Leitor da seção “O Globo há cinquenta anos”, recomendo sua
leitura por alunos e professores em sala de aula. Ali, quase diariamente,
encontra-se um repositório notável do atraso de nossa vida republicana, o que
nos possibilita conhecer o papel de nossa imprensa corporativa como eficiente
correia de transmissão da ideologia da Guerra Fria (importando um embate que
não nos dizia respeito e trazendo para cá a visão estadunidense),
invariavelmente de costas para os interesses nacionais, avessa aos interesses
populares e sempre atenta aos negócios do grande capital, principalmente o
capital internacional.
os grandes jornais sempre se opuseram ao nacional e
ao popular, e assim combateram a campanha do “Petróleo é nosso” e ainda hoje
rejeitam a Petrobrás. Foto: José Vieira Trovão / Ag. Petrobras
Escrevo “nossa imprensa” de forma proposital, pois O Globo não
era, não foi e não é uma exceção nesse servilismo aos interesses antinacionais
e, sobretudo, contrários ao desenvolvimento do país e a tudo que diga respeito
ao povo. O cheiro dos marmiteiros sempre ofendeu ao olfato sensível dos
comensais dos Le bec fin.
Por coerência, os grandes jornais sempre se opuseram ao nacional e ao
popular, e assim combateram a campanha do “Petróleo é nosso” e ainda hoje
rejeitam a Petrobrás e se arrepiam, irritadiços, sobressaltados, diante de
qualquer movimento que lhes possa sugerir o menor sintoma de nacionalismo (ou
defesa dos interesses nacionais) que possa pôr em risco o projeto do grande
Império. Ou de defesa do Estado. E sempre que este submerge, quem paga o pato
são os interesses da Nação e dos mais pobres.
Exemplar do que afirmo é a primeira página da edição do Globo do
dia 26 de abril de 1962. Depois de anunciar com alegria a “Primeira explosão
nuclear no Pacífico”, sem danos ambientais (embora também diga que “o
engenho lançado de um avião que voava a grande altitude, desencadeou numa força
explosiva calculada entre 20.000 e um milhão de toneladas de TNT”), o jornal
condenava a ameaça de aprovação do projeto do deputado Aarão Steinbruch que
instituía o 13º salário: “Os meios financeiros consideram altamente
inflacionária e de consequências desastrosas para a economia nacional a
implantação de um 13º salário”.
A previsão catastrofista vem no discurso do oráculo do conservadorismo de
então: “Deixando de lado a agricultura, para a qual faltam dados positivos, o
economista Eugênio Gudin calcula em cerca de Cr$ 80 bilhões a sobrecarga que o
aumento representaria no orçamento das empresas”.
Contam os fatos que o projeto foi aprovado e que sua aplicação acumula,
hoje, 50 anos de sucesso. Nenhuma empresa faliu por conta dele, o comércio
ganhou (e ainda hoje festeja a iniciativa) e começávamos ali a investir no que
até os ortodoxos reconhecem ser a alternativa de nossa economia, a saber, o
fortalecimento do mercado interno.
Na contramão da História, a mesma imprensa combatia, desde sua instituição,
tanto o salário mínimo (Decreto-Lei n.2 2.162 , de 12 de maio de 1940), quanto
seus reajustes anuais, sempre apontados como inflacionários. Assim, em 1954, o
anúncio de um reajuste de 100%, afinal concedido, provocou grande campanha de
imprensa, a edição de um famoso e subversivo “Memorial dos Coronéis” e, afinal,
a demissão do Ministro do Trabalho, João Goulart. Jamais aumentar salários,
jamais regular a remessa de lucros para o exterior, taxar as grandes fortunas e
as grandes heranças. Jamais estabelecer alíquotas crescentes do Imposto sobre a
Renda. Derrubar a CPMF e assim desfalcar o orçamento de nada menos que o
ministério da Saúde, ah! isso, sim… Para “destravar a economia”? Não. Seu
objetivo era reduzir o controle das movimentações financeiras.
Lembremo-nos de que um dos primeiros atos dos golpistas de 1964 foi a
revogação da lei de remessa de lucros…
Agora, já começa a mesma imprensa a dizer que o combate aos juros altos,
aumentando o crédito ao consumidor, pode constituir-se em agente inflacionário.
