segunda-feira, abril 24, 2006

Constitucionalismo à brasileira

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

Encoberta pelos sobressaltos da crise, a prática democrática evolui e se define. Resgatando-se do processo de descivilização imposto pela ditadura, o país se dotou de uma Constituição fundada no voto popular e conheceu mudanças inéditas: eleições em dois turnos, o impeachment de Collor (1992) e a reeleição de FHC (1998). Cada uma dessas etapas suscitou um reequilíbrio de poderes entre a Presidência e o Congresso, tema candente nas atuais discussões sobre o impeachment de Lula.Tornou-se banal no Brasil falar de Congresso e de parlamento como se fossem uma coisa só.
A confusão vem do Império e dos anos 1961-1963, quando vigorou o regime parlamentar. Todavia, os exemplos paradigmáticos da Inglaterra e dos EUA -e os textos constitucionais brasileiros- demonstram que as duas instituições são distintas. Parlamento se relaciona aos regimes parlamentaristas, e Congresso, aos regimes presidencialistas.

De verdade, a Constituição de 1988 diz que o Legislativo é exercido pelo Congresso, composto pela Câmara e pelo Senado (art. 44). Retoma-se o enunciado da Constituição de 1891 (art.16) e da Constituição de 1946 (art.37). No período republicano, o substantivo "parlamento" só aparece no quadro específico da Constituição de 1937. Inspirando-se nos fascismos parlamentaristas europeus, essa carta constitucional troca o Congresso pelo parlamento e extingue o Senado, substituindo-o por um Conselho Federal corporativo (art. 38).Assim, o modo de eleição e o escopo do mandato senatorial configuram a diferenciação entre "congresso" e "parlamento". Dos 72 países dotados de bicameralismo, apenas 21 possuem um Senado integralmente eleito pelo voto direto sem restrições. Desses últimos, 14 são regimes presidencialistas, 11 dos quais situados no continente americano. Tal é a genealogia institucional brasileira.

É patente que o Congresso e, em particular, o Senado revigoraram a democracia em nosso país. Reunindo os mais importantes mandatos derivados de eleições majoritárias entre 1966 e 1982 (quando não havia eleições diretas para governador), o Senado institucionalizou a luta contra a ditadura. Os votos nulos e brancos das eleições de 1970 se transformaram em votos oposicionistas em 1974, oferecendo ao MDB a vitória nas eleições senatoriais que desestabilizaram a ditadura. Em seguida, o prestígio de Ulysses Guimarães na presidência da Constituinte (1987-1988) deu mais destaque ao Legislativo. De permeio à crise hiperinflacionária, a primeira presidencial em dois turnos (1989), o plano Collor e a avalanche de medidas provisórias tolheram a ação do Congresso. Confrontados à crise, os congressistas, com o respaldo popular, levaram a cabo o impeachment em 1992, estabelecendo barreiras ao presidencialismo imperial.

A maioria dos cidadãos quer guardar para si, sem delegação, o julgamento sobre o presidente no mês de outubro

Na circunstância, o impeachment não abalou a adesão do país ao presidencialismo, amplamente confirmada no plebiscito de 1993. O pleito de 1994 trouxe outras novidades. Acoplada pela primeira vez às eleições para governador, a eleição presidencial deu a FHC o apoio de governadores tucanos eleitos em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Somando-se aos dividendos do Plano Real, esses trunfos ofereceram grande margem de manobra a FHC. Daí seu ímpeto em fazer o Congresso aprovar a emenda constitucional da reeleição.

O mandato de Lula caracterizou-se por estratégias defensivas. Nos dois primeiros anos de governo, a defesa consistiu em refutar a suspeita de gestão temerária do capitalismo brasileiro. Nos dois últimos, o desafio tem sido o de resistir ao revés letal que já levou à inculpação de dirigentes petistas e à queda dos dois principais ministros do governo. Resta que, paralelamente à crise, as relações entre o Executivo e o Legislativo evoluem, gerando novos parâmetros políticos.

A despeito do debate sobre os requisitos legais do impeachment, o elemento chave na matéria são as condições políticas. Por ora, estas não existem. Como declarou recentemente o senador José Agripino, líder do PFL: "Há impeachment quando há uma comoção popular que faça o cidadão pressionar o seu parlamentar para votar pelo impeachment. Isso não se configurou". Não se configurou, talvez, porque, na percepção dos cidadãos, falta aos congressistas a eqüidade necessária para julgar os atos passíveis de impeachment presidencial. De fato, o escândalo do mensalão atinge tanto o Congresso como o governo. Tal é a opinião registrada nas sondagens.

Nesse sentido, a situação é diferente do caso levando à demissão de Nixon (1974). Como se sabe, o complô do Watergate, urdido na Casa Branca, nunca envolveu o Congresso.No contexto da crise, a última pesquisa CNT/Sensus trouxe um dado revelador: 65,4% dos entrevistados se declaram favoráveis ao instituto da reeleição. Haverá entrevistados que apóiam o impeachment e o princípio geral da reeleição. Mas o mais provável é que a maioria dos cidadãos quer guardar de si para consigo, sem delegação a outras instâncias, o julgamento sobre o presidente da República no mês de outubro.

Luiz Felipe de Alencastro, 60, é professor titular de história do Brasil na Universidade de Paris - Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras, 2000).