Urariano MotaLa Insignia. Brasil, maio de 2006.
Nas fotos do terror, nas primeiras páginas dos jornais destes últimos dias, não aparece um só morto. De um só bandido morto, queremos dizer. Antes, no entanto, para os mortos do bem, para os mortos do lado bom, as fotos existiam e foram publicadas. Havia fotos dignas, havia o pranto e a dor de famílias, das mães, dos filhos, das mulheres dos soldados mortos em combate. É natural, é justo, corre o pensamento de todos sem que ninguém precise expressar isto em alta voz. "Por teu endurecimento, por teu coração impenitente, acumulas contra ti um tesouro de cólera para o dia da cólera, no qual se revelará o justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras", dizia São Paulo, na
Epístola aos Romanos.
Há neste momento, às 21 horas de 18.5.2006, cerca de 120 mortos, do mal, do lado do mal. "A reação da polícia aos ataques está sendo adequada", respondem em pesquisa de O Globo 80% das pessoas. Com isto declaram também que a reação do policial que mata bandido é justa, boa, urgente e necessária. É uma reação ditada pela moral e abençoada por Deus, bem poderiam falar. Faz sentido, somos levados a crer, pelo que a imprensa do Brasil permite instruir e educar. Se uma parte ruim invade o organismo, ela deve ser jogada ao fogo. Faz sentido porque o princípio universal do contraditório, de ouvir o outro lado, ontem e hoje, aqui e nesta hora no Brasil não tem cabimento. A progressão dos fatos noticiados foi linear e retilínea. Mas sem retidão, se permitem virar o cano de fogo para longe de quem escreve.
Na gênese e origem das primeiras páginas dos periódicos, tudo começou como uma resposta dos líderes do PCC, o Primeiro Comando da Capital, à sua transferência para cárceres isolados. Então os poderosos delinqüentes ordenaram, e quase todos presídios se rebelaram, e os coletivos, os ônibus foram queimados, policiais foram mortos, agências de bancos, talvez o maior crime, atacadas a tiros e bombas. Bandidos contra o patrimônio público. São Paulo parou, como raras vezes na sua história, a maior cidade da América Latina parou. Por criminosos, toda a cidade esteve dominada. O terror conforme a lei de bandidos. Os roedores escuros, a desordem oculta subira dos esgotos da metrópole. Isto exigia uma resposta urgente do poder público, sem dúvida. Ninguém pode viver debaixo do terror.
Que veio, primeiro pela via diplomática de um diálogo com as autoridades do PCC. Mas sem acordo, não houve acordo, como insistem as autoridades do governo de São Paulo, de modo ainda mais diplomático. Palavras, quando ajustadas e justas à realidade, ferem. Então os presídios, sem acordo, por encanto atingiram a graça do sossego. Em seguida, veio o que não poderia jamais entrar no acordo, o previsível e desejado, o fogo pesado da vingança. E aqui, mais uma vez, a imprensa brasileira mostrou como se usam as palavras, de costas para a realidade das praças e das ruas. Os policiais mortos pelos bandidos eram e são chamados de "vítimas". É justo, são vítimas. No entanto, os que, como dizê-los?, os que não são da polícia, recebem o nome de "suspeitos". 120 suspeitos executados à bala. Vejam a que ponto chegamos na hora do pânico, do terror. Admitimos, com a maior das tranqüilidades, que se matem suspeitos! É justo, admitimos com uma lógica que prima pelo bárbara concatenação. Nessa ordem: O policial tem que se precaver (1). Ele sabe onde estão os suspeitos (2). Não há tempo para desenvolvidas e pacientes investigações (3). Fogo (4).
Mas como chega a polícia ao conhecimento do suspeito? (1). Quem são os suspeitos mortos? (2). Resposta da polícia para ambas perguntas: - "Nada podemos dizer para não atrapalhar as investigações". Isto seria risível, cômico, se não se traduzisse em sangue. Os estúpidos podem matar, e matam, sob aplausos e aprovações de uma população aterrorizada. É natural, compreendemos. Se os suspeitos não somos nós, se os suspeitos não são os nossos filhos, que mal há se entre dez bandidos uns cinco sejam mortos por hipótese? Faz parte de uma lógica ainda mais infernal, que é, e abram bem os olhos e os ouvidos: os mortos, se não eram bandidos, mais cedo ou mais tarde iriam ser. É um trabalho profilático, de saudável e científica prevenção. E sabem por que iriam ser da turma do mal, com vírus cortado em pleno desenvovimento? São jovens e negros, os suspeitos. São moradores dos subúrbios periféricos os mortos. E não creiam, por favor, que isto afirma o preconceito de uma alma liberal. Se não crêem no que escrevemos até aqui, leiam o que diz o escritor Férrez, que vive e mora num subúrbio periférico de São Paulo. Com a palavra o escritor Férrez, em 17.5.2006 no seu blog:
"Atenção a todos os amigos. Apelo a todos que acompanham esse blog, que nos ajudem a dizimar o que está acontecendo.A Polícia Militar e a Polícia Civil, afetadas com a onda de matança, estão fazendo da nossa periferia um estado pra lá de nazista, já são mais de 100 "suspeitos"assassinados, e nenhum deles é PCC . Só de colegas foram mortos 4, isso pra não contar os que estão no hospital. Nenhum deles tinha passagem, por isso apelo para que divulguem a real de que o acordo não foi feito com o povo, o povo tá morrendo, sendo baleado pelas costas, ao entregar pizza, ao voltar para casa. A polícia covarde treme perante o olhar do ladrão, mas mata sem dó quem está simplesmente voltando para casa. Isso é uma vergonha, e se é o trabalho deles, tá na hora da gente fazer o nosso, reagir com cidadania, mostrando que não queremos essa matança. Lei marcial para pobres inocentes foi decretada. Ferréz"
Nesse ritmo de repressão e de frios assassinatos, o PCC ainda será o que a polícia anuncia: a maior organização criminosa de todos tempos em São Paulo. De fato e por hipótese.