Moradores do Jardim Panorama fizeram um protesto em frente ao estande de vendas do Parque Cidade Jardim, durante festa de lançamento do empreendimento de R$1,5 bilhão. Só a maquete de R$ 800 mil custou o equivalente a 53 casas populares. Caetano Veloso fez show exclusivo para potenciais frequentadores do complexo de luxo.
Por Paula Takada e Carolina Motoki - especial para a Carta Maior
SÃO PAULO - Cerca de 200 moradores da favela do Jardim Panorama, no Morumbi, realizaram uma manifestação na noite desta quarta (24), durante a festa de lançamento do Parque Cidade Jardim, complexo de luxo, auto- intitulada a "maior obra de São Paulo". A favela e um enorme shopping center, especializado em grifes internacionais, e várias torres residenciais e comerciais de alto padrão serão vizinhos, separados apenas por um muro com pouco mais de dois metros de altura.
Os cerca de 500 convidados que chegaram ao evento de lançamento do empreendimento – que contou com um show exclusivo de Caetano Veloso – logo de cara se depararam com a batucada dos manifestantes e com crianças segurando cartazes com frases como "Queremos moradia" e "Estamos de olho, não somos burros, sabemos dos nossos direitos". "Viemos dar as boas-vindas aos nossos futuros vizinhos", ironiza Karina Santos da Silva, 19 anos, representante dos moradores do Jardim Panorama.
Para que o show de Caetano Veloso, marcado para as 22h30, não fosse prejudicado, a produção da festa liberou a entrada do presidente da Associação dos Moradores do Jardim Panorama, Marcos Rosa da Silva, e de Karina, que leu no palco um manifesto da comunidade. Após a leitura, ela foi aplaudida por pessoas dos dois lados do muro.
Entre as reivindicações dos moradores está o cumprimento de leis como o Estatudo da Cidade, o Plano Diretor da Cidade de São Paulo, que define o Jardim Panorama como ZEIS 1 (Zona Especial de Interesse Social) e, portanto, área destinada a habitação de interesse social, e, principalmente, a Operação Urbana Faria Lima. Ela determina que parte da arrecadação seja destinada a habitação popular nas favelas do Coliseu (em frente à Daslu), Real Parque e Jardim Panorama.
RESISTÊNCIA
"O Morumbi não será mais o mesmo". É o que promete a publicidade do empreendimento Cidade Jardim, um complexo com 80 mil metros quadrados – localizado na Marginal Pinheiros entre as pontes Ary Torres e Morumbi, em São Paulo, – que vai abrigar um shopping center de alto luxo, o mais completo spa do país, nove torres residenciais e edifícios comerciais voltados para o público da classe "triplo A".
Também não será mais a mesma a vida dos 1.500 moradores do Jardim Panorama, favela que está cercada pelos muros do empreendimento. Aliás, o cotidiano dessas pessoas já não é o mesmo desde que os muros começaram a ser erguidos em março do ano passado.
Com o movimento crescente dos tratores e caminhões da obra e com a construção do estande de vendas das primeiras unidades residenciais, o fantasma da remoção, que periodicamente assusta os moradores, voltou a rondar com maior intensidade o Jardim Panorama, favela praticamente escondida pelos condomínios residenciais que a cercam.
Difícil de acreditar que a desconfiança mútua não afetará o cotidiano das 450 famílias da favela (a maioria instalada há mais de 20 anos e morando em barracos de alvenaria) e os moradores do empreendimento realizado pela construtora JHSF. Os dois extremos sociais estarão separados por pouco mais de dois metros de tijolos. O Morumbi, historicamente um bairro de contrastes, tem erguido enclaves de riqueza fora do centro expandido da cidade. Porém, nunca uma diferença foi tão acintosa quanto antes.
Tudo isso parece não incomodar o público de compradores. Questionada se a existência da favela não tem afetado os interessados, a assessoria de imprensa do empreendimento informou apenas que das 150 unidades colocadas à venda, 100 já foram vendidas.
