Egito detém o descarrilamento da revolução árabe 23/11/2011, Seumas Milne, Guardian, UK
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/nov/23/egypt-arab-revolution
Até há poucos dias, o pessimismo se tornara norma, na avaliação da revolução árabe. Passada a euforia por Tunísia e Egito, a “Primavera Árabe” virou outono ermo. Repressão selvagem, intervenção estrangeira, guerra civil, contrarrevolução e a volta da velha guarda tornaram-se ordem do dia. Para alguns, sequer acontecera alguma revolução – e só à Tunísia, estrategicamente marginal, seria concedida alguma genuína transformação democrática.
Mas a revolução novamente eclodiu no Egito, com centenas de milhares de pessoas que desafiaram a violência mais letal para reclamar para elas mesmas a autoridade usurpada por um regime militar sem qualquer disposição para abrir mão dela. Depois de lançar Hosni Mubarak aos tubarões e conceder um processo constitucional e eleitoral muito duramente controlado, os generais, que comandam interesses comerciais vastíssimos, outra vez lançaram as garras contra o movimento popular, prenderam, torturaram, mataram e arrebentaram milhares de egípcios, atacaram manifestantes e provocaram conflito sectário.
Mas foi a tentativa dos generais, de tentar preservar só para eles o poder constituinte permanente que reacendeu o levante popular e pôs os generais em conflito direto com a poderosa Fraternidade Muçulmana. Agora, a junta militar está mais uma vez sendo forçada a fazer importantes concessões e corre o risco de ser derrubada, se não conseguir manter separados a massa que se manifesta nas ruas e o restante da população do Egito.
Onde, em tudo isso, estão os EUA e aliados – ainda determinados a conservar o Egito como estado subalterno dócil – pode ser inferido de suas reações ao assassinato de pelo menos 38 manifestantes civis desarmados e a mais de 1.500 feridos[1]. “A autoridade tem de ser restaurada” – explicou o ministro de Relações Exteriores do Reino Unido, o conservador Alistair Burt; e a Casa Branca repetidas vezes clamou por “moderação dos dois lados”[2], exatamente o mesmo que já dissera em janeiro e fevereiro, quando as forças de Mubarak assassinaram 850 manifestantes em três semanas.
Desde o dia em que o ditador egípcio caiu, vê-se a firme determinação, das potências ocidentais, de seus aliados do Golfo e dos antigos regimes, para subornar, esmagar ou sequestrar os levantes árabes. Na Tunísia e no Egito, o dinheiro de EUA e Arábia jorrou, tentando garantir cobertura aos seus aliados[3]. O governo Obama alocou $120 milhões para “promover a democracia” nos dois países; a Jordânia – estado árabe policial, embora vacilante, preferido do ocidente – é hoje o segundo principal recebedor, em números calculados per capita, de ajuda norte-americana; só perde para Israel[4].
A segunda abordagem foi esmagar os protestos à força. Em março, os EUA deram luz verde à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes para que invadissem o Bahrain, lar da V Frota dos EUA, e ajudar a reprimir o movimento democrático local – ao que se sabe hoje, em troca do apoio da Liga Árabe para a intervenção ocidental e o ataque à Líbia. O relatório autopatrocinado pelo próprio regime, sobre detalhes do ataque, dá pormenores dos assassinatos, torturas e prisões em massa depois de invadido o Bahrain.
A terceira tática do ocidente e das autocracias árabes suas aliadas foi porem-se eles mesmos à testa dos levantes – o que se viu acontecer na Líbia, onde a intervenção militar da OTAN foi viabilizada pelo Qatar e outros estados autoritários do Golfo. O resultado foi a derrubada do regime de Gaddafi, cerca de 30 mil mortos e nova ordem baseada na limpeza étnica, tortura e prisões sem acusação nem julgamento[5]. Mas, do ponto de vista da OTAN, o novo governo recém formado em Trípoli parece ser, pelo menos, firmemente pró-ocidente.
