Declínio e Queda da Turma Toda
25/9/2011, Pepe Escobar, Tom Dispatch
Um sistema despido da própria essência
Número sempre crescente de especialistas concordam que a Ásia lidera o mundo, embora ainda só sirva para preencher vazios na narrativa ocidental da civilização. Mesmo assim, falar do “declínio do ocidente” é ideia perigosa. Referência histórica chave aí é o ensaio de Oswald Spengler, de 1918, com esse título. Spengler, homem de seu tempo, pensava que a humanidade funcionasse mediante sistemas culturais únicos e que ideias ocidentais não seriam pertinentes a, ou transferíveis para, outras regiões do planeta. (Contem essa aos jovens egípcios na Praça Tahrir.)
Spengler, é claro, capturou o zeitgeist [al. no orig. “espírito do tempo”] de outro século, dominado pelo ocidente. Via as culturas como organismos que vivem e morrem, cada uma com alma única. O leste, o oriente, seria “mágico”, e o ocidente, “faustiano”. Misantropo reacionário, estava convencido de que o ocidente já alcançara o estágio supremo possível para civilização democrática – e, portanto, estaria destinado a conhecer o “declínio”.
Se lhe ocorreu que a coisa soa parecida com “choque de civilizações” huntingtonesco avant-la-lettre, não é pecado, porque se trata disso, exatamente.
Por falar em choques civilizacionais, será que alguém percebeu um tom de “pode até ser”, em recente matéria de capa da revista TIME, que retoma temas spenglerianos, sob a manchete “Declínio e Queda da Europa (e talvez do ocidente)”? Nesse nosso momento pós-Spengleriano, o “ocidente” é com certeza os EUA, e como aquela revista poderia ter suposto que não seria? Talvez? Uma Europa hoje sob profunda crise financeira estará com certeza “declinante”, enquanto permanecer inextricavelmente entrelaçada com, e sempre curvada para, “o oeste” – quer dizer, Washington –, apesar de testemunhar a simultânea ascensão econômica do que, às vezes pejorativamente, é chamado “o sul”.
Pensem no atual momento capitalista global, não como “clash” [choque], mas como “cash” [venda a dinheiro] de civilizações.
Se Washington está zonza, operando no piloto automático, acontece em parte porque, historicamente falando, seu momento como “única superpotência” do globo, ou, mesmo como “hiperpotência”, mal durou os notórios 15 minutos de fama de Andy Warhol – da queda do muro de Berlin e colapso da União Soviética, até o 11/9 e a doutrina Bush. O novo século americano consumiu-se em três atos carregados de húbris: 11/9 (o contragolpe); invasão do Iraque (guerra preventiva); e quebradeira de Wall Street em 2008 (capitalismo de cassino).
Simultaneamente, se pode argumentar que a Europa ainda preserva suas oportunidades não-ocidentais, que, de fato, a periferia sonha cada vez mais com subtítulos europeus – não norte-americanos. A Primavera Árabe, por exemplo, focou-se em democracias parlamentares ao estilo europeu, não no sistema presidencial americano. Além disso, por mais financeiramente ansiosa que esteja, a Europa ainda é o maior mercado do mundo. Em vários campos tecnológicos, rivaliza hoje, ou ultrapassa, os EUA, enquanto monarquias regressivas do Golfo Persa recorrem ao euro (e compram propriedades imobiliárias de luxo em Paris e Londres) para diversificar os portfólios.
Com ‘líderes’ como o neonapoleônico Nicolas Sarkozy, David (das Arábias) Cameron, Silvio (“bunga bunga”) Berlusconi e Angela (Dear Prudence) Merkel, que ou não têm imaginação ou têm competência, a Europa, com certeza, não precisa de inimigos. Mas, declinante ou não, a Europa ainda pode encontrar outro amor na vida, se puser de lado o atlanticismo e apostar pesadamente em seu destino euroasiático. Pode abrir as sociedades, economias e culturas à China, Índia e Rússia, e pode empurrar o sul da Europa para que se conecte mais profundamente com a ascendente Turquia, o resto do Oriente Médio, a América Latina e a África (e, para isso, não precisa convocar mais bombardeios ‘humanitários’ da OTAN).
Verdade é que os fatos em campo falam de algo que vai bem além do declínio do ocidente: falam do declínio de um sistema ocidental que, nos últimos anos, foi despido de sua essência. O historiador Eric Hobsbawm captou o espírito do momento, quando escreveu em How to Change the World [Como mudar o mundo] que “o mundo transformado pelo capitalismo”, que Karl Marx descreveu em 1848, “em passagem de eloquência lacônica, sombria, é reconhecidamente o mundo do início do século 21”.
