domingo, janeiro 08, 2006








Os movimentos sociais e seus desafios em 2006
A capacidade de seguir mobilizando o povo nas suas lutas dependerá da proposição de alternativas – teóricas e práticas – superadoras do neoliberalismo. Se não podem substituir os partidos, os movimentos sociais têm de atuar estreitamente ligados a eles, para construir o pós-neoliberalismo.
Emir Sader*

A HORA DA RESISTÊNCIA
Os movimentos sociais latino-americanos foram os principais protagonistas das lutas de resistência ao neoliberalismo. No México, no Brasil, na Bolívia, no Equador, entre outros países, coube a esses movimentos – diante da renúncia a resistir ou a dificuldades de mobilização por parte dos partidos – o papel principal nas lutas antineoliberais.
Na primeira fase de aplicação do neoliberalismo, a correlação era muito desfavorável às forças populares. A estabilização financeira obtida imediatamente pela aplicação drástica de planos de ajuste fiscal – que no Brasil teve o nome de Plano Real – deu legitimidade aos governos neoliberais – como os de Carlos Menem, FHC, Fujimori, Salinas de Gortari, entre outros –, isolando relativamente os movimentos sociais e a oposição política.
Os protestos reuniam a setores relativamente limitados – trabalhadores do setor público, movimentos camponeses e indígenas, movimento estudantil –, ainda isolados pelos efeitos propagandísticos dos planos de ajuste. Isto se deu especialmente ao longo da primeira metade da década de 1990. Na segunda metade, as crises começavam a demonstrar mais claramente os efeitos negativos desses planos – a crise mexicana ocorreu em 1994, a brasileira em 1999 – e o descontentamento passou a possibilitar maiores manifestações de protesto.
A crise argentina de 2001 e as derrotas eleitorais dos principais implantadores dos planos de ajuste fiscal – Menem, o PRI, Fujimori, FHC – marcaram uma virada no consenso existente até então, que encontrou nos Fóruns Sociais Mundiais sua expressão mais clara da necessidade um outro projeto de sociedade. Começou a se impor o ponto de vista dos movimentos sociais, de que a grande maioria não recebe benefícios da globalização liberal, de que se impõe a necessidade da substituição de metas econômico-financeiras por metas sociais.
Começaram a ser eleitos governos apoiados na oposição aos planos de ajuste – Lula em 2002, Kirchner em 2003, Lúcio Gutierrez em 2003, Tabaré Vázquez em 2004. Parecia que as lutas de resistência dos movimentos sociais permitiriam a superação do modelo neoliberal.
Passados alguns anos, nenhum desses governos rompeu com esse modelo, mantendo a prioridade de metas econômico-financeiras. Um deles – Lucio Gutierrez – foi até derrubado pelos mesmos movimentos sociais que o haviam elegido. Qual a particularidade do ano de 2005 nessa longa caminhada dos movimentos sociais, das forças políticas e do movimento popular na luta contra o neoliberalismo?
A HORA DAS ALTERNATIVAS
Depois de terem protagonizado a resistência aos governos neoliberais, os movimentos sociais tiveram de enfrentar desafios políticos, isto é, possibilidades de colocar em prática alternativas ou fazer parte de frentes políticas antineoliberais. Esses desafios já vêm de algum tempo. Primeiro foi a eleição de Lula à presidência, no Brasil. Depois, a eleição de Lúcio Gutierrez, no Equador, de Nestor Kirchner, na Argentina, e de Tabaré Vázquez, no Uruguai.
A luta dos movimentos sociais é uma luta pela defesa dos direitos da massa da população, atacadas pelas políticas neoliberais. Não se deveria exigir desses movimentos substituir às forças políticas. Mas, na prática, os movimentos sociais personificam alternativas, lutam por elas e não podem se encerrar nas lutas sociais; terminam sendo responsáveis, diretos ou indiretos, pela luta política.
No caso de países como Brasil, Equador, Uruguai e, em certa medida, Argentina, os movimentos sociais tiveram que se defrontar com governos que, apoiados por eles ou por uma parte deles, assumiram com posições antineoliberais. Mas o balanço desses governos, desse ponto de vista, é decepcionante. No caso do Equador, já no começo do governo de Lucio Gutierrez houve a ruptura de uma parte dos movimentos camponeses e indígenas – também com conseqüências negativas para esses movimentos, que se dividiram, com uma parte deles permanecendo no governo.
Nos outros casos, os movimentos sociais mantêm posições críticas aos governos eleitos pela esquerda. Na Argentina, o movimento piqueteiro também se dividiu, uma parte mantendo apoio ao governo Kirchner, outra se colocando na oposição. No Brasil e no Uruguai, os movimentos sociais guardam distâncias e desenvolvem críticas – mais ou menos profundas, conforme o movimento – sem, no entanto, romper com o governo. Permanecem com a consciência de que os avanços possíveis se darão no marco destes governos e que as alternativas serão de retorno da direita tradicional, no marco atual da relação de forças.
A comprovação de que os projetos políticos é que são decisivos e que os movimentos sociais têm que tomar posições em relação a eles está dado pelas experiências – negativas e positivas – dos governos da região. Do destino destes depende o dos movimentos sociais e a situação geral do povo de cada país.