Foi esse retorno das ex-potências coloniais ao mundo árabe, à caça de concessões para explorar o petróleo da Líbia, depois da ocupação do Iraque, que levou Mohamed Heikal, ex-confidente de Gamal Abdel Nasser, a falar recentemente sobre a ameaça real de um novo “acordo Sykes-Picot”[6] – decidido entre Grã-Bretanha e França, depois da I Guerra Mundial – para uma redivisão do espólio na região.
E, com o passar dos meses, outra arma – o sectarismo religioso – também foi usado para decapitar, ou fazer descarrilar o despertar árabe. Associado à hostilidade contra a influência do Irã xiita, foi crucial para mobilizar o Golfo para a repressão à maioria xiita no Bahrain. O sectarismo religioso, incendiado pelo combustível dos conflitos pós-invasão no Iraque, foi a principal arma de propaganda do governo saudita para isolar os protestos em sua província do leste, predominantemente xiita e onde está o petróleo dos sauditas.
Mas o sectarismo religioso também é questão central no cada vez mais perigoso conflito na Síria. E ajuda a explicar as reações muito diferentes, na sangrenta repressão pelo regime de Assad, que já fez cerca de 3.500 mortos desde março, e no Iêmen, apoiado por EUA e sauditas, onde se estimava, há dois meses, que já houvessem 1.500 manifestantes mortos[7]. Enquanto o presidente do Iêmen estava hoje em Riad, assinando acordo patrocinado pelo Golfo para deixar o poder, com garantias de imunidade, a Síria enfrenta sanções, foi expulsa da Liga Árabe e enfrenta a ameaça de intervenção militar estrangeira.
A diferença não se explica pelo nível de violência nem pela persistente resistência de Assad que ainda não implementou as reformas nem fez as eleições que ele mesmo propôs. A questão é que o regime de Assad, alawita, é aliado do Irã e do movimento xiita libanês, o Hezbollah – todos contra EUA, Israel e respectivos estados árabes clientes.
Hoje, o que nasceu como movimento pacífico de protesto na Síria já se está metamorfoseando em plena insurreição armada e vicioso conflito sectário, à beira de uma guerra civil.[8] Não havendo sinais de que um dos lados possa conter o outro, os líderes da oposição patrocinados pelo ocidente cada dia mais eloquentemente clamam por intervenção militar na Síria, à moda da zona aérea de exclusão criada para a Líbia. E, apesar de os estados-membros da OTAN terem rejeitado essa possibilidade, se não houver mandado da ONU, tudo isso pode mudar, no caso de o conflito converter-se em guerra em larga escala, com crises de refugiados[9]. Um dos modos de evitar esse desastre regional seria um acordo político negociado na Síria, intermediado por Turquia e Irã – embora se deva considerar que as denúncias turcas contra Assad talvez já tenham ultrapassado todos os limites, e tal acordo já não seja viável.
O que resta bem claro é que os levantes em todo o mundo árabe estão intimamente conectados, e que sectarismo e intervenção estrangeira são inimigos mortais dessas revoluções ‘de amadores’. Fator crucial na persistência dos regimes autoritários sempre foi o apoio que receberam de potências ocidentais determinadas a manter controle estratégico na região. Qualquer Oriente Médio genuinamente democrático será inevitavelmente mais independente em relação ao ocidente.
Aí está a razão pela qual a reignição da revolução no Egito, país pivô de todo o mundo árabe, tem potencial não só para acelerar a democratização do próprio país, mas, também, para alterar a dinâmica em toda a região – e acertar golpe decisivo contra as forças que, como hidra de várias cabeças, tentam impedir que a revolução egípcia renasça.