A incômoda pergunta sobre a existência de algum projeto para remoção da favela ficou sem resposta pela assessoria. Resposta que tranqüilizaria os moradores, apreensivos com a possibilidade de serem retirados ou de terem de vender suas casas para a expansão ou "segurança" do empreendimento.
Da mesma forma, um outro silêncio constrangedor tem sido o dos veículos de comunicação, que ignoram a presença da favela e exaltam os números faraônicos do condomínio, que tem como um dos seus principais atrativos exatamente a segurança.
MORADORES SE ORGANIZAM
Apesar de a maioria das famílias estarem no Jardim Panorama há mais de 20 anos e terem direitos garantidos pelo Estatuto da Cidade, lei federal de 2001 que regulamenta a reforma urbana, elas não conhecem a fundo esses direitos e acreditam que estejam infringindo a lei. Essa situação, somada à baixa renda e as dificuldades financeiras dos moradores, faz com que eles se tornem suscetíveis a aceitar propostas muito baixas para venderem suas casas. O que, temem alguns, pode levar ao enfraquecimento da comunidade.
"Agora o pessoal está percebendo que precisa se unir de verdade para conseguir resistir à organização da elite", afirma Karina dos Santos, que também faz parte do Favela Atitude, grupo formado por jovens moradores do Jardim Panorama e da favela vizinha do Real Parque. Desde o início do ano, o grupo tem realizado diversas ações para tentar mobilizar a população, como o documentário "Rolê de Quebrada" cujo tema é a habitação. Nele há depoimentos de moradores sobre a vontade de permanecer ou sair do Panorama e vender ou não suas casas. O vídeo foi exibido em duas sessões ao ar livre, reunindo cerca de 300 pessoas.
Outra ação partiu da União de Moradores do Jardim Panorama, que contratou a ONG Usina para realizar um trabalho de informação da população sobre seus direitos. De março a maio deste ano, quatro educadores da ONG organizaram encontros semanais com toda a comunidade. Foram abordados temas como direitos, urbanização e organização popular.
"Processos como esse de expulsão da população pobre acontecem em toda cidade. Desvendar como isso ocorre é um primeiro passo para a construção de uma cidade mais justa, da qual todos possam desfrutar", analisa Tiaraju Pablo, sociólogo da Usina. Para Márcia, uma das moradoras que participou ativamente dos encontros, os temas tratados são muito complexos. "É muita informação de uma vez, mas a gente sabe que é importante e, por isso, eu tentava perguntar tudo o que não entendia", diz. Para Tiaraju, o balanço é positivo. "Apesar do pouco tempo de trabalho, ficamos surpresos com a capacidade de mobilização da população, que demonstrou vontade de ficar, mesmo estando em um terreno valorizado e sofrendo as mais variadas pressões".
Dentre essas pressões, uma assustou mais a população. Na última semana de março, os moradores que ocupam uma área pública receberam uma intimação da prefeitura para deixar suas casas em um prazo de cinco dias sob pena de remoção das casas. De acordo com uma moradora que também recebeu o documento, o funcionário da prefeitura ofereceu uma quantia para pagar a viagem de volta para o Nordeste. A orientação da Usina e de dois advogados que assessoram a União de Moradores acalmou os moradores dessa área ao explicar que se tratava de uma ação ilegal com objetivo de intimidação. Vencido o prazo de cinco dias, nada aconteceu, mas a comunidade estava preparada para uma manifestação caso fosse necessário.
"Quando a favela se sente acuada, a população se une", afirma Marcos Rosa, presidente da União de Moradores. Com exceção desses moradores, os demais estão em terrenos particulares há mais de cinco anos, o que possibilitou a entrada no processo de usucapião.
O show de Caetano Veloso transcorreu sem problemas, para a alegria dos poucos convidados do empreendimento, que estavam do lado de dentro do muro. O "povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas" cantado em Sampa, ficou do lado de fora.
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