segunda-feira, abril 03, 2006

'Impeachments' e 'impeachments'

JB Mauro Santayana

Quando falamos em corrupção, pensamos logo no desvio de dinheiro alheio, no suborno de servidores públicos, na venda de votos, no aluguel de consciência de parlamentares e membros do Poder Executivo, na venda de sentenças judiciais. Mas há outros tipos de corrupção, em alguns casos mais danosos do que o simples desfalque do Tesouro.
A corrupção ativa é uma forma de obter ou controlar o poder, seja em uma empresa, em uma cidade, em um Estado ou em um país. A mãe, em disputa com o pai, corrompe os filhos, e o pai age da mesma forma, no interior da família. A mentira, a intriga, a delação - fundada ou não - são instrumentos de corrupção social. Quando uma pessoa consegue corromper outra, passa a dominar o corrompido, mas, da mesma forma, é levado a manter com ele relação de constrangedora cumplicidade.
A corrupção é a arma mais efetiva para a conquista, seja dos indivíduos, das comunidades menores e das nações. Para o exercício da corrupção há outras coisas além do dinheiro. Os brancos corromperam os índios das Três Américas usando o álcool. Com isso, quebraram sua resistência e controlaram seus territórios. Etienne de la Boètie narra a tragédia da civilização lídia, corrompida pelo vício do jogo e pela devassidão dos costumes.
O impeachment de Buckingham
Um dos mais célebres casos de corrupção na História ocorreu na Inglaterra, no início do século 17, sob o reinado dos Stuarts (James I e Charles I), o que levou o segundo dos monarcas ao cepo. A Inglaterra vivera, sob o longo reinado de Elisabeth I, um dos mais importantes tempos de sua história, geralmente sangrenta. Filha de Henrique VIII e de Anna Bolena, que o sanguinário monarca mandara matar, a princesa conseguiu governar com firmeza, garantindo a possessão da Irlanda e vencendo seu principal inimigo, Felipe II, na batalha naval que destruiu a poderosa armada espanhola e abriu caminho para a posterior conquista dos mares e das colônias britânicas no mundo. Mas, não tendo filhos, o trono foi entregue a um de seus primos, James, da Escócia. Os historiadores acreditam que, apesar de sua rudeza, ele poderia ter sido um grande rei, se não fosse demasiadamente ligado a um jovem, George Villers, de quem fez, em poucos anos, baronete, barão, conde e, finalmente, Duque de Buckingham. Essa ligação continuou, depois da morte de James I, com o seu filho Charles I. É quase certo que essa circunstância tenha contribuído para o ânimo da Câmara dos Comuns em promover o processo de impeachment contra o duque, que não só era acusado de malversação de bens públicos, como de influir o rei Charles I a tomar decisões danosas ao interesse do Estado e do povo britânico, principalmente no enfraquecimento da defesa nacional e no estímulo a guerras contra os vizinhos.
O sistema constitucional inglês admitia a iniciativa das leis aos Comuns, mas, para que elas fossem válidas, deveriam ser ratificadas pela Câmara dos Lordes e sancionadas pelo rei. Os Comuns endereçaram petições a Carlos I, tão logo ele assumiu o trono, aconselhando-o a buscar os conselhos de homens mais vividos, mas o novo rei, que, quando príncipe herdeiro, fizera uma viagem a cavalo a Madri, com o favorito de seu pai, não admitia nada que o pudesse separar de Villers. Diante da situação, os Comuns decidiram mover um processo de impeachment contra o duque. O rei reagiu com violência contra o processo e foi pessoalmente ao parlamento defender o rapaz. Houve o ácido diálogo entre Charles I e o presidente dos Comuns, que tentou convencer o rei de que era necessário dispensar o seu preferido, prevendo que poderia haver uma rebelião contra o trono. ''Mr. Cook disse a Vossa Majestade que é melhor a um rei ser derrotado por um inimigo externo, do que ser destruído em casa. Da mesma forma, eu penso que há mais honra para um rei ter seu reino invadido, e vê-lo quase destruído por um inimigo externo, do que ser desprezado pelos próprios súditos''. Era a advertência que o rei não quis ouvir.