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/nov/23/egypt-arab-revolution
Até há poucos dias, o pessimismo se tornara norma, na avaliação da revolução árabe. Passada a euforia por Tunísia e Egito, a “Primavera Árabe” virou outono ermo. Repressão selvagem, intervenção estrangeira, guerra civil, contrarrevolução e a volta da velha guarda tornaram-se ordem do dia. Para alguns, sequer acontecera alguma revolução – e só à Tunísia, estrategicamente marginal, seria concedida alguma genuína transformação democrática.
Mas a revolução novamente eclodiu no Egito, com centenas de milhares de pessoas que desafiaram a violência mais letal para reclamar para elas mesmas a autoridade usurpada por um regime militar sem qualquer disposição para abrir mão dela. Depois de lançar Hosni Mubarak aos tubarões e conceder um processo constitucional e eleitoral muito duramente controlado, os generais, que comandam interesses comerciais vastíssimos, outra vez lançaram as garras contra o movimento popular, prenderam, torturaram, mataram e arrebentaram milhares de egípcios, atacaram manifestantes e provocaram conflito sectário.
Mas foi a tentativa dos generais, de tentar preservar só para eles o poder constituinte permanente que reacendeu o levante popular e pôs os generais em conflito direto com a poderosa Fraternidade Muçulmana. Agora, a junta militar está mais uma vez sendo forçada a fazer importantes concessões e corre o risco de ser derrubada, se não conseguir manter separados a massa que se manifesta nas ruas e o restante da população do Egito.
Onde, em tudo isso, estão os EUA e aliados – ainda determinados a conservar o Egito como estado subalterno dócil – pode ser inferido de suas reações ao assassinato de pelo menos 38 manifestantes civis desarmados e a mais de 1.500 feridos[1]. “A autoridade tem de ser restaurada” – explicou o ministro de Relações Exteriores do Reino Unido, o conservador Alistair Burt; e a Casa Branca repetidas vezes clamou por “moderação dos dois lados”[2], exatamente o mesmo que já dissera em janeiro e fevereiro, quando as forças de Mubarak assassinaram 850 manifestantes em três semanas.
Desde o dia em que o ditador egípcio caiu, vê-se a firme determinação, das potências ocidentais, de seus aliados do Golfo e dos antigos regimes, para subornar, esmagar ou sequestrar os levantes árabes. Na Tunísia e no Egito, o dinheiro de EUA e Arábia jorrou, tentando garantir cobertura aos seus aliados[3]. O governo Obama alocou $120 milhões para “promover a democracia” nos dois países; a Jordânia – estado árabe policial, embora vacilante, preferido do ocidente – é hoje o segundo principal recebedor, em números calculados per capita, de ajuda norte-americana; só perde para Israel[4].
A segunda abordagem foi esmagar os protestos à força. Em março, os EUA deram luz verde à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes para que invadissem o Bahrain, lar da V Frota dos EUA, e ajudar a reprimir o movimento democrático local – ao que se sabe hoje, em troca do apoio da Liga Árabe para a intervenção ocidental e o ataque à Líbia. O relatório autopatrocinado pelo próprio regime, sobre detalhes do ataque, dá pormenores dos assassinatos, torturas e prisões em massa depois de invadido o Bahrain.
A terceira tática do ocidente e das autocracias árabes suas aliadas foi porem-se eles mesmos à testa dos levantes – o que se viu acontecer na Líbia, onde a intervenção militar da OTAN foi viabilizada pelo Qatar e outros estados autoritários do Golfo. O resultado foi a derrubada do regime de Gaddafi, cerca de 30 mil mortos e nova ordem baseada na limpeza étnica, tortura e prisões sem acusação nem julgamento[5]. Mas, do ponto de vista da OTAN, o novo governo recém formado em Trípoli parece ser, pelo menos, firmemente pró-ocidente.
Foi esse retorno das ex-potências coloniais ao mundo árabe, à caça de concessões para explorar o petróleo da Líbia, depois da ocupação do Iraque, que levou Mohamed Heikal, ex-confidente de Gamal Abdel Nasser, a falar recentemente sobre a ameaça real de um novo “acordo Sykes-Picot”[6] – decidido entre Grã-Bretanha e França, depois da I Guerra Mundial – para uma redivisão do espólio na região.