Numa paisagem na qual a política está sendo reduzida a espelho (quebrado) que reflete as finanças, e no qual produzir e poupar foram superados por consumir, pode-se já ver alguma coisa sistêmica. Como no verso famoso de William Butler Yeats, “o centro já não se mantém” [orig. the center cannot hold] – e não se manterá [como centro coeso].
Se o ocidente deixa de ser o centro, o que, precisamente, deu errado?
Você está comigo, ou contra mim?
Vale a pena lembrar que o capitalismo foi “civilizado” graças à incansável pressão de incansáveis, resolutos movimentos da classe trabalhadora e a sempre presente ameaça de greves e, até, de revoluções. A existência do bloco soviético, modelo alternativo de desenvolvimento econômico (embora distorcido), também ajudou. Para apresentar-se como contraponto à URSS, os grupos dominantes em Washington e na Europa tiveram de comprar o apoio de suas massas, defendendo o que ninguém jamais se envergonhou de chamar de “o modo de vida ocidental”. Forjou-se complexo contrato social, que implicou o capital fazer concessões.
Agora, acabou. Já nada é assim em Washington, o que é óbvio. E cada vez menos é assim tampouco na Europa. Aquele sistema começou a fazer água – isso, sim, é total triunfo de uma ideologia! –quando o neoliberalismo tornou-se único sucesso da cidade. Abriu-se uma supervia expressa que partia diretamente dali, e levou todas as tendências mais frágeis da classe média diretamente para a situação de novo proletariado pós-industrial, ou, simplesmente, para o status de inempregáveis.
Se o neoliberalismo parece ainda vitorioso, é porque não há modelo realista, alternativo, de desenvolvimento. E, mesmo assim, o que o neoliberalismo possa ter ganho é muito discutível. Simultaneamente, os progressistas do mundo estão paralisados, como que esperando que a velha ordem derreta, ela mesma. Infelizmente, a história ensina que, como em encruzilhadas semelhantes no passado, o mais provável é que, à frente, se encontrem as vinhas da ira, ao estilo populista de direita, como tudo – ou, ainda pior, declarado fascismo.
“O ocidente contra o resto” é fórmula simplista que não basta nem para começar a descrever esse mundo. Imagine-se, em vez disso, um planeta no qual “o resto” tente ultrapassar o ocidente por várias vias, mas já absorveu o ocidente de vários modos ainda não descritos porque profundos demais. Aí está a ironia: sim, o ocidente “declinará”, Washington inclusive, e, mesmo assim, deixará ocidente por todos os cantos.
Sorry, esse modelo já era
Suponha que você seja país em desenvolvimento, comprando no supermercado desenvolvimental. Você olha para a China e pensa que vê algo novo – um modelo consensual que acende todas a luzes em todos os lugares – ou você mesmo as acende? Afinal, a versão chinesa de boom econômico sem liberdade política pode não ser modelo a ser escolhido por outros países. Em vários sentidos, pode ser mais como artefato letal não aplicável, bomba de ação retardada feita de restos do conceito ocidental de modernidade, que se casou com fórmula de base leninista, e um único partido controla as pessoas, a propaganda e – crucialmente importante – também o Exército de Libertação do Povo.
Ao mesmo tempo, esse sistema está evidentemente tentando provar que, apesar de o ocidente ter unificado o mundo – do neocolonialismo à globalização –, isso não implica que tenha de governar o mundo para sempre, material e intelectualmente.
Por seu lado, a Europa comanda um modelo de integração supranacional, como meio para resolver problemas e conflitos, do Oriente Médio à África. Mas qualquer lojista já consegue ver evidências de que a União Europeia está à beira do esfacelamento, europeus bicam-se sem parar, inclusive com revoltas nacionais contra o euro, ira contra o papel da OTAN-Robocop global, e tanta arrogância cultural que a Europa já não tem capacidade, sequer, para entender – só para dar um exemplo – por que o modelo chinês faz tanto sucesso na África.
Ou digamos que nosso lojista olhe para os EUA, que, afinal, ainda é a economia n. 1 do mundo, seu dólar ainda é moeda mundial de reserva, e seu exército ainda é n. 1 em poder de destruição e ainda mantém o globo sob cerco militar. Seria visão impressionante, não fosse o fato de que Washington está em visível declínio, oscilando furiosamente entre um populismo manco e uma ortodoxia rançosa, e fazendo divulgação de um capitalismo de cassino, como ‘bico’, num beco, no tempo livre. É poder gigante, tomado de paralisia política e econômica à vista de todo o planeta, e não menos visivelmente incapaz de oferecer qualquer estratégia de saída.
Francamente, você compraria o modelo de qualquer desses? Onde, afinal, em mundo cada dia mais em desarranjo, alguém deveria procurar modelos, hoje em dia?
