científicos”
Considere 94 dos 100 deputados do Partido Republicano recentemente eleitos para o Congresso dos EUA e que ou declararam que a mudança climática não passaria de lenda urbana ou que disseram que haviam assinado manifestos contra qualquer tentativa de mitigar os efeitos da mudança climática. São declarações e manifestos que contrariam todas as evidências já apresentadas por governos em todo o mundo, inclusive pelo governo dos EUA. O mesmo vale para gente como John Boehner, que defendeu a volta das teorias criacionistas aos currículos escolares, e disse que os especialistas em climatologia ensinam que o dióxido de carbono seria cancerígeno.
A posição de Obama sobre a ciência
Quando candidato, Obama não deu sinais de entender muito das questões de ciência. Sabe-se que Obama não aceitou um convite para fazer um debate de campanha eleitoral sobre questões científicas, que seria distribuído nacionalmente pela rede de televisão e rádio públicos dos EUA. Preferiu participar de debates sobre religião. Mas Obama parece ter mudado de posição e ter percebido que há questões científicas envolvidas em praticamente todos os problemas ainda não resolvidos que os EUA enfrentam hoje. Claro que a recessão ajudou a empurrá-lo para essa nova posição. Obama tomou uma decisão política entre ocupar-se com a mudança climática e ocupar-se com a assistência pública à saúde. Optou pela assistência pública à saúde e deixou a mudança climática para discutir depois das eleições de 2010. Foi erro de cálculo estratégico, que abriu caminho para que a oposição ocupasse o vácuo, na discussão para a opinião pública.
Liberais pró-ignorância
Não que não haja democratas pró-ignorância. Por exemplo, há alguns meses, a Comissão de Supervisão de San Francisco, absolutamente pró-Partido Democrata, aprovou, por 10 votos contra 1, uma lei que obriga as lojas que vendem telefones celulares a publicar advertências de que os telefones celulares podem causar câncer de cérebro, embora não haja nenhum estudo que sugira algum risco real.
Na esquerda, não faltam “naturistas” que pregam que as vacinas provocam autismo, o que também não é conhecimento estabelecido por método científico reconhecido.
Diferenças entre a ignorância da esquerda e a ignorância da direita
A ignorância, na esquerda, parece focada em preservar uma pureza original do corpo-espírito.
A direita foca questões do início da vida, aborto, contraceptivos e evolução das espécies – questões que mobilizam os fundamentalistas – ou são contra qualquer medida que vise a mitigar efeitos da mudança climática, sobretudo o que tenha a ver com proposição de leis e regulações em geral.
Os interesses das grandes empresas na promoção da ignorância
No caso da mudança climática. A simples observação e inúmeros estudos científicos desafiam hoje o núcleo duro dos imensos interesses econômicos investidos nos motores movidos a hidrocarbonetos. Empresas gigantes veem hoje todo o seu modelo de negócios ameaçado pelo conhecimento que a humanidade já acumulou. Por isso, nos últimos dez anos, investiram cerca de 2 bilhões de dólares em falsos institutos de pesquisa científica, que vivem de produzir falsa ciência, para manter ativada uma cortina de fumaça que visa a preservar a ignorância. E gastam fortunas em lobbies e em publicidade, também para preservar a ignorância.
O papel (nefasto) da empresa-imprensa de notícias
Algo estranho aconteceu com a atual geração de jornalistas, educados segundo a ideia pós-moderna de que a realidade objetiva não existiria. Apesar disso, a mesma geração de jornalistas noticia que o ser humano vive hoje por muito mais tempo que antigamente (a expectativa de vida duplicou), a produtividade da terra foi multiplicada por 35, para alimentar o maior número de vivos no planeta e o mundo mudou. A incongruência entre aquela ideia pós-moderna (a realidade não existiria) e os ‘fatos’ jornalísticos (que se pressupõe que existam, posto que são noticiados) acabou por levar os jornalistas a inventar um “falso equilíbrio” e a crer nesse falso equilíbrio: exibem ‘dois lados’ das histórias e deixam que o público decida o que seria a verdade objetiva (a qual, por hipótese pós-moderna, não existiria). É um falso equilíbrio. A imprensa hoje foge da responsabilidade (e do que é sua única razão de existir), nada investiga, vive de distribuir opiniões (que nunca passam de ignorâncias diferentes) e nada informa, de aproveitável, sobre o mundo.
A diferença entre teoria e opinião
A ciência é sempre saber precário, provisório, efeito do raciocínio indutivo. Os cientistas sabem disso e tomam todos os cuidados em jamais afirmar que alguma coisa é verdade imutável. Nem por isso se pode concluir que a precariedade, a provisoriedade do saber científico é opinião, no sentido de ‘puro palpite’. O saber científico, provisório e precário que seja, não equivale a um palpite comum. Não se pode pôr no mesmo nível e avaliar como se fossem equivalentes, um palpite ou uma opinião desejante e uma conclusão à qual se chegou por meio conhecido e demonstrável e que, em todos os casos, resistiu a medições e testes, e sobreviveu à crítica de pessoas que têm longo contato com o assunto, com as dificuldades específicas e os problemas específicos. Nada disso ‘resolve’ o problema da precariedade do conhecimento científico. Mas tudo isso obriga a desconfiar do falso equilíbrio que a ‘notícia’ de jornal oferece (ou finge oferecer) com suas opiniões e palpites desejantes. (...)
Sobre o título do livro “Me engane de novo”
Há uma frase do presidente Bush, não se sabe se autêntica ou não, mas que se disseminou, e reproduz um ditado que todos conhecemos: Me engane uma vez, e culpa é sua. Me engane de novo, e a culpa é minha. A maioria das pessoas não vive de estudar a ciência das coisas a ponto de ter argumentos para rejeitar uma ou outra verdade que lhe seja apresentada como tal.
E há uma anticiência, um movimento pró-ignorância, que encobre interesses econômicos gigantescos, desde os interesses de riquíssimas empresas-igrejas evangélicas e os interesses de empresas de petróleo e gás, até ideologias que justificam a existência de riquíssimas organizações de militantes (antivacinas, por exemplo, antiaborto ou outras), que se servem daquela anticiência que chega facilmente à opinião pública e não é contestada. É responsabilidade nossa, de cada um de nós, não se deixar enganar de novo com tanta frequência, pensando em nossa própria sobrevivência, na sobrevivência do planeta e, também, na sobrevivência da democracia.


Nota dos tradutores[1] OTTO, Shawn Lawrence, Fool Me Twice: Fighting the Assault on Science in America [Me engane de novo: contra o ataque à ciência nos EUA], NY: Rodale Books, 2011. Resenha em Harvard Law and Policy Review, 26/10/2011, (em inglês).


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