E, com o passar dos meses, outra arma – o sectarismo religioso – também foi usado para decapitar, ou fazer descarrilar o despertar árabe. Associado à hostilidade contra a influência do Irã xiita, foi crucial para mobilizar o Golfo para a repressão à maioria xiita no Bahrain. O sectarismo religioso, incendiado pelo combustível dos conflitos pós-invasão no Iraque, foi a principal arma de propaganda do governo saudita para isolar os protestos em sua província do leste, predominantemente xiita e onde está o petróleo dos sauditas.
Mas o sectarismo religioso também é questão central no cada vez mais perigoso conflito na Síria. E ajuda a explicar as reações muito diferentes, na sangrenta repressão pelo regime de Assad, que já fez cerca de 3.500 mortos desde março, e no Iêmen, apoiado por EUA e sauditas, onde se estimava, há dois meses, que já houvessem 1.500 manifestantes mortos[7]. Enquanto o presidente do Iêmen estava hoje em Riad, assinando acordo patrocinado pelo Golfo para deixar o poder, com garantias de imunidade, a Síria enfrenta sanções, foi expulsa da Liga Árabe e enfrenta a ameaça de intervenção militar estrangeira.
A diferença não se explica pelo nível de violência nem pela persistente resistência de Assad que ainda não implementou as reformas nem fez as eleições que ele mesmo propôs. A questão é que o regime de Assad, alawita, é aliado do Irã e do movimento xiita libanês, o Hezbollah – todos contra EUA, Israel e respectivos estados árabes clientes.
Hoje, o que nasceu como movimento pacífico de protesto na Síria já se está metamorfoseando em plena insurreição armada e vicioso conflito sectário, à beira de uma guerra civil.[8] Não havendo sinais de que um dos lados possa conter o outro, os líderes da oposição patrocinados pelo ocidente cada dia mais eloquentemente clamam por intervenção militar na Síria, à moda da zona aérea de exclusão criada para a Líbia. E, apesar de os estados-membros da OTAN terem rejeitado essa possibilidade, se não houver mandado da ONU, tudo isso pode mudar, no caso de o conflito converter-se em guerra em larga escala, com crises de refugiados[9]. Um dos modos de evitar esse desastre regional seria um acordo político negociado na Síria, intermediado por Turquia e Irã – embora se deva considerar que as denúncias turcas contra Assad talvez já tenham ultrapassado todos os limites, e tal acordo já não seja viável.
O que resta bem claro é que os levantes em todo o mundo árabe estão intimamente conectados, e que sectarismo e intervenção estrangeira são inimigos mortais dessas revoluções ‘de amadores’. Fator crucial na persistência dos regimes autoritários sempre foi o apoio que receberam de potências ocidentais determinadas a manter controle estratégico na região. Qualquer Oriente Médio genuinamente democrático será inevitavelmente mais independente em relação ao ocidente.
Aí está a razão pela qual a reignição da revolução no Egito, país pivô de todo o mundo árabe, tem potencial não só para acelerar a democratização do próprio país, mas, também, para alterar a dinâmica em toda a região – e acertar golpe decisivo contra as forças que, como hidra de várias cabeças, tentam impedir que a revolução egípcia renasça.
[1] 23/11/2011, BBC, http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-15854418
[2] 22/11/2011, Reuters, http://www.reuters.com/article/2011/11/22/us-egypt-protests-usa-idUSTRE7AL1LN20111122
[3] 16-18/9/2011, Counterpunch, http://www.counterpunch.org/2011/09/16/three-big-challenges-threatening-the-arab-uprisings/
[4] 8/12/2011, New York Review of Books, http://www.nybooks.com/articles/archives/2011/dec/08/jordan-starts-shake/?pagination=false&printpage=true