O impeachment de Buckingham foi declarado pelo Parlamento em 10 de maio de 1626. Vale a pena enumerar os títulos atribuídos a George de Villers e que são relacionados no início do documento de impeachment: duque, marquês e conde de Buckingham; conde de Coventry, visconde de Villers, barão de Whadon; grande almirante dos reinos da Inglaterra e da Irlanda e do Principado de Gales e domínios das ilhas dos mesmos reinos e Principado; da cidade de Callais, da Normandia, da Gascônia e da Guienne (então pertencentes à Inglaterra); governador geral dos mares e navios dos ditos reinos; lugar-tenente general, almirante, da Frota e do Exército de Sua Majestade; mestre dos cavalos de sua Soberana Majestade; lorde Warden, chanceler e almirante das Cinco Portas; condestável do Castelo de Dover; cavaleiro de qarto de Sua Majestade.
O duque era acusado de haver usurpado, pela sedução do rei, os cargos que, para o bem da Inglaterra, deveriam estar sendo ocupados por homens de maior experiência e sabedoria; que o jovem Villers, com desmedida ambição, havia dominado o soberano para açambarcar todos os cargos, com suas rendas e poder; de haver comprado posições, como a de Lorde Warden; de haver confiscado os bens em ouro e jóias, no valor de 40 mil libras (quando os grandes do reino recebiam normalmente de 500 a 1.000 libras por ano) de um navio mercante irregular e, em lugar de recolher os bens ao Tesouro, deles se ter apossado. O duque apelou para a Câmara dos Lordes e o processo se arrastou por quase três anos, quando, diante da firmeza da Câmara dos Comuns, o rei dissolveu o Parlamento. Com a dissolução, o duque escapou do impeachment. Mas, logo em seguida, no mesmo ano, quando se multiplicavam as manifestações de ódio contra Buckingham, o duque tentou escapar para o continente. Foi reconhecido por um oficial da Marinha em Dover, que o matou a punhaladas. Em nome do povo.
O frustrado impeachment de Buckingham foi o fato mais importante para que se desencadeasse a Revolução Inglesa, e Charles I fosse, depois de derrotado militarmente pelas milícias de Cromwell, julgado por traição, tirania, assassinato e por se ter transformado no ''inimigo público do povo bom da Inglaterra''. Foi condenado a ser levado à morte ''by the severing of is head from his body''. Por causa de tanta amizade a seu favorito, Charles I perdeu o cortesão, o reino e a cabeça. Foi executado no meio da rua, em 30 de janeiro de 1648, à vista do povo, depois de um confronto de 23 anos contra a vontade nacional.
A Câmara dos Comuns era constituída de homens do povo. Alguns deles eram comerciantes, outros pequenos proprietários rurais, religiosos em sua maior parte, eleitos por suas comunidades. Tinham toda a autoridade moral para opor-se a reis corruptos, como eram os dois Stuarts. Não era como alguns parlamentos modernos cuja autoridade é tão minada pela corrupção quanto era o trono dos Stuarts. São parlamentos que representam interesses, não representam o povo.
O dever do governo é o de vigiar, principalmente porque é difícil saber tudo o que se passa, principalmente em um país de dimensões imensas, como é o Brasil. É o de escolher seus ministros pela biografia e reconhecidos méritos. É preferir os conselheiros que lhe falem só o que acreditam ser a verdade, e que não sejam repreendidos ou punidos por sua sinceridade. É famosa a frase de De Gaulle: ''Le premier devoir d'un chef d'Ètat c'est l'ingratitude''. Tancredo era mais lacônico: ''Presidente não tem parente''.
Mas se o frustrado impeachment do Duque de Buckingham levou a Inglaterra à criação das modernas instituições de Estado, a farsa que pretendem montar, a respeito de Lula, não passa de um conluio de políticos e empresários, ansiosos por reiniciar a farra das privatizações. Se querem ter gosto de sangue na boca, como aconselhou Fernando Henrique, é melhor buscarem uma churrascaria. São os xiitas da direita, fundamentalistas da privatização, e mais realistas do que o rei. Ontem, em Belo Horizonte, o criador do Consenso de Washington, John Williamson, elogiou a política econômica de Lula e disse que outros países necessitam imitar a política social do governo atual, principalmente o Bolsa Família. Não é prudente tentar desalojar Lula pela violência: o presidente é um símbolo para todos os trabalhadores brasileiros.