Uma das principais razões da Primavera Árabe foi o completo descontrole dos preços dos alimentos, carestia gerada, significativamente por especulação. Os protestos na Grécia, Itália, Espanha, França, Alemanha, Áustria e Turquia foram consequência direta da recessão global. Na Espanha, cerca de metade da população que tem hoje 16-29 anos – uma “geração perdida” hiper educada – está hoje desempregada, recorde europeu.
É o pior da Europa, mas na Grã-Bretanha 20% dos que têm 16-24 anos estão desempregados, mais que a média do resto da União Europeia. Em Londres, quase 25% da população em idade de trabalhar está desempregada. Na França, 13,5% da população é hoje oficialmente pobre – os que vivem com menos que 1.300 dólares/mês.
Como muitos em toda a Europa Ocidental estão vendo, o estado já rompeu o contrato social. Os indignados de Madrid colheram perfeitamente o espírito do momento: “Não somos contra o sistema. O sistema é que é contra nós.”
Vê-se aí a essência do abjeto fracasso do capitalismo liberal, como David Harvey explicou em seu livro mais recente O Enigma do Capital. Mostra claramente que uma economia política “de empobrecimento em massa, de práticas predatórias que chegam ao assalto à luz do dia, sobretudo contra os mais pobres e vulneráveis que a lei não protege, tornou-se ordem do dia.”
A Ásia salvará o capitalismo global?
Pequim por sua vez está ocupadíssima remixando o próprio destino como Império do Meio global – arregimentando engenheiros, arquitetos e trabalhadores de infraestrutura do tipo que não bombardeia, do Canadá ao Brasil, de Cuba a Angola –, para deixar-se distrair muito pelos trabalhos atlanticistas no Oriente Médio e Norte da África [ing. Middle East and Northern Africa, MENA).
Se o ocidente tem problemas, o capitalismo global vive momento de retomada – não se sabe por quanto tempo –, com a emergência de uma classe média asiática, não só na China e Índia, mas também na Indonésia (240 milhões de pessoas, em modo ‘boom’) e no Vietnã (85 milhões). Nunca canso de deslumbrar-me quando comparo as maravilhas instantâneas e a bolha imobiliárias que se veem hoje na Ásia e o que havia quando vivi lá, em 1994, e aqueles países ainda viviam tempos de “tigre asiático”, antes da crise financeira pré-1997.
Só na China, 300 milhões de pessoas – ‘apenas’ 23% da população chinesa total – vivem hoje em áreas urbanas de médio a grande porte e recebem o que sempre se chamou “rendas das quais podem dispor”. Constituem, de fato, uma nação ‘só deles’, uma economia já equivalente a 2/3 da economia alemã.
O McKinsey Global Institute observa que a classe média chinesa compreende hoje 29% dos 190 milhões de lares do Império do Meio, e em 2025 alcançará espantosos 75% de 372 milhões de lares (se, claro, o experimento capitalista chinês não tiver, até lá, despencado de algum precipício, e a bolha imobiliária/financeira não explodir e afogar, na enxurrada, a sociedade).
Na Índia, com população de 1,2 bilhões, já há, segundo o Instituto McKinsey7, 15 milhões de lares com renda anual superior a 10 mil dólares; em cinco anos, as projeções indicam que serão 40 milhões de lares, ou 200 milhões de pessoas, naquele patamar de renda. E na Índia em 2011, como na China em 2001, a única saída é para cima (outra vez: enquanto durar essa retomada).
Aos norte-americanos, esses números talvez pareçam surreais (ou talvez comecem a preparar as malas de migrantes), mas renda anual de menos de 10 mil dólares/ano significa viver confortavelmente na China ou na Indonésia, enquanto, nos EUA, com renda familiar média de cerca de 50 mil dólares/ano, vive-se, praticamente, como pobre.
Nomura Securities prevê que, em apenas três anos, as vendas no varejo serão maiores na China que nos EUA e que, assim, a classe média asiática pode, sim, “salvar” o capitalismo global por algum tempo – mas a preço tão alto, que a Mãe Natureza já deve estar conspirando, arquitetando vingança catastrófica, no que se chamava antigamente de ‘mudança climática’ e já se chama hoje, expressivamente, de “tempo esquisito”.
De volta aos EUA
Enquanto isso, nos EUA, o laureado presidente Barack Obama, Prêmio Nobel da Paz, continua a insistir em que todos vivemos num planeta EUA, excepcionalismo e tudo. Se essa cantilena tem eco doméstico, nem por isso é fácil de vender em mundo real no qual o primeiro jato de combate stealth [invisíveis nos radares] chinês será testado publicamente durante a visita do secretário de Defesa dos EUA à China. Ou quando a agência de notícias Xinhua, fazendo coro ao mestre Pequim, esbraveja contra os políticos “irresponsáveis” em Washington que participaram do recente circo do aumento do teto de endividamento; e aponta para a fragilidade de um sistema “salvo” da queda livre por promessa do Fed de fazer chover dinheiro gratuito sobre os bancos por, no mínimo, dois anos.