No caso do Brasil, por exemplo, a manutenção de políticas herdadas do governo FHC foi determinante para os destinos do governo Lula e para a situação do povo brasileiro. Não apenas pela continuidade no processo de concentração de renda, de transferência de renda para o capital especulativo, de desemprego e precariedade do trabalho, de expropriação de direitos – começando pelo direito à carteira de trabalho; mas, também, pela decepção que causa no movimento popular, pela derrota que significa para a esquerda, pela falta da prioridade do social – prometida anteriormente.
O mesmo se pode dizer, de maneira ainda mais aguda, para os movimentos sociais e o povo equatoriano. O apoio dado à candidatura de Lúcio Gutierrez e a participação direta no seu governo não apenas não melhoraram as condições de vida da população, como levaram à divisão dos movimentos sociais, piorando bastante as suas condições de luta.
Dilemas similares passaram a viver os movimentos sociais uruguaios, diante das orientações que se sobressaíram no governo de Tabaré Vázquez. Em melhores condições se encontram os movimentos sociais venezuelanos, pela evolução ideológica e política do governo de Hugo Chávez, que promove efetivamente a prioridade do social, utilizando substanciais recursos do petróleo para programas sociais, que incluíram neste ano [2005] o fim do analfabetismo no país.
OS DESAFIOS ATUAIS
Depois de terem protagonizado os principais combates de resistência ao neoliberalismo, os movimentos sociais passaram a enfrentar dificuldades, tanto pelos efeitos desmobilizadores dessas políticas – incluído o desemprego que produzem –, quanto pelas dificuldades da esquerda no seu conjunto para superar os programas neoliberais. Em países como Brasil, Uruguai e Argentina, existe a consciência de que, apesar da timidez das políticas governamentais, as transformações propostas pelos movimentos sociais serão possíveis nesses governos ou, dando-se sua substituição por governos da direita tradicional, elas serão postergadas por longo período.
Daí uma espécie de apoio crítico que tem caracterizado, em distintos graus, movimentos como o MST e a CUT, que não seguiram o caminho de setores políticos que optaram pela ruptura com o governo Lula e se isolaram socialmente.
Já outros movimentos, como os zapatistas, promoveram uma virada drástica nas suas políticas, revelando como suas diretrizes anteriores se chocavam com suas condições reais de efetivação. Diante de uma ofensiva militar das FFAA [Forças Armadas], alegando pretextos de plantações de coca em Chiapas, o EZLN [Ejército Zapatista de Liberación Nacional] decidiu não resistir militarmente e desmobilizou suas Juntas de Bom Governo.
2005 não foi diferente. Os movimentos sociais tiveram de se enfrentar com governos cujas políticas reproduzem os modelos existentes, embora tivessem pregado, em muitos casos, sua superação. Resistem, criticam, tentam mobilizações, revelam insatisfações com os partidos de esquerda, mas se chocam com a falta de alternativas. Esse é o seu limite. Ou conseguem participar de um processo comum – de forças sociais, políticas, intelectuais – que formule um projeto alternativo ao neoliberalismo, se empenhando, com sucesso, na mobilização popular para construir uma força capaz de romper com o modelo e inaugurar o pós-neoliberalismo, ou seguirão um processo de resistência, fragmentada, sendo vítimas de um modelo diante do qual apresentam pouca capacidade de reversão.
2006 é ano eleitoral em muitos países da região. Um calendário que se iniciou já no final de 2005, com as eleições na Bolívia e no Chile, mas que se estende pelas da Costa Rica, em fevereiro de 2006, da Colômbia, em maio, do México, em julho, do Brasil, em outubro, e da Venezuela, em dezembro. O quadro político pode se alterar, especialmente no Brasil – maior incógnita de todas essas eleições. As melhores novidades podem provir da Bolívia. Pouco ou quase nada se pode esperar da Colômbia, por enquanto, nem da Costa Rica. Do México, uma vitória da esquerda, ainda que moderada, pode consolidar um marco latino-americano ainda mais favorável à saída do modelo neoliberal.
Os movimentos sociais têm que participar desse processo, politicamente, constituindo força, articulando alianças, promovendo debates e formulação de alternativas, se não quiserem permanecer ainda por longo tempo na defensiva. A disputa decisiva se dá no campo político, mas o fundamental é a hegemonia ideológica neoliberal, que penetra inclusive na esquerda. A esquerda tem sido derrotada, principalmente, no campo do debate das idéias. Não que as idéias da direita sejam melhores, mas estas souberam se valer dos erros da esquerda –refiro-me, aqui, desde aquelas do campo socialista, passando pela social-democracia, pelas guerrilhas, pelas múltiplas versões da ultra-esquerda até chegar à esquerda – e ultra-esquerda – atualmente existente entre nós.
A capacidade de seguir mobilizando o povo nas suas lutas depende, atualmente, sobretudo da capacidade de apontar para alternativas – teóricas e práticas – superadoras do neoliberalismo. Este é o maior desafio dos movimentos sociais na atualidade. Se não podem substituir a ação dos partidos, têm que atuar estreitamente ligados a eles, para construir o pós-neoliberalismo.

* Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.