Todos os países do mundo podem ter juros mais baixos que o nosso e muitos deles
crescer em índices superiores ao nosso. Mas o Brasil, não. Esquecem-se os
catastrofistas, e esquecem propositalmente, que nosso país sempre cresceu por
força da expansão de seu mercado interno, responsável, ademais, pela
resistência de nossa economia ao abalos exógenos, de que é exemplo esta última
(no sentido de a mais recente) crise do capitalismo financeiro.
O panorama internacional é de desaceleração (e sabemos hoje que as
potências europeias não conhecem vacina para a crise, cenário persistente ainda
por muitos anos), principalmente na medida em que insistem na suicida política
recessiva, imposta unilateralmente (contra os países e suas populações) por uma
Alemanha governada pelos interesses dos banqueiros.
A desaceleração das grandes economias, seja qual for o comportamento da
China, cuja taxa de crescimento tende a decair sob controle (felizmente),
indica, para países como o Brasil, uma queda de suas exportações, principalmente
em setores como a exportação de produtos primários, commodities e
minérios.
Esse panorama, que assim se descreve desde a aceleração da crise, cobra da
economia brasileira o fortalecimento do mercado consumidor interno. Consumidor,
bem entendido, na medida em que tiver trabalho e renda.
O fortalecimento desse mercado interno – antigo e permanente pleito da
esquerda brasileira – é uma das mais significativas conquistas do governo Lula.
Para tal objetivo foi importante o Bolsa Família, foram importantíssimas as
políticas de transferências previdenciárias e de assistência social e o apoio à
agricultura familiar. Mas fundamental foi o aumento de algo como 60% do salário
mínimo. Essas medidas foram responsáveis, em seu conjunto, pela criação do que
se chama de Classe C (ou de uma nova classe C), cujo poder de compra é
equivalente a 12% do PIB.
Essa política é aprofundada pela presidente Dilma quando, corajosamente,
decide enfrentar a ganância do sistema financeiro insaciável e irresponsável,
impondo uma política de juros consentânea com nossa realidade e as necessidades
de nosso mercado, a saber, aumentando o acesso ao crédito, de que decorre o
aumento do poder de compra do mercado interno, a reativação do comércio e da
indústria, transformando em virtuoso o círculo vicioso da recessão que
aumentaria a recessão.
Nesse ponto identificamos um salto de qualidade da atual política, na
medida em que se livra dos grilhões do sistema financeiro (parasita por
definição) e se associa ao capital produtivo, construindo novas perspectivas de
vida para as grandes massas, sempre marginalizadas pelos monetaristas de
plantão.
Sabe-se, porém, que a nova política de Dilma, nada obstante sua decisão
pessoal, não seria exequível se o governo não dispusesse do tripé Banco do
Brasil-Caixa Econômica Federal-BNDES, quase privatizados pela insânia
neoliberal.
A política Lula-Dilma, assim, incorpora ao desenvolvimento sua fundamental
dimensão social, o acesso à cidadania das populações mais pobres.
Enquanto isso, do outro lado do Equador, as economias classicamente
desenvolvidas (EUA, Inglaterra e Japão, para não lembrar Grécia, Irlanda,
Espanha e Itália…) convivem com altas taxas de desemprego, baixíssimas taxas de
crescimento (tendendo para a estagnação) e no limiar da recessão, com seu
perverso custo político, as restrições ao Estado do bem-estar, a xenofobia, as
restrições ao livre-trânsito dos nacionais em suas fronteiras, e, mesmo, a
realimentação da direita, na França com o fortalecimento da herdeira de Le Pen e
na Grécia com o reaparecimento de um arremedo de nazismo, e como tal tanto
abjeto quanto grotesco.
A combinação de recessão, miséria e desemprego foram sempre o caminho mais
curto para a instauração das tiranias.
De outra parte, os países que se afastaram do monetarismo e do catecismo
neoliberal, como o Brasil, retomaram o crescimento, aumentaram suas taxas de
emprego e até aqui mantêm sob controle a ameaça da recidiva inflacionária, e,
assim, em situação melhor que os “ricos” a enfrentar a crise global, uma crise
do sistema privado que estourou no colo do setor público.
Por isso mesmo, cada vez mais consolidamos a opção democrática e começamos
a transitar da democracia formal (política), para o que, num amanhã ainda
distante, poderemos chamar de democracia real (à falta de denominação
mais adequada), aquela que realizará a justiça social.