Washington não está sendo exatamente inteligente, ao confrontar a liderança de seu principal credor, dono de 3,2 trilhões de reservas em moeda norte-americana, 40% do total global, sempre intrigado pela continuada exportação letal de “democracia para idiotas”, das praias dos EUA para as zonas de guerra no Af-Pak, Iraque, Líbia e outros pontos quentes no Grande Oriente Médio. Pequim sabe bem que qualquer nova turbulência que os EUA provoquem no capitalismo global pode afetar as exportações chinesas, levar a colapso a bolha imobiliária-proprietária chinesa, e lançar as classes trabalhadoras chinesas em clima emocional de revolução linha (muito) dura. O que significa – apesar do que digam vozes estridentes à maneira de Rick Perry/Michele Bachmann nos EUA – que não há qualquer conspiração chinesa “do mal” contra Washington ou o ocidente.
De fato, por trás da reverência que a China prestou à Alemanha (“principal exportador do ocidente” e “fábrica do mundo”) há significativa quantidade de produção controlada, mesmo, por empresas dos EUA, europeias e japonesas.
Mais uma vez, o declínio do ocidente, sim – mas o ocidente já está tão profundamente presente na China, que não desaparecerá assim tão simplesmente nem tão rapidamente. Ascenda ou decline seja quem for, ainda permanece no mundo, como se vê hoje, um único sistema de desenvolvimento de comprar e comprar, que já está praticamente frito no Atlântico, e em pleno boom no Pacífico.
Se todas as esperanças de Washington sobre “mudar” a China são miragem, no que tenha a ver com o monopólio global do capitalismo, quem sabe que tipo de realidade nos espera?
Terra Desolada Redux
Os proverbiais bichos papões de nosso mundo – Osama, Saddam, Gaddafi, Ahmadinejad (curioso: são todos muçulmanos!) – foram criados para funcionar como miniburacos negros, atraindo para eles todos os nossos medos. Mas não salvarão o Ocidente, do declínio, nem salvarão a ex-única superpotência, de pagar por seus erros.
Paul Kennedy, de Yale, aquele historiador do declínio, nos lembra que a história varrerá a hegemonia dos EUA, certo como depois do verão vem o outono (certo como o colonialismo europeu foi varrido, apesar das guerras ‘humanitárias’ da OTAN). Em 2002, ainda na onda da invasão do Iraque, Immanuel Wallerstein, especialista em sistema-mundo, pôs o debate em termos claros, em seu livro O Declínio do Poder Americano: a questão não é se os EUA estão em declínio ou não, mas se encontrarão modo de desabar com graça, sem causar excessivo dano a eles mesmos ou ao mundo. A resposta, nos anos que transcorreram de lá até hoje é bem clara: não.
Quem tem dúvidas de que, dez anos depois dos ataques do 11/9, a grande história global de 2011 foi a Primavera Árabe, ela mesma, sim, um subenredo do declínio do ocidente? Com o ocidente sucumbido num pântano de medo, islamofobia, crises financeira e econômica e até, na Grã-Bretanha, levantes de rua e saques, do Norte da África ao Oriente Médio as pessoas arriscam a vida para obter uma pitada de democracia à moda ocidental.
Claro, aquele sonho foi pelo menos parcialmente destroçado pela medieval Casa de Saud e seus asseclas do Golfo Persa, que impuseram feroz estratégia de contrarrevolução, com a ajuda prestimosa da OTAN, para alterar a narrativa, com sua campanha de bombardeios ‘humanitário’, e reafirmar a grandeza do ocidente. Como disse o secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen, sem meias palavras, “Quem não consiga manter tropas além das próprias fronteiras não terá influência internacional, e o vácuo será ocupado por potências emergentes que não necessariamente partilham nosso pensamento e nossos valores.”
Assim chegamos a 2011, o ano andando para o inverno. No que tenha a ver com Oriente Médio e Norte da África, o negócio da OTAN é manter EUA e Europa no jogo, os países BRICS fora dele, e os ‘nativos’, cada um no seu canto. Enquanto isso, no mundo atlântico, as classes médias mal se seguram em silencioso desespero; no Pacífico, a China segue em boom; e globalmente o mundo espera, sem respirar, pelo momento em que o próximo sapato econômico seja jogado contra o ocidente (e pelo seguinte, depois do próximo).
Pena não haver um neo-T.S. Eliot que faça a crônica dessa terra desolada, em farrapos, neomedievalista, em que se vai convertendo o eixo atlanticista. Quando o capitalismo chega à unidade de terapia intensiva, quem paga a conta do hospital são os mais vulneráveis – e a conta é invariavelmente paga em sangue.
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