Dalmo de Abreu Dallari
Jurista
Depois de quase dez meses de atividades, incluindo audiências, pedidos de informações, discursos inflamados e manifestações indignadas, acusações e insinuações, tudo em ambiente de espetáculo, com ampla cobertura da mídia e muito exibicionismo, chegou ao fim o trabalho da CPI dos Correios, Comissão Parlamentar de Inquérito criada para investigar a denúncia de irregularidades nos Correios. É curioso ressaltar que os Correios ocuparam espaço muito pequeno nas atividades da Comissão e agora, apresentado o relatório final, nem se fala nos Correios. A par disso, tendo em conta que as atividades da CPI ocuparam muito tempo dos parlamentares, implicaram o deslocamento de muitas pessoas, em idas e vindas para Brasília, exigiram a ampla utilização de recursos tecnológicos para obtenção e transmissão de informações, provocaram o acionamento de muitos órgãos públicos, além de muitas outras despesas, é razoável perguntar se os resultados obtidos justificam o altíssimo custo de toda essa movimentação. Além disso, é preciso considerar também o custo político-social representado pela grave perturbação dos trabalhos do Legislativo, que foi afastado de tarefas essenciais. É razoável perguntar: valeu a pena?
Não há dúvida de que a Comissão Parlamentar de Inquérito é um importante instrumento de fiscalização e controle, que o Legislativo pode e deve utilizar quando esse for o meio mais adequado para a investigação de denúncias de interesse público relevante. Aqui já se impõe uma primeira observação: a Constituição, pelo artigo 58, § 3º, dá às Casas do Legislativo o poder de criar comissão parlamentar de inquérito ''para apurar fato determinado''. Existe aí uma expressa limitação constitucional e o desbordamento, a utilização da CPI para a realização de uma ampla devassa ou para a investigação de outros fatos, é juridicamente irregular e pode servir de base para a anulação de suas conclusões. No caso da CPI dos Correios é possível que esse ponto seja invocado numa ação judicial. O Judiciário não poderá ignorar a existência da limitação constitucional e aceitar a alegação de interesse público para a prática da ilegalidade, pois admitido isso todas as arbitrariedades e violências poderão ser cometidas, ofendendo e anulando direitos, sob pretexto de interesse público, o que significaria a morte do Estado de Direito.
Outro ponto importante que suscitado pelo relatório final da CPI é uma grave omissão, que evidencia uma espécie de parcialidade nas conclusões. De acordo com o disposto no já referido artigo 58, § 3º, da Constituição, a CPI deverá ter um prazo certo para a realização das investigações, ''sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores''. Como já foi amplamente noticiado e vem reafirmado no relatório final, foram praticadas muitas infrações, ligadas à compra de apoio de parlamentares, envolvendo entidades públicas e privadas, sendo nominalmente referidas várias empresas. O relatório final recomenda o indiciamento de parlamentares e outros ocupantes de cargos públicos, e da área privada só menciona três dirigentes do Banco Santos, que já é objeto de ampla investigação em ações judiciais. Se as infrações realmente ocorreram e se foram cometidas com a cumplicidade ativa de empresários estes também devem ser indiciados.
Essa omissão leva à lembrança de outra, de extrema relevância. Se as investigações levadas a efeito pela CPI revelam a existência de um esquema propício à prática de corrupção, é dever da CPI apontar esses vícios e propor medidas, legais ou administrativas, visando desmantelar o esquema e impedir que ele continue sendo usado para a prática das mesmas irregularidades. No relatório final não se faz a identificação dos mecanismos de corrupção e não são feitas sugestões para o seu desmantelamento, o que leva à conclusão de que não entrou na cogitação dos membros da CPI o fechamento desses caminhos. É verdade que a Constituição não diz expressamente que isso deve constar do relatório final de uma CPI, mas tal providência é de elementar bom senso e pode-se dizer que seria o ponto mais importante do relatório final, pois se é necessário e justo punir os que já cometeram infrações, prejudicando o interesse público, é dever ético e jurídico dos que obtiveram informações minuciosas e precisas sobre a existência de um mecanismo de corrupção, denunciar tais mecanismos e propor medidas visando a sua extinção.