sexta-feira, dezembro 09, 2005
Dossiê revela bastidores de ações da Polícia de São Paulo
Por: Bia Barbosa/Carta Maior
“Parecia que estávamos numa guerra. Eram cachorros e cavalos no bairro inteiro. A comunidade estava assustada, os policiais invadiam as casas sem mandado. Se não tivéssemos entrado com uma denúncia com agilidade, teria sido pior. A operação tinha o objetivo de inibir o tráfico. Ficaram lá 45 dias, mas depois o tráfico voltou a atuar”. O relato emocionado de Elisabeth Sivério, do Centro de Direitos Humanos do Sapopemba (CDHS), na zona leste de São Paulo, descreve um pouco do terror vivido pelos milhares de habitantes de uma das comunidades mais carentes da cidade.Às 5h do dia 28 de agosto de 2005, membros da Polícia Militar invadiram o Jardim Elba, uma das favelas de Sapopemba, numa operação batizada de Saturação, que reuniu policiais subindo as vielas por baixo e outros descendo de cordas de helicópteros. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, a polícia abordou e interrogou 4.797 pessoas e vistoriou 474 automóveis, 401 motocicletas e 210 estabelecimentos comerciais. O objetivo da ação era combater o tráfico de drogas e estreitar os laços entre moradores e polícia.
O que o governo Alckmin não informou, no entanto, está relatado no “Dossiê Sapopemba: Operação Saturação – dados que a Secretaria Estadual de Segurança Pública não divulgou”, lançado no último sábado (3). O documento revela que, como parte da operação, ocorreram inúmeros atos discriminatórios e violações de direitos humanos da comunidade, entre eles a entrada nas residências sem mandado e a revista de mulheres de maneira abusiva e violenta.No dia 16 de setembro, às duas da manhã, a residência de M.C.C.S. foi invadida por quatro policiais militares da Rota (Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar) quando todos – quatro crianças e três adultos – dormiam. Um dos policiais portava duas armas que foram apontadas para M.C.C.S. Eles subiram a escada e foram até o quarto de seu filho. O acordaram com tapas, socos e chutes, gritando: “Cadê a droga? Cadê o dono da boca? Onde é o barraco em que está guardada a droga?”. Seu filho dizia que não sabia de nada. Mas, quanto mais negava, mais apanhava. Enquanto um policial o interrogava e agredia, os netos de M.C.C.S viam o que acontecia; as crianças se apavoraram, choravam e tremiam muito.
Cerca de três meses depois, M.C.C.S. conta ter muita dificuldade para dormir e apresenta crise constante de choro. Faz associações da invasão de sua casa, do espancamento de seu filho e das humilhações que todos sofreram com o fato de ser negra, pobre e morar na favela. Sente impotência por ter visto o filho ser espancado e arrastado de casa sem poder intervir. Isolou-se do convívio da comunidade, principalmente dos amigos ligados à igreja que freqüentava, pois passou a sentir muita vergonha de si mesma e dos outros.
Segundo a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat), uma das organizações responsáveis pelo Dossiê Sapopemba, há sintomas de estresse pós-traumático na maioria das pessoas que foram vítimas da ação policial durante a Operação Saturação, e seqüelas mentais e psicológicas de tortura naquelas que sofreram violência direta.
Um dos moradores sofreu um acidente vascular cerebral, talvez provocado por repetidas invasões em sua casa. Hoje ele está inválido e com pressão arterial alta, tendo que fazer uso contínuo de mediação. Duas moradoras também denunciaram que os policiais, além das barbáries cometidas, levaram valores em dinheiro das casas. De uma delas, onde um jovem foi preso sob a alegação de tráfico, foram levados R$ 6 mil.
“Se eu fosse rica ou morasse num bairro de classe média, eles não invadiriam minha casa, eles tinham que ter um mandado pra entrar”, afirma V.A.A., de 25 anos. Depois da violência ocorrida na região, todos que foram listados durante as batidas, detidos ou não, tiveram dificuldades para novas colocações de emprego.
O dossiê aponta que a polícia tem se apresentado como um agente estatal não confiável para esta população, que os associa com truculência e ilegalidade. Em nenhuma oportunidade foi apresentado um mandado de busca ou provas legítimas que justificassem as revistas ou as invasões. “As ações policiais nesta região carregam um forte preconceito social e um total desrespeito pelas leis vigentes no país. A população se sente desrespeitada e humilhada por ser pobre e acredita que a justiça não foi feita pra eles. As freqüentes violações de direitos humanos pelos policiais só reforçam esta crença”, diz o documento.
Na mesma época, em uma ação para apurar denúncias de tráfico de drogas em um centro comercial de classe média da cidade, a polícia se cercou de todos os pré-requisitos legais pra efetuar a ação de prisão de suspeitos e não há registro de truculêndia, como ocorre sistematicamente em Sapopemba. Ali, as agressões nunca são gratuitas, visto que sempre resultam em prisão ou mesmo extorção e roubo da comunidade. Para as entidades defensoras de direitos humanos que atuam na região, fica claro que existe uma política de controle social através da violência sobre determinados setores sociais, em particular os mais pobres.
Uma pesquisa realizada pela Anistia Internacional constatou que vários governos estaduais desencadearam operações semelhantes sob o codinome Saturação. Entre eles estão os Estados do Maranhão, Paraná, Ceará e Rio Grande do Norte. Sobre estas operações policiais, o professor Luís Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública e um dos principais autores do Plano Nacional de Segurança Pública do governo federal, recentemente afirmou à Anistia Internacional:“(...) as velhas práticas das incursões eventuais, que não produzem senão tragédias e muita notícia para a mídia, saciando a demanda por ordem autoritária que a disseminação do medo tende a provocar na opinião pública. Esse procedimento não é eficaz em nenhum sentido importante, além de ser contraproducente, gerar risco e aprofundar o abismo que separa a favela e a ‘cidade protegida’. Como tende a ser a experiência violenta e discriminatória que conhecemos, acompanhada de revistas brutais e etnicamente [discriminatórias], apenas reproduz a máquina das desigualdades sociais e traz ainda mais insegurança para os mais pobres”, disse Soares.
A intenção das entidades que organizaram o estudo é questionar essa política pública de segurança que usa a tortura, a intimidação e o constrangimento como modo habitual de obter confissões e desta maneira aumentar seus índices estatísticos divulgados para a opinião pública.“Não somos contra a polícia, mas queremos uma polícia que haja com respeito e dignidade, que seja preparada para trabalhar com a comunidade. Desse jeito, as famílias vivem com medo. Eu também. Este é o nosso cotidiano”, desabafa Elisabeth.
O Dossiê Sapopemba, que foi entregue neste final de semana a organizações internacionais de promoção e defesa dos direitos humanos, conclui com um apelo ao governo de São Paulo: que métodos desumanos como a tortura, os maus tratos, o abuso de poder e da autoridade sejam punidos de forma exemplar, para que a sociedade possa viver onde a lei e os direitos constitucionais sejam respeitados por todos. É o que sonha Elisabeth e todos os outros moradores e moradoras de Sapobemba quando conseguem fechar os olhos e dormir à noite.
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