Por José Luis Fiori*
Os animais se dividem em:
a) pertencentes ao imperador;
b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões,
e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade,
h) incluídos na presente classificação,
i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis,
k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo,
l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha,
n) que de longe parecem moscas
M. Foucault, “Uma certa enciclopédia chinesa”,
Bastou um mês para que as pessoas mais avisadas percebessem que Jair
Bolsonaro e seus aliados mais próximos não têm preparo nem estatura para
governar um país com 210 milhões de habitantes, que está dividido e
destruído moralmente, literalmente caindo aos pedaços. Nesse mesmo
tempo, ficaram visíveis também as divisões e as lutas internas dentro
dessa coalizão que se formou às pressas para barrar o caminho eleitoral
de Luiz Inácio da Silva, e muitos analistas já preveem, para breve,
inclusive a “defenestração” de alguns membros do governo ou do próprio
presidente. De qualquer maneira, aconteça o que acontecer, no curto
prazo, existe uma questão mais importante que se mantém de pé e sem
resposta no longo prazo: qual é afinal o projeto de país deste governo?
Com ou sem Bolsonaro, o que é que este conglomerado tão heterogêneo
de pessoas está se propondo a fazer diante do desafio de uma economia
que está estagnada há anos; de uma sociedade que está cada vez mais
desigual e violenta; e de um povo que está cada vez mais pobre e sem
esperança de futuro para seus filhos e netos, que estão abandonando o
país. Dizer que se trata de um governo de extrema-direita, populista e
com impulsos fascistas não responde automaticamente a nossa pergunta,
porque existem muitos governos que hoje se definem da mesma maneira, em
vários lugares do mundo, e que são inteiramente diferentes entre si.
Tampouco resolve o problema dizer apenas que se trata de um “governo
militar”, apesar de que, de fato, já existam mais de 60 militares
ocupando postos de comando e posições técnicas em quase todos os
ministérios, autarquias ou empresas estatais do governo, além,
obviamente, do próprio presidente e seu vice-presidente. Provavelmente,
em maior número do que houve no governo do General Castelo Branco e seus
sucessores, durante o regime instalado pelo golpe militar de 1964. O
mundo mudou e as circunstâncias nacionais são muito diferentes, mas
assim mesmo, talvez esta comparação ainda possa ser a melhor pista para
entender e decifrar o futuro deste novo governo brasileiro. Senão
vejamos, começando por algumas semelhanças mais expressivas.
Em 1964, como hoje, os Estados Unidos apoiaram ativamente a derrubada
dos governos constituídos e depois ajudaram a sustentar os novos
governos militares que foram instalados. Nos dois casos, a coalizão
vitoriosa incluiu os militares, o Poder Judiciário junto com o STF, a
Igreja Católica, a imprensa conservadora e os partidos de direita,
sustentados pela burguesia financeira, mercantil e agroexportadora,
apoiados por setores populares e da classe média mobilizada pela
hierarquia católica. Além disso, em 1964, como agora, depois de assumir o
governo, os militares convocaram economistas ortodoxos e ultraliberais
para comandar a política econômica do governo, como foi o caso, de
Otavio G. de Bulhões e Roberto Campos, discípulos diretos de Eugenio
Gudin, que já havia sido Ministro da Fazenda do governo de transição,
depois do golpe militar que derrubou Vargas, em 1954. Por fim, em 1964
como agora, o governo do General Castelo Branco alinhou-se imediatamente
com a política externa dos EUA, apoiando o boicote econômico a Cuba, e
participando – em 1965 – da invasão de Santo Domingo, que depôs o
presidente eleito Juan Bosch, para colocar no seu lugar Joaquin
Balaguer, escalado pelo governo norte-americano. Mas apesar dessas
semelhanças, o futuro deste novo governo parece esconder-se nas
diferenças mais do que nas suas semelhanças com 1964.
A primeira grande mudança, e a mais visível, sem dúvida, foi o
deslocamento da Igreja Católica do centro do poder e sua substituição
por várias seitas evangélicas e neopentecostais. Esse novo grupo de
poder é o que mais chama atenção dentro do governo recém-instalado. Em
geral são fundamentalistas e usam uma linguagem extremamente agressiva
mas não propõem nada de concreto para o Brasil que não seja apenas a
propagação da sua própria fé. que é transcendental. Suas ideias e seu
conservadorismo têm raízes muito antigas e remontam às seitas
evangélicas norte-americanas. Mas é muito pouco provável que esse grupo
consiga impor suas obsessões morais à imensa parte da sociedade
brasileira, que é laica, moderna, liberal e cosmopolita. Desta facção
ideológica do governo, a principal ameaça que paira sobre o futuro do
país se concentra no campo da educação, que foi entregue a um teólogo
estrangeiro reacionário, agressivo e desrespeitoso com o povo
brasileiro; e no campo da política externa do país, que foi entregue a
um diplomata entusiasta de Donald Trump, com convicções milenaristas e
teses delirantes sobre a conjuntura internacional.
O segundo grande grupo ideológico do novo governo é formado por seus
economistas ultraliberais, e também aqui existem diferenças com relação
ao regime militar de 1964. Do ponto de vista retórico, todos repetem
sempre a mesma ladainha da desregulação dos mercados, da contenção dos
gastos públicos e da defesa do “Estado mínimo”, com a diferença de que,
em 1964, logo depois da estabilização inicial, os ultraliberais foram
substituídos pela heterodoxia pragmática e desenvolvimentista do
ministro Delfim Neto, que se mantém no governo durante o período do
chamado “milagre econômico” brasileiro que foi seguido pelo “salto a
frente” proposto pelo governo do General Geisel. Hoje a agenda dos novos
ortodoxos se reduz à reforma da Previdência e algumas privatizações,
sem nenhuma proposta, expectativa ou horizonte de maior fôlego que
mobilize ou interesse ao conjunto da sociedade brasileira. Deve-se
sublinhar, além disso, que essa mesma reforma da Previdência, somada às
privatizações, já foi experimentada em dezenas de países, nas duas
últimas décadas, sem ter nenhum impacto significativo sobre seu ritmo de
crescimento.
Por isso talvez muitas pessoas olhem hoje para o segmento militar do
novo governo brasileiro com a expectativa de que esteja ali o projeto de
futuro do país, sem se dar conta de que é exatamente neste lado do
governo que se encontra a maior diferença entre o passado e o presente. A
começar pelo fato de que, em 1964, as Forças Armadas assumiram o
governo como uma instituição hierárquica e de Estado, e hoje esses 60 ou
70 militares que estão no governo são da reserva, não compartilham as
mesmas posições ideológicas e estratégicas, e não pertencem mais a uma
mesma hierarquia de comando.
É fato sabido que, no século XX, os militares brasileiros tiveram
papel decisivo na elaboração e execução do “desenvolvimentismo
conservador” que orientou a estratégia econômica do Estado brasileiro,
entre a década de 30 e o final dos anos 70. O que não se diz, em geral, é
que desde o início do século XX, os militares brasileiros optaram por
uma aliança estratégica com os EUA para contrabalançar a aliança da
Argentina com a Inglaterra. Uma aliança que foi reforçada depois da
Segunda Guerra Mundial, no contexto da Guerra Fria, envolvendo o apoio
dos EUA ao projeto desenvolvimentista e conservador dos militares
brasileiros. O que era perfeitamente compreensível, uma vez que os
norte-americanos foram grandes promotores do desenvolvimentismo nos anos
1950 e 60. Neste sentido pode-se dizer, inclusive, que o sucesso
econômico do Brasil, depois da Segunda Guerra Mundial, foi mais um caso
de “desenvolvimento a convite” dos norte-americanos e dos europeus. Tudo
isto até o momento em que o projeto de “capitalismo de Estado” e de
“potência intermediária” do General Ernesto Geisel foi vetado e
interrompido, com ajuda decisiva dos próprios norte-americanos.
Hoje o mundo está em plena reconfiguração geopolítica e econômica,
mas os militares brasileiros seguem pensando como no século XX, de forma
binária e sem conseguir pensar uma nova estratégia na qual o Brasil não
está mais obrigado a considerar como seus adversários, aqueles que são
apenas concorrentes e inimigos dos EUA. A nova geração de militares
brasileiros não é menos inteligente nem menos bem-formada do que seus
antecessores do século XX. O que passou foi que eles perderam a bússola
estratégica e econômica do século passado, e estão com dificuldade de
retomá-la e refazê-la em sintonia com o século XXI. Talvez porque já não
contem com o apoio externo e a sustentação externa que lhes permitisse
retomar e refazer o projeto que eles mesmos ajudaram a construir no
século XX.
Ou seja, resumindo: neste momento o Brasil é uma nau sem comando e
sem rumo. Pior do que isso, o Brasil não possui hoje nenhum tipo de
utopia nem de estratégia de futuro.